O estranho caso de como a Líbia
virou questão eleitoral nos EUA
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
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Ira Chernus |
Quem perdeu a Líbia? De fato, quem
perdeu todo o Oriente Médio? Eis duas perguntas candentes que estão por trás da
sequência infindável de manchetes sobre o “Benghazi-gate” [1].
Mas a pergunta que todos deveríamos estar fazendo é outra: Como um incidente
trágico, mas isolado, num consulado dos EUA em local do qual poucos
norte-americanos algum dia ouviram falar, é inflado até se converter em questão
em torno da qual passou a girar toda a disputa presidencial nos EUA, que
continua empatada?
Minha opinião, curta: isso
aconteceu por causa da persistência do mito de uma política externa de poder; a
ideia, já velha de décadas, de que os EUA teriam algum direito inalienável a ser
“donos” do mundo e a controlar tudo e todos os lugares. Quero dizer: ninguém
pode perder poder que nunca teve.
A campanha eleitoral em curso nos
mostra como as coisas pouco mudaram, desde o início da Guerra Fria, quando os
baluartes Republicanos gritavam “Quem perdeu a China?” [2].
Mais
de 60 anos depois, ainda é surpreendentemente fácil preencher com alta ansiedade
o enorme vácuo político: basta acusar o adversário de ter “perdido” um país, ou,
pior ainda, toda uma grande região da qual os EUA, sabe-se lá como ou por quê,
supunham que fossem “donos”.
A
fórmula “Quem perdeu...?” opera como truque mágico. Não há como perceber o modo
como funciona, a menos que desviemos nossa atenção, dos que gritam
‘advertências’ de perigo e alarme, para olhar o que realmente se passa por baixo
dos panos.
Quem
manda aqui?
O estranho caso em Benghazi já
começou cheio de surpresas. Só um raro comentarista [3]
não repetiu a “explicação” que se lia por todos os cantos, segundo a qual os
eleitores, em 2012, pouca importância dariam a assuntos externos. Que, agora, só
“a economia, estúpido!”. Que temas externos só criariam breve agitação e mais
nada; e tratariam, claro, de Afeganistão, Paquistão ou China.
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Embaixador Christopher Stevens |
Apesar
disso, a morte do embaixador dos EUA na Líbia, J. Christopher Stevens, e três
outros cidadãos dos EUA virou grito de campanha contra Barack Obama. O que torna
o caso ainda mais surpreendente: quando começaram a chegar notícias da tragédia,
tudo levava a crer que, como caso político, a coisa não prosperaria.
Mas, dia seguinte, com as
primeiras notícias sobre as mortes já em todos os veículos, Mitt Romney também
já estava nas manchetes, acusando seu concorrente: “A liderança norte-americana
é necessária para assegurar que os eventos na região não fujam de
controle”.
[4]
Presidente tem de mostrar “decisão ao aplicar nosso poder” e prontidão para usar
“força total”. Barack Obama falhara nas duas frentes, disse Romney, como o
comprovariam as mortes em Benghazi.
O candidato Republicano foi
devidamente criticado por “politizar” o incidente. Foi criticado, praticamente,
por todos os lados [5].
Até Ed Rogers, conhecido porta-voz dos Republicanos, escreveu que “Romney
tropeçou” [6]
e que “o presidente Obama disse a coisa certa, no tom certo”.
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Mitt Romney |
Romney jamais retirou uma linha do
que dissera no primeiro dia – mas, de algum modo, as mesmíssimas palavras, de
início denunciadas como “não presidenciais”, foram-se transformando
misteriosamente em argumentos poderosos contra a reeleição do presidente. Um mês
adiante, nova narrativa já dominava as manchetes: as críticas de Romney no caso
da Líbia “acertavam o alvo” [7],
mudando a dinâmica [8],
e estavam tendo papel fundamental [9] no ressurgimento
de sua campanha.
Essa
mudança de tom refletia, pelo menos em parte, com certeza, a necessidade primal
da imprensa-empresa, que precisa de disputa equilibrada, para manter cativo o
interesse dos consumidores. No momento em que ocorreram as mortes na Líbia,
todos concordavam que Obama começava a ampliar a vantagem sobre Romney, a qual,
a partir dali, poderia ser decisiva; qualquer coisa que aumentasse as chances de
Romney seria sempre bem-vinda em qualquer mesa de editor de veículo-empresa.
Há
notícias que, por mais que o editor insista, nunca “pegam”; mas a história da
Líbia “pegou”. De algum modo ecoou nos corações e mentes de muitos
norte-americanos. É preciso entender por quê.
Grande
parte dessa explicação reside no poder das palavras-chaves na primeira fala:
“poder” e “controle” [orig. might e control]. Seus estrategistas
capturaram, naquela fala, uma verdade básica da política norte-americana: o
público tem apetite insaciável por histórias sobre desafios ao poder global dos
EUA e o pressuposto direito de os EUA controlarem o mundo. Então mandaram Romney
repetir, insistir e insistir, naquela versão da narrativa.
Em seu primeiro grande discurso
sobre política exterior [10],
Romney absolveu o adversário de qualquer responsabilidade direta nas quatro
mortes, mas acusou Obama de pecado mil vezes pior. Num arriscado salto de
imaginação, converteu o incidente em Benghazi em ponta de lança de vasto assalto
contra os EUA: “Nossas embaixadas foram atacadas. Nossa bandeira foi queimada
(...) Nossa nação, atacada”. O trabalho do presidente é nos proteger, dominando
nossos inimigos – disse Romney. É nosso consistente currículo de vitórias, tanto
quanto nossos valores, que fazem os EUA “excepcionais” – e durante o turno de
guarda de Obama, como o incidente em Benghazi teria provado, os EUA e seu
excepcionalismo foram-se, todos, pelo ralo.
Não
foi simples exagero, ao denunciar a “fraqueza” presidencial. Como já fizera no
primeiro dia, Romney outra vez levantava questão até mais crucial em qualquer
narrativa popular da política exterior dos EUA: “quem é o encarregado-em-chefe
hoje e aqui?”.
Afinal,
de que serve ser superpotência global, se não consegue controlar os eventos em
todo o mundo? Como disse Romney: “É responsabilidade do nosso presidente usar o
grande poder dos EUA para modelar a história”. E nisso, nesse ponto
absolutamente crucial, Romney insistiu, Obama falhara miseravelmente; e um
embaixador dos EUA pagara, por essa falha, com a própria vida.
Uma
mitologia bipartidária
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O debate Romney Obama |
Os debates deram a Romney uma
chance para afinar seu ataque. No segundo, Obama driblou habilmente as acusações
sobre a Líbia (embora, de fato, jamais tenha respondido a qualquer delas). À
altura do terceiro debate
[11],
os estrategistas de Romney, parece, não viram vantagem e viram muitos riscos em
pressionar sobre a questão líbia. Mas ainda viam grande possibilidade de ganho
em manter ativada a questão mais “geral”. Então Romney rapidamente deixou para
trás a questão líbia. Disse que “Estamos vendo, em nação após nação, grande
número de eventos perturbadores”.
Construiu
seu argumento com imagens de medo: “Vejo o Oriente Médio com uma maré montante
de violência, caos, tumulto (...) Dá para ver a al-Qaeda entrando ali”. O poder
em Washington precisava ser devolvido às mãos certas, para que, “sob o manto da
liderança firme”, os EUA possam “ajudar o Oriente Médio” a fazer retroceder a
“maré crescente do tumulto e da confusão” e submeter os terroristas.
Tradução: Durante décadas
praticamente todos os governos no Oriente Médio, o coração energético do mundo,
foram nossos aliados (mais exatamente, nossos fregueses [12],
embora esse palavrão não possa ser usado em ambientes de gente fina). Nós
construíamos
[13]
os exércitos deles, apoiávamos as ditaduras deles, e contávamos com eles para
calar qualquer manifestação de antiamericanismo. Agora, sob Obama, essa área
crucial do mundo, que sempre mantivemos sob nosso tacão, está fugindo ao
controle. Perca o controle, porque fracassa no exercício de nosso poder, e
acabou-se nossa segurança nacional.
Poder, força, controle e segurança
nacional são, todos, partes do mesmo pacote; nada mais importante para os EUA –
e Obama estava deixando tudo isso ir-se pelo ralo. E por aí ia a narrativa
Republicana (apesar de copiosos documentos vazados sobre “a
armação/ manipulação/ golpe na Líbia, construída(o) dentro do
Congresso
[14]).
O que até aí vinha sendo apresentado como grande trunfo de Obama – afinal, é o
homem que matou Osama bin Laden – passava, de repente, a parecer muito pouco.
Os
Democratas de fato responderam, construindo história espantosamente semelhante
sobre uma (como disse o presidente no 3º debate) “liderança forte e firme”, a
qual, diziam os Democratas estava conseguindo impedir que o Oriente Médio
ficasse fora de controle. Em outras palavras, os EUA, de fato, não perderam, de
modo algum, a Líbia. Mas essa foi a única diferença entre os dois e o único
aspecto sobre o qual houve alguma disputa.
O debate entre Republicanos e
Democratas não se trava entre objetivos no Oriente Médio, onde os dois lados
assumem pleno apoio a ditadores amigos como na Arábia Saudita [15]
e
no Bahrain [16],
e os dois lados concordam quanto à necessidade de eleições democráticas,
pluralismo religioso, imprensa livre, direitos assegurados às mulheres, reforço
ao capitalismo de livre empresa e quanto à destruição de todos os terroristas
islamistas.
Em
termos mais amplos, Republicanos e Democratas concordam, como concordam há
décadas, que o objetivo principal, superior, dominante da política exterior de
Washington tem de ser modelar a história, controlar o mundo e fazê-lo cópia
perfeita dos valores norte-americanos e forçá-lo a trabalhar a favor dos
interesses dos EUA. Essa visão mítica da política exterior dos EUA é raro
exemplo de consenso e perfeita sintonia entre os dois partidos.
Quando falo de mito, não estou
dizendo que seja mentira. Estou dizendo que é uma narrativa
fundacional
[17]
do poder norte-americano que manifesta o que assumimos de mais basal sobre o
mundo – uma história segundo a qual toda e qualquer nação do planeta é, em
teoria, nossa; só não será, se nós a “perdermos”.
Para
muitos norte-americanos (embora não seja bem assim no resto do mundo), essa
narrativa não reflete húbris ou arrogância ou intoxicação pelo poder imperial. É
normal: é senso comum. Ao longo de nossa história, no coração da mitologia
nacional dominante sempre houve, assumida, a ideia de que os EUA seriam “a
locomotiva do mundo” e todas as demais nações seriam “o reboque” (como Dean
Acheson, Secretário de Estado do presidente Harry Truman, disse certa vez). A
razão era simples (pelo menos para os norte-americanos): éramos a primeira e a
maior nação fundada sobre verdades morais universais que seriam, supostamente,
autoevidentes para qualquer pessoa razoável.
Claro
que controlar o mundo atenderia nossos interesses de vários modos tangíveis. Mas
nosso autointeresse principal, reza o mito, sempre foi e sempre será o
aprimoramento moral – quiçá, a perfeição – de todo o mundo. Servindo a nós
mesmos, servimos a toda a humanidade.
A
mais furiosa batalha política que há ou pode haver
A única questão que vale a pena
debater, portanto, é como podemos usar nosso poder preponderante e nossa riqueza
do modo mais produtivo e esperto, para manter o controle efetivo. Muitos
norte-americanos contam com que seu presidente saiba o que fazer.
Simultaneamente, muitos norte-americanos temem que ele não saiba. Um pilar mais
recente da narrativa dos dois partidos – o mito da insegurança da
pátria
[18]
–
sugere coisa diferente.
Segundo
esse mito, não importa a força militar máxima que acumulemos, nem o controle
máximo que exerçamos, sempre há “uma maré montante de tumulto” em algum canto do
mundo, que ameaça nossa segurança nacional. A todo momento, em algum ponto do
mundo, temos algo crucial a perder. O nome da ameaça pode mudar com
surpreendente facilidade. Mas o perigo tem de estar em algum lugar. É essencial,
para manter o mito, a narrativa, a história.
E aquela narrativa, por sua vez, é
hoje essencialmente importante em todas as eleições presidenciais. Como Maureen
Dowd, colunista do New York Times escreveu certa vez, “Todas as eleições
seguem a mesma narrativa: o pai forte conseguirá proteger a casa, contra os
invasores?”
[19]
(Pensem em Ronald Reagan e o conto dos reféns iranianos [20],
ou em George W. Bush e o 11/9
[21]).
Se um dos candidatos é o presidente, a questão passa a ser: “Mostrou-se pai
suficientemente forte para controlar o mundo e, assim, proteger a casa?”.
Todos os desafiantes apostam nessa
ansiedade, recolhendo o exemplo mais à mão, o mais acessível do dia, como gancho
ao qual se penduram as sempre idênticas acusações de fraqueza e omissão ante
perigos. Desde os dias do “Quem perdeu a China”, os Republicanos jogam essa
carta com notável competência [22].
Esse ano, parecia que um Democrata
que “avançou”
[23]
no Afeganistão, matou bin Laden e conduziu pessoalmente [24]
uma campanha de assassinatos em massa (também individuais), armado com
drones e diretamente da Casa Branca teria, sem dúvida possível, protegido
bem o flanco direito contra esse previsível ataque do Grande Velho Partido
[orig. Great Old Party, GOP, os Republicanos]. Então, o destino doou as
mortes em Benghazi à campanha de Romney, às salas de redação dos jornais e
televisões, e a considerável porção do público norte-americano. Dê-se ao pessoal
da campanha de Romney um mérito que é deles: perceberam a oportunidade logo ao
primeiro momento do primeiro dia.
Mitt
tinha de perguntar “Quem perdeu a Líbia?” e, em seguida, converter a pergunta em
“Quem perdeu o Oriente Médio?” – não só para melhorar suas chances, mas também
porque parte muito significativa dos eleitores ansiavam por esse “debate.”
Afinal, cada vez que surge a pergunta “Quem perdeu........ [preencha a
lacuna]?”, a própria pergunta reafirma, simultaneamente, tanto a promessa de que
merecemos, mesmo, controlar o mundo, quanto a perturbadora ansiedade de que
estamos sob risco de perder o que nos pertence por direito.
O
que, apesar das dimensões trágicas, não passou de evento de guerra na Líbia,
passou a ser a questão central de uma campanha eleitoral presidencial nos EUA,
porque comprovou que é, nas eleições de 2012, a palavra código que aciona todo
o pacote mitológico. Para muitos norte-americanos, a mais profunda sensação de
segurança pode advir, simplesmente, de sentir que nossa mitologia tradicional –
as velhas lentes familiares através das quais vemos nossa nação e seu papel no
mundo – permanece intacta.
Mas, no horizonte, já é impossível
não ver uma outra questão que começa a aparecer: por quanto tempo ainda
sobreviverá essa mitologia? Foi grave e profundamente ferida na Guerra do
Vietnã, quando a fantasia do controle global foi violentamente sacudida pela
realidade. A mesma ferida voltou a abrir-se, com quantidades terríveis de
sangue, em várias guerras, hoje, sem sentido e sem resultados
aproveitáveis
[25]
e nos conflitos no Iraque, no Afeganistão e por toda a parte.
Hoje,
estão em curso tantas mudanças inquietantes em todo o mundo, que nem se as pode
prever, muito menos controlá-las. Não tarda – talvez já em 2020, talvez mesmo em
2016 – o grito de batalha já seja, quem sabe, “Quem perdeu o mundo?”.
Já
é até possível imaginar que, algum dia, os norte-americanos conseguirão abordar
o debate do qual realmente precisamos – sobre eleger um novo paradigma de
política exterior adequado ao mundo real, hoje, onde a fantasia do controle
global já se tornou irrelevante, porque os fatos mais corriqueiros já a
contradizem bem evidentemente, enquanto declina o poder dos EUA e outras nações
já vão, aos poucos, ganhando força.
Mas
que ninguém espere que a velha mitologia morra morte silenciosa, discreta. A
batalha política entre o velho mito contra novo mito é a mais furiosa batalha
política que há ou pode haver.
Notas
de rodapé
[14] Idem nota [13]