sexta-feira, 16 de março de 2012

A ditadura brasileira aparece na Itália




Publicado em 15/03/2012 por Urariano Motta

Recife (PE) - A recente denúncia do Ministério Público contra o coronel Curió terminou por mencionar um romance escrito por mim. Da Europa aos Estados Unidos, a ditadura brasileira é manchete. E creiam: na Itália, no desenvolvimento dessa notícia, hoje se mencionou Os Corações Futuristas, um romance escrito por este colunista.

Estranho e contraditório é o mundo. Ou a vida é um magnífico escritor de ironia. Lembro que “Os corações futuristas” foi escrito em um quartinho no quintal da casa onde eu morava, e se completou sem nenhuma esperança de publicação. E de tal modo, que contraí um empréstimo bancário para com ele inaugurar o ano de 2.000, com direito a coquetel e juros que até hoje não saldei. Há exatos seis anos, em 16 de março de 2006, sobre o livro falei em uma entrevista publicada no La Insignia, de onde recupero alguns trechos:

- Como você teve a inspiração para escrever Os Corações Futuristas?

- A inspiração, nesse caso, se houve, não foi um estalo. Não veio assim de repente, caída no cérebro sem que se esperasse. Os Corações Futuristas é um romance de formação, é a narrativa de uma geração que se fodeu e quis amar sob a pior ditadura brasileira. É o romance de uma época do lema ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’. E nós amávamos muito, muito e muito o Brasil. Disse ‘nós’ como num ato falho. Isso é esclarecedor porque Os Corações Futuristas é um livro que veio sendo escrito, sem que disso eu tivesse consciência. A vida vinha escrevendo-o comigo e para mim. Às vezes, eu dizia, numa brincadeira e meio sério, ‘no dia em que eu escrever um livro sobre a militância, ela não vai gostar’. Mas não foi bem assim, porque depois, durante a escrita, vi que meu olhar alcançava tanto a crueldade quanto a compreensão. É o livro sobre a melhor juventude que eu conheci. Uma gente generosa a ponto de jogar a vida pela força das idéias. Mas, ao mesmo tempo, assim impunha a verdade, que eu não podia alisar a cabeça, vendo-a só no heroísmo. Gente capaz de covardias também, de traições sórdidas, porque é dessa massa que a vida é feita.

- Você disse que Os Corações Futuristas fala da melhor juventude que você conheceu. Então podemos dizer que é autobiográfico?

- Todo livro, por mais estranho à pessoa do autor, é autobiográfico, na medida em que fala de uma forma ou de outra sobre acontecimentos ou interesses dele. Mas responder assim é uma fuga, reconheço. A sua pergunta, bem sei, é mais precisa e específica: trata-se de saber onde o autor, a vida do autor, acontecimentos íntimos da sua vida, estão nas páginas ali apresentadas. Sim, mais uma vez, sim, a vida e as pessoas que eu conheci estão em Os Corações Futuristas. Ele é verdadeiro, nada nele é falso, postiço, quero crer. É o mundo da ditadura que eu senti. É o mundo terrível que faz até hoje ex-presos políticos levantarem-se de madrugada, e dizerem para a mulher, ‘arruma a mala, arruma a mala, que a polícia vem aí’.

- Que influência, então, representa viver no Brasil, para sua escrita e a de outros escritores?

- Fundamental. Este é o nosso berço e identidade. E dizer isso não é reivindicar um exclusivismo de nação, uma estreiteza nacionalista. É apenas dizer que estar e viver no Brasil é ir além de um acidente geográfico. É a língua e a vida da nossa infância, são as pessoas e a gente que nos fizeram e que levaremos conosco aonde formos, ainda que não estejam ao lado como pessoas físicas. O ser múltiplo, a gente múltipla da nossa memória. Como pode ver, isso é universal, cada escritor, cada pessoa é história da sua gente, em todo e qualquer lugar do planeta.

O particular da nossa literatura, a diferença, se se busca isso, está em que ninguém poderá falar com mais autoridade sobre a nossa dor quanto nós mesmos. Na literatura não há brazilianistas. Pode haver críticos literários, mas em dor brasileira nenhuma autoridade virá de laboratório exterior...

Pois o Brasil é não só o país do grande futebol e da maravilhosa música popular. O Brasil é uma imensa contradição, é a miséria material e humana que vê o paraíso ao lado, a menos de 50 metros. Combater isso é um pequeno assalto aos céus.

Na Itália, hoje, o romance volta à notícia: Brasile alla resa dei conti con la dittatura militare. Parte il primo processo”.

Jamais poderia imaginar que uma denúncia contra o coronel Curió, o bárbaro que cortava cabeças de jovens presos, terminasse por lembrar aqueles corações de futuro.

Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

Enviado por Direto da Redação

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