sábado, 30 de novembro de 2013

Javad Zarif: “Nossos vizinhos são nossa prioridade”

21/11/2013, [*] Mohammad Javad Zarif, Asharq Al-Awsat, Londres
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Mohammad Javad Zarif, Ministro de Relações Exteriores do Irã
Nas últimas semanas, a República Islâmica do Irã e o P5+1 dedicaram-se a dar bom uso à rara janela de oportunidades gerada pelas eleições presidenciais no Irã, no verão passado, para resolver a questão nuclear, que lançou desnecessária sombra de insegurança e crise sobre a região. Enquanto a maioria da comunidade internacional saúda esse desenvolvimento positivo, alguns de nossos amigos cá na nossa vizinhança próxima manifestaram preocupações de que a atual oportunidade pudesse ser usada contra os interesses deles.

Lamentavelmente, há uma mentalidade de soma-zero [só há vitória, se um lado ganha tudo e o outro perde tudo (NTs)] ainda prevalente na nossa região e em todo o mundo, e há quem se tenha habituado a extrair vantagens da hostilidade contra o Irã, para promover interesses exclusivos. Ainda assim, quero reiterar que a República Islâmica do Irã não alimenta nenhuma dessas fantasias. Reconhecemos que não podemos promover interesses nossos, à custa de outros. É o caso, especialmente, na relação com vizinhos tão próximos que a segurança e a estabilidade deles estão entretecidas com as nossas.

Assim sendo, não obstante o foco em nossas interações com o Ocidente, a realidade é que a prioridade básica de nossa política externa é nossa região.

Raras coisas são constantes na política internacional, mas uma delas é a geografia. Um país não pode trocar de vizinhos. No nosso mundo interconectado, o destino de uma nação está atado aos destinos dos vizinhos. O corpo de água que nos separa de nossos vizinhos do sul não é apenas estrada d’água – é também nossa linha partilhada de sobrevivência. Todos dependemos dela, não só para sobreviver, mas para prosperar. Com nossos destinos tão apertadamente atados, a crença de que seria possível promover interesses de um, sem considerar os interesses dos outros, é delírio.

Como o evidencia o torvelinho em nossa região, nenhum país é uma ilha. Não se pode perseguir a prosperidade à custa da miséria dos outros, nem se pode alcançar segurança, à custa da segurança dos outros. Ou venceremos juntos, ou perderemos juntos. Somos capazes de trabalhar juntos, confiando uns nos outros, combinando nosso potencial e construindo região mais segura e mais próspera.

É triste, mas o modelo de segurança e estabilidade que até agora tem sido imposto à nossa região veio baseado na competição, na rivalidade, na formação de blocos concorrentes. O único resultado foi o surgimento de novos desequilíbrios e a emergência de ambições não realizadas ou jamais expostas com clareza, que repetidamente ameaçaram a região ao longo das passadas três décadas.

Assim sendo, como podemos andar adiante?

Temos de demarcar áreas de interesses comuns e objetivos partilhados. Em seguida, temos de descobrir métodos cooperativos para alcançar e manter aqueles objetivos.

Há muito mais a nos unir, que a nos separar. Temos de avaliar sobriamente o fato de que temos interesses comuns e vivemos sob ameaças que nos ameaçam também todos, e que temos de lidar com desafios comuns e podemos fazer bom uso de oportunidades comuns. Numa palavra, temos um destino comum.

Irã, suas províncias e seus vizinhos de fronteira
(clique neste "link" ou no mapa para aumentar)
Temos todo o interesse em prevenir tensões na nossa região, em derrotar o extremismo e o terrorismo, em promover a harmonia em várias seitas islâmicas, em preservar nossa integridade territorial, em proteger nossa independência política, em assegurar o livre fluxo do petróleo, em proteger o meio ambiente que todos partilhamos. Esses são imperativos absolutos de nossa segurança comum e de nosso desenvolvimento comum.

Para reverter o ciclo vicioso da suspeita e da desconfiança e andar avante – para construir confiança e unir forças para construir um futuro melhor, mais seguro e mais próspero para nossos filhos – é imperativo que todos mantenhamos em mente três pontos.

Primeiro, é crucial que construamos um contexto inclusivo de confiança e cooperação, nessa região estratégica. Qualquer exclusão será a semente de desconfianças, tensões e crises futuras. Mas o núcleo de qualquer arranjo regional mais amplo que virá tem de começar pelos oito estados do litoral. A inclusão de outros estados trará outras questões muito complexas, que encobrirão os problemas imediatos dessa região e complicarão ainda mais a natureza já complexa da segurança e da cooperação entre nós.

Naturalmente, há preocupações legítimas sobre desequilíbrios e assimetrias potenciais que surgirão dentro de um novo sistema. Preocupações sobre a dominação ou a imposição de ideias de um único país ou grupo de países têm de ser levadas em consideração e receber atenção. Para conseguir um sistema inclusivo baseado em respeito mútuo e no princípio da não interferência, temos de conceber arranjos e acordos sob o manto da ONU. O indispensável contexto institucional já está dado, na Resolução n. 598 do Conselho de Segurança, que pôs fim à desgraçada guerra imposta por Saddam Hussein contra o Iraque, o Irã e toda a região.

Em segundo lugar, temos de ter claro que, por mais que nossa cooperação não se vá fazer à custa de qualquer outra parte e por mais que ela promova maior segurança para todos, sabemos muito bem da variedade de interesses envolvidos cá em nossa região.

A via d’água que nos divide é vital para o mundo, mas a fonte de sua importância não é idêntica para todos os atores.

Para nós, os estados litorais, ela é nossa linha de sobrevivência. Para os que dependem de nós como principais fornecedores da energia da qual carecem, aquela via d’água é elemento crucial para o bem-estar deles, econômico e industrial.

Diferente disso, para os que não dependem dos nossos recursos energéticos, nossa região não passa de importante palco para que estendam seu controle sobre a arena política internacional, e na competição econômica internacional.

Assim sendo, temos de ter em mente que há uma diferença qualitativa entre os interesses dos vários atores envolvidos. Com isso em mente, temos de agir adequadamente.

Em terceiro lugar, o elemento internacional da instabilidade em nossa região brota da divergência na natureza dos interesses das várias potências externas à região e da competição entre elas. A injeção, por elas, de questões alienadas de nós, só complica ainda mais uma situação de segurança já por si muito complexa.

Não podemos esquecer que o principal interesse desses atores externos pode não ser a estabilidade, mas, sim, pode depender de qualquer coisa que justifique a presença deles entre nós. A presença de forças externas tem resultado, historicamente, em instabilidade doméstica dentro dos países que as hospedem e tem exacerbado tensões existentes entre esses países e outros estados regionais.

Estou convencido de que há vontade genuína de discutir esses desafios comuns. São enormes os desafios e as oportunidades que temos pela frente. Vão da degradação ambiental, a tensões sectárias; do extremismo e do terrorismo, ao desarmamento e o controle sobre armas; e vão do turismo e da cooperação econômica e cultural, à construção de confiança e à implantação de medidas que aumentem a segurança. Temos de nos concentrar em iniciar diálogo que resulte em passos práticos, que se expandam gradualmente.

O Irã, conforme ao seu tamanho, à sua geografia e aos seus recursos humanos e naturais, e no usufruto de laços comuns de religião, história e cultura com seus vizinhos, jamais atacou alguém, em quase 300 anos. Estendemos nossa mão em amizade e solidariedade islâmica aos nossos vizinhos, assegurando que podem contar conosco como parceiro confiável.

Nas recentes eleições presidenciais no Irã, que foram manifestação justamente orgulhosa da capacidade do modelo islâmico de democracia para promover mudanças pelas urnas, o meu governo recebeu forte mandato popular para engajar-se em interação construtiva com o mundo, e particularmente com nossos vizinhos. Estamos dedicados a fazer uso desse mandato para instigar mudança para o melhor. Mas não podemos fazê-lo sozinhos. Agora, mais que nunca, é hora de unir as mãos e trabalhar juntos para garantir melhor destino para nós todos; um destino baseado nos nobres princípios do respeito mútuo e da não interferência. Estamos dando os primeiros passos rumo a esse objetivo. Esperamos que se unam a nós nesse caminho difícil, mas recompensador.
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[*] Mohammad Javad Zarif Khansari, atual Ministro de Relações Exteriores do Irã, nasceu em 7 de janeiro de 1960; é um diplomata iraniano e político. Ocupou vários cargos diplomáticos e de gabinete desde os anos 1990. Também é professor associado da University of International Relations de Teerã, ensinando diplomacia e o funcionamento das organizações internacionais. Foi representante permanente do Irã nas Nações Unidas de 2002 até 2007. Ocupou outros cargos nacionais e internacionais, tais como: conselheiro e assessor do ministro das Relações Exteriores, foi vice-ministro das Relações Exteriores em assuntos legais e internacionais, membro destacado do Dialogue Among Civilizations, Chefe do Comitê da ONU para o Desarmamento; é considerado personalidade proeminente da Governança Global e Professor Associado em Relações Internacionais da Universidade Islâmica Azad.


Conflicts Forum Comentário Semanal (15-22/11/2013)

29/11/2013, [*] Conflicts Forum’s
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Oriente Médio e Nordeste da África
A forte sacudida na velha ordem no Oriente Médio, iniciada pelo presidente Obama, mediante a iniciativa síria e, em seguida, a iniciativa iraniana, parece estar respingando sobre o terreno, como um incipiente novo padrão geopolítico. Ainda é o começo, e as tendências podem não ser mais que folhas sopradas ao vento do que já foi chamado de uma ordem global “a-polar” ou “não polar”, a qual, de qualquer modo parece ter perdido as próprias estruturas que empoderavam a velha polaridade do poder. Essa nova “ordem” parece estar ganhando uma feição mais anti-polar – quer dizer, uma recusa de qualquer polaridade, como sua principal característica, e um retorno às velhas noções de soberania e autonomia: talvez menos “ordem”, seja qual for.

Bandar bin Sultan
O impacto dessa desestruturação aparece talvez mais evidente na grande incoerência estratégica de nosso tempo: a aparição tempestuosa de Laurent Fabius em Genebra, para virar o carrinho de maçãs do P5+1, que tão rudemente expôs a falta de acordo ocidental; e a ação irada, destrutiva do príncipe Bandar, são apenas dois exemplos, e há outros.

Os EUA estão-se extraindo militarmente da região para investirem-se militarmente na Ásia. Os EUA talvez até desejassem manter-se no jogo, mas o país está superexigido militarmente e financeiramente – e está obrigado a definir prioridades. Obama foi explícito na fala à Assembleia Geral da ONU; disse que isso significa que os EUA reduzirão rigorosamente as prioridades nas quais consumirão ativos políticos e militares, limitando-as a apenas quatro. A política dos EUA é “sem política”, além disso. E, seja como for, a opinião pública nos EUA já não está tolerando que os EUA sejam sugados ou por Israel ou pela Arábia Saudita, para novas guerras no Oriente Médio que interessam àqueles países e não interessam aos EUA.

Já está bem claro, também, que os aliados regionais dos EUA não estão conseguindo atender aos interesses dos EUA: não conseguiram nem conter o Irã nem estabilizar a Síria (e, de fato, estão ativamente desestabilizando tudo) e, mais importante, já está bem claro que não são capazes de lidar com o crescimento de células jihadistas. É hora de um novo equilibramento do poder: daí o realinhamento com o Irã (e com a Síria, a qual mostrou capacidade para, sozinha, infligir significativa derrota aos jihadistas).

Rei Abdullah
Arábia Saudita
E, de repente, dois outros estados também sentem o chão escapar-lhes debaixo dos pés. Durante 50 anos, a Arábia Saudita foi capaz de pagar para que os outros pensassem à sua moda e implementassem políticas exteriores que a interessavam. O dinheiro podia tudo. Mas nem cuidaram de construir institucionalmente o próprio país, nem de construir coisa alguma socialmente significativa, e deram por garantida a própria liderança sobre o mundo muçulmano, mesmo sem fazer coisa alguma para criar base sólida também para essa “liderança”. Tudo foi “terceirizado” e delegado a prestadores de serviços (predominantemente, os serviços secretos dos EUA e europeus). O Reino Saudita tem poucos verdadeiros amigos na região (e não os tem nem no Conselho de Cooperação do Golfo). A possibilidade de um estado xiita “revolucionário” que surge no procênio quase certamente marca o fim do sonho do rei Faisal, de impor o wahhabismo como única voz legítima do Islã; e, sim, pode empurrar o Islã para direção muito diferente, fazendo-o inimigo do salafismo.

Para a Arábia Saudita, considerar a possibilidade de aliar-se a Israel, não é estratégia: é desespero. Devem-se lembrar os violentos protestos domésticos, na Arábia Saudita, contra as tropas norte-americanas estacionadas no país durante a última Guerra do Golfo. As tensões internas só crescem, na Arábia Saudita. O país absolutamente não pode continuar como está: já entrou em situação de instabilidade dinâmica, que terá de acabar, mais cedo ou mais tarde, de um modo ou de outro.

Israel também está em situação semelhante. Comentaristas israelenses já observam, compungidos, que Israel sempre “terceirizou” a defesa de seus interesses regionais, entregando-a aos EUA, como se fosse “advogado” de Israel com procuração para negociar; mas agora – com o advento do “desinvestimento” dos EUA que deixa a região – Israel descobre que não tem lugar seu em nenhuma das mesas de negociação nas quais se discutem interesses vitais seus (a participação na mesa de negociação palestina é questão de relutante necessidade, muito mais que de entusiasmo genuíno).

Além do mais, a mudança, feita pelo Partido Labor em 1992/3, que abandonou a política de Ben-Gurion para Israel, quando Israel buscava suas alianças entre minorias regionais e na periferia – para passar a buscar aliados entre estados árabes – já esgotou o período de validade. Entre os israelenses, já é visível a conclusão de que essa estratégia trouxe ralos benefícios (e os levantes árabes serviram para cristalizar essa ideia).

A tentativa de Netanyahu de jogar Putin contra Obama não deu certo
Israel também anda à cata de novos parceiros e aliados (que não sejam só os muito incertos sauditas). A recente tentativa de Netanyahu de jogar Putin contra Obama não deu certo. Alguns em Israel veem as reservas de gás e petróleo como instrumento que pode ser como alavanca numa nova “coalizão” do Leste do Mediterrâneo: Israel vê a Grécia e Chipre como colaboradores óbvios num gasoduto para a Europa – e observa a Itália como seu corredor potencial para a Europa.

O objetivo aqui é que, fornecendo energia a Europa (Israel já está conectada à grade europeia de eletricidade), Israel sente que finalmente adquiriria “legitimidade”, sobretudo se a França puder ser incluída. Também é significativo, de certo modo, que Israel pareça estar entendendo que sua via para a legitimidade internacional deva ser buscada numa aproximação com o território europeu – mais do que na própria região.

É ideia de certo modo atraente, mas parece que Israel está sendo excessivamente “emocional” sobre a política potencialmente explosiva das reservas de gás e petróleo do Leste do Mediterrâneo, onde sua “coalizão” enfrentará dura disputa de poder pela demarcação Zonas Exclusivas de Comércio [orig. Exclusive Economic Zones, EEZs] do Mediterrâneo, e a implantação de qualquer gasoduto para a Europa. Há um estouro da manada de elefantes nessa sala.

No frigir dos ovos, Israel talvez conclua que precisa de seu próprio canal de comunicação com o Irã, muito mais do que se manter completamente dependente dos EUA (comentaristas respeitáveis já entendem que Israel excedeu-se perigosamente na oposição contra o Irã; que já apostou nisso mais do que pode pagar, e que esse erro fundamental já está, agora, à vista de todos e resultou no isolamento de Israel). Mas essa mudança de orientação terá provavelmente que esperar pela posse de um novo primeiro-ministro em Israel.

Parece também que o principal parceiro potencial de Israel no campo da energia, a Turquia, já está sendo vista por Israel como pouco confiável demais, em termos políticos, para ser considerada parte dessa sua “coalizão do Mediterrâneo Leste”, o que lança ainda mais dúvidas sobre o próprio projeto de gasoduto turco. Verdade é que a Turquia também está fazendo seu próprio “reequilibramento” à luz da mudança da política dos EUA para a Síria, para priorizar o combate contra os jihadistas, em vez da “mudança de regime”. Uma Ancara arranhada tem trabalhado para remendar suas pontes com Maliki em Bagdá, e procura reviver alguma parceria com o Irã (deixando de lado as diferenças sobre a Síria).

Conversações e Acordo Temporário Irã e P5+1
A Rússia tem-se mantido, em boa medida, sentada à distância, durante esses recentes episódios (negociações do P5+1 e a Síria, depois do acordo das armas químicas). O presidente Putin, é claro, há muito tempo percebeu que a política internacional entrou num estágio instável e volátil de incoerência: e, se a solidariedade ocidental está visivelmente em frangalhos (Fabius, outra vez), Putin pode bem ter concluído que é melhor que a Rússia se mantenha distanciada, assistindo, enquanto o munto unipolar vai-se reconfigurando, a partir das margens. É claro que a Rússia tem vários interesses básicos, e eles estão se modificando, na concepção, como resultado dos eventos regionais.

A Rússia tem o objetivo primordial de conter a derrapagem da União Europeia em direção à quebradeira, e de conter também a volta ao modo histórico de hostilidade contra a Rússia. É o caso, sobretudo, depois de a Europa ter engolido, na União Europeia, alguns estados da Europa Oriental que não manifestam qualquer afeto por Moscou. A metodologia é promover a Alemanha e ganhar alavancagem política, assumindo o monopólio do fornecimento de energia para a Europa. A Rússia não tem interesse em se tornar alvo da concorrência nem de Israel nem do Qatar, nem quer que algum consórcio israelense-Mediterrâneo Oriental interfira nos seus planos.

E nesse ponto a crise síria teve papel importante: russos e iranianos descobriram-se numa via de clara aproximação ao longo dos últimos dois anos, embora ainda haja alguma cautela residual. Mas as relações passaram, efetivamente, por transformação radical – uma mudança revolucionária. O Irã não se está opondo ao desejo dos russos de fornecerem gás à Europa; em vez disso, o Irã quer abrir um papel complementar para as exportações de energia iraniana (e iraquiana). E o Irã partilha o mesmo interesse russo, de manter (ou, mesmo, de fixar) o preço do gás. Irã e Iraque olharão para o oriente (e para os vizinhos imediatos), possivelmente com o apoio das multinacionais ocidentais de petróleo; e a Rússia olhará para o ocidente, para a União Europeia.

Adullah al-Badri, Secretário Geral da OPEP na apresentação do Relatório/2013
Viena (7/11/2013)
Números recentemente divulgados pelos EUA mostram que a China pode já ter ultrapassado os EUA e já ser o maior consumidor de petróleo do mundo (embora a China conteste alguns detalhes estatísticos). O que interessa é que a demanda chinesa deve crescer exponencialmente nos próximos anos, e a maior parte dessa energia (60%) vem de fontes no Oriente Médio (o Iraque é hoje o segundo maior fornecedor da China, na sequência de pesados investimentos chineses no país). As sanções contra o Irã têm muito a ver com o foco chinês no Iraque, com as exportações iranianas para a China já reduzidas, do terceiro, para o sexto lugar na lista, efeito da virada chinesa na direção do petróleo iraquiano.

O que tudo isso tem a ver com a negociação no P5+1 e Irã? Ajuda a explicar por que a abertura iraniana não visa exclusivamente – sequer principalmente – aos EUA. Desde o início, a política iraniana andou na direção de transformar suas relações com todo o mundo: abrir-se amplamente para relações amigáveis (inclusive com o Golfo), e demonstrar séria transparência no esforço para resolver as diferenças com os EUA. Não havia real expectativa em Teerã de que o conflito com os EUA pudesse ser completamente resolvido (porque há impedimentos da lei dos EUA, contra levantarem-se as sanções), mas havia o sentimento generalizado de que seria possível des-escalar a tensão com os EUA e de que surgiriam “bolsões” de cooperação.

As conversações com os estados ocidentais talvez fracassem. Mas ainda que aconteça assim (efeito da sabotagem por França/Israel/Sauditas), não implicará um fracasso da política per se. É possível que os EUA, agindo independentemente, continuem a des-escalar as tensões e busquem áreas de cooperação com o Irã (no Afeganistão, na Síria, etc.). Mas, mais significativo – se os elementos ocidentais do P5+1 se engalfinharem uns contra os outros e se mostrarem incapazes de chegar a um acordo com o Irã, ainda assim se verá o edifício das sanções já começando a descascar. Muitas (mas não todas) as sanções nada tem além de tênue (se é que tem alguma) base legal, e a aplicação sempre dependeu muito mais de ameaças pelo Tesouro dos EUA, do que de alguma força de lei. Em resumo: o edifício das sanções norte-americanas pode bem começar a ruir, se os EUA perderem o apetite pela ação violenta nessa queda-de-braço. E é possível que outros estados assumam a liderança na busca de acomodação com o Irã – o que deixaria os EUA isolados. O sentimento de recusa “anti-polar”, contra qualquer autoridade polar é fator importante nessa equação das sanções contra o Irã.

O Eixo do Mal, França, Israel e Arábia Saudita
E se se chegar a uma acomodação? Um dos resultados inesperados da crise síria é que a Rússia descobriu que suas relações com a Síria e o Irã deram-lhe (literalmente) mais poder. Isso ajudou a tornar efetiva a diplomacia russa; deu influência e destaque internacional à Rússia; e deu à Rússia uma plataforma no Oriente Médio. E ajudou a assentar as bases para uma cooperação energética estratégica entre Rússia, Irã e Iraque. O Irã quer fornecer gás à Síria e ao Líbano, através de um gasoduto de alta capacidade; Síria e Líbano estão próximos dos depósitos de gás do leste do Mediterrâneo. Em resumo, esses fluxos podem unir-se aos planos russos para Braço Sul do seu gasoduto.

Por tudo isso, qualquer resolução bem-sucedida no P5+1 será péssima notícia para o Golfo, tanto politicamente quanto economicamente. Resultado positivo lá desequilibrará a equação de energia, com desvantagem para alguns estados do Golfo, viciados em alta produção e altos preços. Com aumento na produção iraquiana (e recente aumento na produção iraniana), aumentará a pressão sobre a Arábia Saudita e outros, para reduzir a produção e manter os preços. A renda desses estados será afetada.

O elemento estranho nesse quadro é o Egito. Onde o Egito buscará suas novas alianças? Há alguns sinais de que o Egito tem hoje mais interesses em comum com a Síria, do que com a Arábia Saudita. Mas nenhum egípcio diz palavra, sobre isso.



[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.


O talento de fazer-se sumir – “Disappearing Acts”

[*] Terry Eagleton, London Review of Books, vol. 35, n. 23 (2013), pp. 39-40
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Resenha de A Portrait of Thomas Aquinas [Um retrato de Tomás de Aquino], de TURNER, Denys. Thomas Aquinas: A Portrait, Yale, 300 pp, £18.99, 5/12/2013 (maio), ISBN 978 0 300 18855 4



Capa do livro de de Denys Turner, Thomas Aquinas: A Portrait

Nascido em 1225 ou perto disso, em Aquino, pequena cidade do sul da Itália, Tomás de Aquino frequentou a Universidade de Nápoles e, ainda na cidade, integrou-se à Ordem dos Dominicanos. Viajou então para o norte, para prosseguir seus estudos com Alberto, O Grande - também Dominicano - em Paris e Colônia. Foi nomeado palestrante e depois professor da Universidade de Paris e voltou a Nápoles para organizar ali a casa de estudos dos Dominicanos. Morreu em 1274, em viagem para Roma onde participaria do Segundo Concílio de Lion, mas bateu a cabeça num galho baixo de árvore e morreu. Foi canonizado 50 anos depois.

Richard Dawkins
O curso plácido da vida de Aquino contrasta fortemente com a magnificência de suas realizações. Esse frade taciturno, de cuja personalidade notável sabe-se muito pouco, está entre os maiores teólogos, só comparável a São Paulo e a Santo Agostinho. Das suas publicações, a pedra central é a assustadoramente grande Summa Theologiae. No seu estilo seco, ríspido, contido, esse formidável compêndio de teologia, metafísica, ética e psicologia vai desde as celebradas demonstrações, por Tomás, da existência de Deus, à vida moral, Cristo e os sacramentos. Hoje, a Summa é parte considerável dos fundamentos intelectuais da Igreja Católica Romana, embora jamais tenha gozado de tal prestígio, em seu tempo. Representava então apenas uma dentre várias escolas medievais escolásticas e em vários momentos foi objeto de muita controvérsia.

Para desconsolo de alguns padres tradicionais, Tomás de Aquino estava convencido de que o pensamento do pagão Aristóteles oferecia os recursos filosoficamente mais valiosos para expor a fé cristã, e foi por essa poderosa síntese, sobretudo, que Aquino conquistou seu lugar entre os imortais da filosofia. O conflito em torno de Aristóteles foi particularmente feroz na Universidade de Paris, onde muitos colegas de Tomás de Aquino abraçaram as doutrinas de Agostinho e do neoplatonismo, e consideravam o pensamento de Aristóteles incompatível com o cristianismo. O que Aquino fazia então era guerra por palavras, embora ninguém jamais suspeitasse, se considerado o estilo sem crispações, sempre em tom menor.

Daniel Dennett
Como Marx, Tomás de Aquino também mergulhou num caldeirão fervente, contra a autoridade, por ser materialista. Não que insistisse na ideia absolutamente tediosa de que só há matéria, nada além de matéria. O seu materialismo não era reducionismo brutal, como, tampouco, o de Marx. Tomás de Aquino acreditava na alma, exatamente como Daniel Dennett e Richard Dawkins não acreditam; mas acreditava, dentre outras razões, porque pensava que a alma leva à compreensão a mais rica possível dessa eclosão de matéria chamada corpo. Como Wittgenstein observou: se quiser uma imagem da alma, olhe o corpo. A alma, para Tomás de Aquino, não é algum tipo de “extra” fantasmagórico, como para os cristãos platonizantes de seu tempo; que não se veja a alma como um rim espiritual ou o espectro de um pâncreas.

Dado que a linguagem é matéria que significa, assim, para Tomás, é o corpo, que deve ser visto, para ser mais bem visto, não como um objeto, mas como um significador. Por trás dessa crença está uma teologia da Palavra que se fez carne, e em particular da Eucaristia, na qual aquela Palavra está presente na transformação do pão e do vinho em algo, assim como aquele significado está presente num signo verbal. Segue-se dos ensinamentos de Tomás de Aquino, que não há o tal de corpo morto. Um cadáver é apenas o que resta de um corpo, uma massa de material do qual saiu o significado, como numa hemorragia; não é mais o artigo genuíno.

Amy Winehouse
1983 - 2011
Tomás dizia claramente que se algo não envolve o meu corpo, então não me envolve. Posso não estar fisicamente presente junto a você pelo telefone, no sentido de partilharmos o mesmo espaço material, mas estou corporalmente presente para você, do mesmo modo. Cristianismo tem a ver com a transfiguração do corpo, não com a imortalidade da alma. Aquino certamente acreditava em almas desencarnadas, mas nem por isso entendia que a alma de alguém fosse alguém. Nunca lhe ocorreria pensar que a alma desencarnada de Amy Winehouse seria Amy Winehouse. A identidade humana, pensava ele, é uma identidade animal. Como Turner argumenta nessa biografia, Tomás de Aquino pensava, diferente dos platonistas, que “somos completamente animal, animal da cabeça ao pés”. Os que protestam que assim se deixaria de fora um extra invisível chamado alma deixam escapar sem ver, simplesmente, a natureza peculiarmente criativa dessa animalidade.

Dito em termos impolidos, temos o tipo de mente que temos, por causa do tipo de corpo que temos. Nosso pensamento, por exemplo, é discursivo, avança no tempo, como avança, porque nossos sentidos-experiência também são assim. O papel dos conceitos abstratos, ensinou ele, é enriquecer nossa experiência, não torná-la ainda mais rala. Marx argumenta exatamente na mesma direção, nos Grundrisse.

Tomás de Aquino também pensava que a metáfora seria o modo de linguagem mais adequado aos animais humanos, por causa de seu caráter concreto, sensorial. Embora seja frequentemente acusado de racionalismo escolástico sem sangue, está, em vários sentidos, muito mais perto dos empiricistas. O objeto natural da mente, ele insiste, não é Deus, o ego ou ideias, mas coisas materiais. Qualquer conhecimento que tenhamos de Deus tem de começar aqui e, em particular, com aquele patético fracasso de um objeto natural conhecido como Jesus. (Em frase esplendidamente esculpida, Turner escreve de Jesus, que foi “executado extrajudicialmente por recomendação de um comitê corrupto de pessoas muito religiosas”.)

Mas não que a expressão “conhecimento de Deus” soasse como perfeitamente não problemática aos ouvidos de Tomás de Aquino. Teria prontamente concordado com Dennett e Dawkins, que quando falamos de Deus, não sabemos, realmente, do que falamos. (Sobre Dawkins, Turner observa, ácido, que “não há uma única frase em toda a teologia de Tomás de Aquino que [Dawkins] seja capaz de formular com clareza suficiente para negá-la com eficácia”).

Piers Morgan
Para Aquino, toda a linguagem sobre Deus é metafórica, acerta ou erra, correndo constantemente contra os limites do dizível. Os cristãos dizem, por exemplo, que Deus é um, não vários; mas como qualquer outro fragmento de fala-de-Deus, esse também não pode ser tomado literalmente. Deus não é, na visão de Aquino, alguma espécie de ser, princípio ou entidade que possa ser contado com outras entidades que tais. Não é sequer alguma espécie de pessoa, como há quem diga que Piers Morgan seja pessoa. Deus e o universo não fazem dois. Sejam quais forem os demais erros que os crentes cometem, não ser capaz de contar não é um deles. Os crentes não defendem que haja um objeto a mais, no mundo, além dos que há. Deus, para Aquino, não é coisa no ou fora do mundo, mas o campo de possibilidade de tudo, seja o que for. Se caíssemos fora de suas mãos, mergulharíamos no nada; e a fé é confiança em que, por mais odiosos que sejamos uns para os outros, ele não nos deixará escapar entre os dedos.

A doutrina da Criação não é conversa fiada científica, como racionalistas do século 19 demodés como Dawkins pressupõem. Como Turner argumenta, ela trata realmente da extrema fragilidade das coisas. Aquino acredita que tudo que existe é contingente, no sentido de que não há absolutamente necessidade que as coisas supram. Deus fez o mundo por exigência do amor, não da necessidade. É ser gratuito, o que é o mesmo que dizer que é questão de graça e dom.

Como uma obra de arte modernista, ou como alguém contemplando a própria mortalidade, o mundo está cheio de um senso de nada, que brota da consciência, que dá nó na cabeça, de que o que é poderia perfeitamente jamais ter sido. A Criação é o ato gratuito original. Tomas de Aquino não pensa que podemos controlar o mundo, precisamente porque não podemos controlar o nada, seu contrário; mas entende que seja racional perguntar por que há algo, e não nada, como alguns filósofos não fazem. E, dado que pensa que a resposta a essa pergunta é Deus, essa, Turner argumenta, é a razão pela qual ele afirma a existência de Deus, a qual, embora em sentido algum seja autoevidente, pode ser demonstrada racionalmente.

Tem, pois, crença tipicamente católica no poder da razão, diferente de um ceticismo protestante do intelecto, que seria obscurecido e corrompido. Mas, apesar de que morremos, sem a razão, e apesar de a razão ir até bem longe, ela não completa o serviço, como tampouco o completa, para Marx ou Freud. No fim, o que sustenta a razão é a fé, que é um tipo de amor. Nem Dawkins se daria o trabalho de meter-se em seu laboratório, não fosse por algumas crenças e compromissos subjacentes.

E que essa foi a via pela qual Tomás de Aquino viu o assunto, foi dramaticamente ilustrado bem no final de sua vida. Algo aconteceu a ele no dia 6/12/1273. Não se sabe se teve uma visão, um colapso nervoso ou ambos. Mas depois de uma vida de produção quase sobre-humana (a certa altura, quando escrevia sua Summa Theologiae, estava produzindo o equivalente a dois ou três romances de tamanho médio, por mês), abandonou a pena. Consta que teria dito ao seu secretário que nunca mais escreveria depois do que vira naquela dia, “porque tudo que escrevi não passa de palha”. Seguiram-se três meses de silêncio, e a morte.

Meister Eckhart
Sete oitavos da Summa já estavam prontos, e Turner vê um significado teológico nessa incompletude. Como o mundo, do modo como Aquino o compreendia, aquele mais fino dos trabalhos de teologia encerra-se com o silêncio. Turner extrai grande aproveitamento do que se pode chamar de o anonimato de Aquino, o fato de que ele se apaga, some, em sua escrita meticulosa, distanciada, sem arroubos, como que para impedir que a personalidade se interponha entre o leitor e a verdade. Paulo e Agostinho se entretecem eles mesmos em cada palavra, e Meister Eckhart, na expressão de Turner, é “um show de efervescência”. Mas Tomás de Aquino é “o santo quase completamente invisível”, um mestre na arte de sumir-se, cuja nenhuma ostentação é, ela própria, uma forma de totalidade. Se seu texto parece não ter autor, se recusa-se a cintilar, é porque, como observou certa vez, melhor lançar luz aos outros, que brilhar por brilho próprio. Nesse sentido, pode ser adequado que a Summa suspenda-se, finalmente, em silêncio, dado que o autor já tinha os lábios bem cerrados, desde o início. Se se empurra a razão até o mais longe que ela pode ir, pode acontecer de, como no sublime kantiano, ela iluminar, por negação, o que está além de seus limites.

Se Tomas de Aquino depôs deliberadamente a pena, há um sentido no qual ele escolheu a pobreza do espírito, acima da realização do intelecto. Essas são duas virtudes caracteristicamente dominicanas. É importante entender que ele foi frade, não monge. Os monges, como os cistercianos e beneditinos, vivem vida de oração e trabalho reclusos, longe do mundo, e seus monastérios são construídos para ser enclaves de ordem, paz e estabilidade. Enraizados num só ponto, os monges visam à autossuficiência, criando as próprias granjas, mantendo escolas pagas, fabricando licores exóticos e coisas do gênero.

Frades, como os dominicanos e os franciscanos, ao contrário, vivem da mão para a boca, na miséria, como mendigos que dependem da caridade das pessoas comuns. Como os monges, também vivem em comunidades, mas, diferentes deles, perseguem a própria missão nas ruas. Os frades são sujeitos urbanos, os monges são, na maioria, rurais. O objetivo original dos frades é liberar a teologia dos claustros e colégios, para que se torne o que esse livro chama de “prática multitarefa nas ruas”. Os dominicanos, em particular, combinam oração e pobreza, como o próprio Jesus. Têm de ser livres de quaisquer posses; e têm de manter o celibato (para não terem de arcar com deveres domésticos), para poderem ir aonde sejam necessários, flexíveis, disponíveis para os que cheguem. Diferentes dos evangelizadores de televisão nos EUA, também têm de deixar claro àqueles aos quais servem, que, ali, eles nada ganham.

Nada disso valeu aos dominicanos do tempo de Tomás de Aquino uma imagem respeitável. Eram vistos quase sempre como vagabundos e parasitas, “gangues de enganadores dedicados à autopromoção”, como Turner escreve sem meias palavras, que supunham que o mundo teria obrigação de sustentá-los. Enquanto os jesuítas são figuras do establishment, os dominicanos são os lobos solitários intelectuais da igreja. Em nossos dias, tem havido jungianos, marxistas, hippies, pacifistas e wittgensteinianos radicais. Como escritores, palestrantes, professores, pregadores e intelectuais públicos, sua forma especial de santidade exerce-se mediante a palavra.

Karl Marx
Tomás de Aquino, membro da pequena aristocracia italiana, estava destinado pela família à ordem dos beneditinos, mas chocou-os todos, ao decidir tornar-se dominicano. Foi, mais ou menos, como se o príncipe Harry se alistasse no Partido dos Trabalhadores Socialistas (orig. Socialist Workers Party). Alguns de seus irmãos o separaram à força dos dominicanos e o puseram em prisão domiciliar por um ano, no castelo da família. Com tocante solicitude fraternal, também tentaram demovê-lo da decisão de tornar-se frade: mandaram ao quarto dele uma prostituta nua, tática pouco efetiva para um homem que declarou a contemplação o maior de todos os prazeres. Tomás de Aquino afinal achou sua saída, e escreveu a Summa, como uma espécie de recurso pedagógico para seus irmãos dominicanos. Nas palavras de Turner, foi “o escrito que os pregadores mendigos devem carregar com eles; é uma teologia do homem pobre, o Cristo pobre como teologia. Como para Marx, a teoria a serviço da prática”.

É Tomás de Aquino quem, sobretudo, deu forma ao que se pode chamar de uma característica visão católica da realidade. Para esse modo de ver, o modo como as coisas são não é só o modo como dizemos que elas sejam. Ao contrário, o mundo é rico e intrincado de pleno direito dele, feito de camadas complicadas, mas significativamente estruturado, e até Deus Todo Poderoso deve reconhecer esse fato. Poderia ter criado um cosmos no qual não houvesse mousse de chocolate ou Bruce Willis; mas dado que não o fez, tem de curvar-se à lógica de sua própria criação, em vez de reivindicar o direito de decidir, feito prima-donna caprichosa, que os pinguins se ponham a praticar salto com vara ou que a Cidade do Cabo apareça no hemisfério norte.

George Best
1946 - 2005
Mesmo assim, é a mente humana que, na visão de Tomás de Aquino, traz as coisas à fruição, de tal modo que falar delas é fazê-las ser mais plenamente o que elas já são. Os indivíduos podem trazer-se uns à fruição dos outros, no sentido de que o ser deles é completamente relacional, de cabo a rabo. No centro da visão moral de Tomás de Aquino está a ideia da amizade. É esse tipo de amor, não o amor erótico ou romântico, a melhor imagem do inabordável, inimaginável, amor de Deus, que convoca homens e mulheres a serem seus amigos, não seus servos. Tomás de Aquino, para quem a vida humana é comunitária até a raiz, nunca teria compreendido o individualismo moderno. Nem jamais compreenderia o preconceito neoliberal segundo o qual o poder, a autoridade, os sistemas, as doutrinas e as instituições são inerentemente opressivos.

De um ponto de vista tomista, todo o ser é benigno. É bom em princípio, e o mal é uma espécie de não-ser. Em homens e mulheres, é a forma defectiva de existência dos que jamais acharam jeito de ser humanos.

Jacqueline du Pré
1945 - 1987
Os seres humanos vivem em amarga carência de redenção, como pode comprovar qualquer um que leia jornais; mas essa redenção não é rudemente imposta sobre eles na contramão do que desejem. Ao contrário, a natureza deles acolhe, hospitaleira, essa transformação profunda, e anseia por ela, mesmo quando eles nem são inteiramente conscientes disso. A vida moral envolve cortar através de densa camada de falsa consciência e de uma autoenganação pia após outra, para descobrir o que nós realmente, fundamentalmente, desejamos.

Deduz-se da visão do ser de Tomás de Aquino que vida boa é vida florescente, ricamente abundante. Quanto mais uma coisa é ela mesma, melhor se torna. Santos são os supremamente bem-sucedidos na exigente tarefa de ser humano, os George Bests e as Jacqueline du Prés da esfera moral. Moralidade não é questão de dever e obrigação (Turner lembra que o léxico moral tomista praticamente nem registra essas palavras), mas de felicidade e bem-estar.



[*] Terry Eagleton alcançou o Doutorado com apenas 24 anos de idade; começou sua carreira estudando a literatura do século 19 e do século 20, até chegar teoria literária marxista pelas mãos de Raymond Williams. Atualmente Eagleton tem integrado os estudos culturais com a teoria literária mais tradicional.
Seu livro mais conhecido é Teoria da literatura: uma introdução (1983, rev 1996), em que traça a história do estudo de texto contemporâneo desde os românticos do século 19 até os pós-modernos das últimas décadas. Apesar de permanecer identificado com o marxismo, o autor se mostra simpático a desconstrução e outras teorias contemporâneas.

Já em Depois da teoria (2003), também lançado em português, Eagleton afirma que hoje em dia tanto a teoria cultural quanto a literária são "bastardas", mas não conclui que o estudo interdisciplinar de ambas não tem algum mérito. O que ele conclui, na verdade, é que o absoluto não existe, fazendo coro a própria desconstrução.