domingo, 12 de setembro de 2010

A vida no Talibanistão (2/3) - 2. O grau zero da cultura

3/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online – Traduzido pela Vila Vudu

Segundo de uma série de 3 artigos:

1. Meta esses infiéis na cadeia, 2/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online

3. Casado com a máfia, 3/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online

Leia também artigo publicado por este autor, já traduzido pela Vila Vudu, imediatamente depois desta série:

O “Af-Pak” e o Novo Grande Jogo, 8/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online


Há dez anos, o Talibã no Afeganistão – o Talibanistão – vivia um pesadelo social, cultural, político e econômico. Há dez anos, o fotógrafo sediado em New York, Jason Florio e eu atravessamos sem pressa as terras do Talibanistão, de leste a oeste, da fronteira com o Paquistão em Landi Kotal à fronteira com o Irã em Islam Qillah.


Que dias, aqueles! Bill Clinton curtia suas últimas aventuras na Casa Branca. Osama bin Laden não passava de hóspede discreto de Mullah Omar – e só ocasionalmente chegava às primeiras páginas dos jornais. Ninguém suspeitava de que viria o 11/9, ou a invasão do Iraque, ou a “guerra ao terror”, nem se cogitava do reposicionamento da griffe “guerra do Af-Pak”, nem de uma crise financeira global. Reinava a globalização, e os EUA eram, sem quem os desafiasse, o cão-alfa. O governo Clinton e os Talibãs já estavam enfiados bem fundo no território do Oleodutostão – discutindo o tortuoso recém-proposto gasoduto Trans-Afegão.


Tentamos de tudo, mas não conseguimos ver, nem de longe, Mullah Omar. Osama bin Laden também se mantinha afastado de todos os olhares. Mas experienciamos o Talibanistão em ação, detalhadamente. Por que, então, revisitá-lo agora?


O que se faz aqui é ao mesmo tempo lançar um olhar a um mundo há muito tempo perdido e abrir uma janela para um futuro possível no Afeganistão. Há quem diga que pouco mudou. Ou mais coisas mudaram?


Então, partamos outra vez de volta para o futuro.


KANDAHAR – O setor de arte nos ministérios do Emirado Islâmico do Afeganistão parecia cortesia de um involuntário Salvador Dali; pinturas de cabeça para baixo, mesas sem nada sobre elas, exceto um walkie-talkie, telefones mudos, mapas em versões psicodélicas. Só a esquizofrenia fazia sentido; na embaixada do Emirado em Islamabad, por exemplo, havia um mapa da “República Democrática do Afeganistão”.


O escritório de Abdul Haiy Mutmain correspondia ao esperado. Há dez anos, Mutmain era ministro da Informação e Cultura em Kandahar – o Talibã Central. Na ausência do loquaz, peripatético Ahmad Wakil – porta-voz oficial de Mullah Omar –, Mutmain era o nome do jogo na cidade. “Eleições? Que eleições? Eleições são incompatíveis com a sharia. Rejeitamos todas as eleições.”


Como o punhado de correspondentes ocidentais que andavam pelo Talibanistão há dez anos, muito antes do 11/9, eu morria de vontade de encontrar o legendário Mullah Omar e seu único olho. Nenhuma chance; o homem era mais misterioso que O Sombra, mesmo em Kandahar. Ele só estivera duas vezes em Kabul – e saiu mais depressa do que entrou. Suas três esposas viviam em Singesar, onde Omar nasceu, uma baixada empoeirada de cabanas feitas de tijolos de lama, onde nenhuma menina jamais pusera os pés numa escola – de fato, nem havia escola; só a madrassa do próprio Omar, pouco mais que uma tenda de chão batido com acolchoados para os alunos.


Omar jamais foi fotografado, jamais se reuniu com diplomatas estrangeiros (o que ainda é verdade até hoje). Suas famosas “ordens” ainda chegavam escritas em papel de embrulho ou de maços de cigarro. Sobre sua mesa de trabalho, mantinha um cofre de alumínio cheio de afganis e outro com dólares americanos; era o Federal Reserve afegão.


Era fácil sentir em Kandahar o quanto a agenda inicial dos Talibãs era restaurar a paz no país, desarmar a população, impor a lei da sharia e defender a “integridade islâmica” do país. Kandahar era como uma madrassa gigante. O francês Jean Baudrillard, filósofo da cultura – ainda vivo naquele tempo – classificaria aquilo como o grau zero da cultura (remix islâmico). A principal atividade cultural era beber suco de manga. Um gigantesco painel na Praça dos Mártires – Times Square de Kandahar – exibia uma frase de Mullah Omar: “Não se dividam entre tribos e grupos étnicos; não façam como judeus e cristãos.”




Todas as conversas com Talibãs de alto coturno implicava ouvir sempre o mesmo tema; não temos dinheiro, porque somos vítimas de uma conspiração internacional; assim, não podemos desenvolver o país. De nada adiantou lembrar que, pelo preço de um tanque, poderiam facilmente asfaltar a horrenda estrada Kabul-Kandahar.


Em 2000, a linha oficial do Talibã era lutar para obter reconhecimento internacional (só o Paquistão e os Emirados Árabes Unidos reconheceram o governo Talibã; até a Arábia Saudita negou-lhes reconhecimento). Mutmain costumava lamentar sem parar a ameaça de sanções, e falava sobre o papel “negativo” dos dois, EUA e Rússia; Mullah Omar havia aventado a ideia de que “EUA e Rússia uniram-se para formar uma aliança anti-Afeganistão”. Mutmain insistia que “A ONU faz o que a Casa Branca quer”. E, em oposição a todas as evidências, também insistia que “Não temos qualquer preconceito contra os xiitas”.





Sua noção de democracia era a seguinte: “O termo ‘democracia’ tem vários significados. Em nosso país significa proteger a vida, as propriedades e a cultura de nosso povo. Nosso país quer esse tipo de governo.” O que levou à definição Talibã de cultura: “O povo aqui é muçulmano, esse é um país religioso. Somos contra os costumes que contrariam a religião do Islã. Protegemos a cultura islâmica e afegã”. E sempre se recusou a elaborar sobre essas ideias.


A ética do trabalho nos ministérios do governo Talibã era monolítica. Chovessem os mísseis de Clinton, o Irã ameaçasse invadir, enchentes matassem metade da população, os ministérios só trabalhavam das 8h ao meio-dia. Depois vinham as orações e uma longa sesta. E no final da tarde, grande concentração de turbantes à frente da Casa Branca de Mullah Omar em Kandahar. Nem sinal, nunca, é claro, nem do próprio Omar nem de seu famoso hóspede, Inimigo Público n. 1 dos EUA, Osama bin Laden.


Onde está Osama?

Mais de um ano antes do 11/9, Bin Laden já era herói das massas. Para um empresário sírio, um estudante malaio e um empresário paquistanês, era um fanático; mas para os jovens pobres, urbanos, radicais em todo o “Af-Pak”, era icônico – versão revista e melhorada de Maomé como Profeta-Guerreiro, um anti-Cristo capaz de desafiar os EUA. Eu já vira imagens de Osama bin Laden, camisetas, vídeos e fitas, por todo o caminho desde Peshawar no Paquistão, a Roma Islâmica, até Kandahar; e havia contrabando daqueles itens da Caxemira para Java, da Palestina para o sul das Filipinas.


Eu já aprendera tudo o que havia para aprender sobre Bin Laden em Peshawar, a Meca dos exilados afegãos e do furor pashtun, acompanhado de infindáveis jantares de kebabs e arroz à Kabul, com as pernas cruzadas sobre tapetes tribais, e engolidos com infinitos copos de chá verde. Aqueles solenes anciãos pashtun reclinados em almofadas baratas de veludo made-in-China eram verdadeiros mestres-Scheherazade na arte de tecer narrativas hipnóticas – versão letal, high-tec e low-tech, das Mil e Uma Noites.


Falavam e falavam de o quanto Bin Laden era alto, discreto, elegante, generoso, frugal, de pouco dormir, que costurava ele mesmo suas roupas, que distribuía malas cheias de dinheiro. De como Bin Laden apaixonou-se primeiro por Peshawar no final de 1979, logo depois de o Exército Vermelho entrar em Kabul. Como veio para ficar em 1982 e logo depois inaugurou a primeira hospedaria-quartel para os guerreiros árabes da jihad , ao lado de seu ex-mestre Abdullah Azzam. Como recrutaram uma autêntica Legião Estrangeira Islâmica. Como aquele foi o melhor dos mundos – onde ninguém pensava em combater a monarquia saudita ou o Grande Satã norte-americano.


Como, em 1988, ele já tinha um banco de dados com todos os guerreiros da jihad e uma nebulosa de voluntários que fluía pelos campos de treinamento; assim era “al-Qaeda” (“a Base”). Como Bin Laden disparou seu primeiro tiro anti-EUA na Somália, em 1993. Como mudou-se para o Sudão, depois para o Afeganistão. Como lançou sua declaração de jihad contra os EUA, em 1996. E como céluas móveis, interconectadas em todo o mundo adotaram o espetáculo do terror como meio para seduzir as porções dos deserdados do Grande Banquete Capitalista.




Mais de um ano antes do 11/9, os EUA já estavam impondo à psicologia mundial a imagem de Osama bin Laden como criminoso inexplicável, patológico; o grau zero do terror. Mas os anciãos de Peshawar me contavam, à sua maneira, que Bin Laden, escondido como toupeira, era mais próximo, de fato, do grau zero da Reconquista, movimento do Islã para reconquistar seu primado. Não pude me impedir de sentir que as duas versões eram falsas.


E então, em Kandahar, podia acontecer de ele aparecer na esquina, jantando kebabs na Casa Branca de Mullah Omar...



Mesmo em Kandahar era visível que, para os Talibãs, o que realmente interessava não era alguma jihad pan-Islâmica; queriam o controle sobre sua terra. Era também mais do que visível que não havia qualquer sistema no Talibanistão. Todos tinham o monopólio da autoridade. Ninguém aceitava qualquer outra autoridade que não fosse sua autoridade. A cultura deobandista odeia a esfera pública; só se interessa pelo meticuloso respeito ao dogma. Afinal, para os deobandistas, o estado é considerado ímpio desde que os britânicos conquistaram a Índia em 1857.


Nesse contexto, qualquer mínima exceção era positivamente uma delícia. Como um jovem, polido, bem educado funcionário do ministério das Relações Exteriores em Kandahar – pouco mais que uma sala, de tijolos, nos subúrbios da cidade, perto do aeroporto, famoso como pista de pouso dos aviões da Indian Airlines seqüestrados na virada do milênio; o funcionário insistia que a melhor coisa que eu poderia fazer em Kandahar seria “cair fora daqui o mais depressa possível”.





Bem, eu já havia conhecido também o grau zero da cultura na Universidade de Kabul – que um dia já fora uma das 12 melhores do mundo, como vários professores fizeram questão de dizer. Absolutamente nenhuma mulher; seria “anti-sharia”.


Em espanhol fluente, o homem extraordinário responsável pela biblioteca, Muhamad Kabir-Nezami, guiou-me por um arquivo cujos nomes – naquela aridez de terra perdida – soavam como ídolos de jade: Marx, Freud, Gibbon, Spinoza, Bernard Shaw. Kabir-Nezami contou-me que, depois de muito sangue e fúria Talibã, só restavam na biblioteca 20%, talvez 30% dos livros; e ele não sabia como teriam sido salvos.


Um grupo de professores mostrou-me a plena extensão da tragédia. A universidade fora literalmente posta abaixo, demolida. “Começamos a reconstruir do que encontrávamos – livros, sistema elétrico, canos d’água”. Algumas ONGs ajudaram. Mas nenhum apoio internacional para a reconstrução. Nada. Por causa das sanções que o Conselho de Segurança da ONU impôs, no final de 1999.


Naquele momento, a universidade era dirigida por um – e como não seria – maulvi (sacerdote), Muhamad Monin. Quando disse que “os professores ensinam a importância de uma imprensa livre” os próprios professores – que assistiam à entrevista – entreolharam-se com melancolia infinita. Mas de repente um dos professores contradisse o maulvi. Houve debate, em pashtum – inominável heresia, no que tivesse a ver com os Talibã. Pressionado pelos professores, o maulvi teve afinal de admitir que “a universidade está sendo afetada também pela situação política”.


Passei vários dias deprimido. Desse material faz-se o grau zero da cultura; um grupo de eminentes professores, numa universidade que já esteve entre as melhores do mundo, submetidos aos sermões de um aluno de madrassa medíocre que jamais passou do equivalente a uma escola primária.


[continua]

A segunda parte do artigo original, em inglês, pode ser lida em:

LIFE IN TALIBANISTAN, Part 2 - The degree zero of culture