quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Guerra ao Irã: Cuidado! Os “especialistas” estão chegando!


31/10/2012, David Sirota, Salon
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Se você é político norte-americano, deseja começar guerra contra o Irã e também deseja ser reeleito, você tem problemas. Depois de mais uma década de guerras, pesquisas mostram [1] que dos dois lados, entre Republicanos e Democratas, os eleitores querem menos intervenção militar em terras distantes. Contudo, também há pesquisas que mostram [2] que uma mínima maioria consideraria a ideia de apoiar uma guerra contra o Irã se se descobrisse que o país estivesse construindo armas nucleares.

Essa deve ser a explicação para ainda haver tanta gente [3] favorável a mais guerras, políticos e jornalistas, [4]que não se cansam de repetir que o país está(ria) cansado de saber que, sim, o Irã está(ria) construindo armas nucleares. E, por causa dessa martelação incansável, há pesquisas que mostram que muitos norte-americanos creem piamente que, sim, o Irã está(ria) construindo as tais armas.

Nada, contudo, mais longe da verdade. Apesar de matéria, semana passada, no New York Times  [5] sobre a usina Fordo, no Irã, insistir ainda em criar o fantasma de um Irã nuclear, a verdade é que: (a) a Agência Internacional de Energia Atômica [6] e (b) todo o aparato de inteligência dos EUA já disseram que não há prova alguma, até agora, de que o Irã esteja construindo armas nucleares.

Mapa aerofotogramétrico de instalações nucleares do Irã
O próprio Times [7] informava, há alguns meses, sob a manchete “Agências da inteligência dos EUA não veem qualquer movimento na direção de o Irã construir armas nucleares”; e o jornal também informava que “avaliação feita pelas agências de espionagem dos EUA confirmam amplamente informes de 2007, segundo os quais o Irã abandonou, já, há anos, seu programa de armas nucleares”. Na sequência, o mesmo Times acrescentava que “essa avaliação foi amplamente reafirmada num [documento] 2010 National Intelligence Estimate; e permanece como avaliação consensual das 16 agências de inteligência dos EUA”.

Nos meses vindouros, à medida em que a ideia de guerra plena contra o Irã vai-se tornando mais real e mais central na política dos EUA, essas informações de inteligência provavelmente serão desmentidas. Simultaneamente, muitos começarão a perguntar-se por que os EUA estarão iniciando mais uma guerra “preventiva” no Oriente Médio, se os espiões norte-americanos são tão incompetentes e nossa inteligência tão trapalhona.

O debate, se chegar a esse ponto, conseguirá, provavelmente, corroer ainda mais o já menos que morno apoio que tem hoje a guerra com o Irã. O que nos levará de volta ao problema inicial dos políticos pró-guerra – como conseguirão continuar a defender a ideia de mais guerra?

Como já apareceu em recente entrevista com um dos principais congressistas da Comissão de Segurança Nacional, a resposta é: eles farão o diabo para convencer o país de que guerra não é guerra, recurso sempre útil quando não há argumento que ajude a promover guerra altamente impopular. É o que já se vê nesse vídeo da CNN, pouco divulgado, de entrevista com o presidente (Republicano) da Comissão de Inteligência da Câmara de Deputados Mike Rogers. [8]

Mike Rogers
Como ThinkProgress alerta [9], a única notícia, naquele vídeo, é que Rogers começa a introduzir na discussão geral um argumento vicioso, a saber: que bombardear o Irã nos levará “a um passo da guerra”.

Vê-se aí uma tendência perturbadora, porque esse linguajar orwelliano é assustadoramente semelhante ao usado pelo governo Obama, quando tentava convencer a nação de que a guerra da Líbia não seria guerra. Daquela vez, a palavra-golpe foi “ação militar cinética” [10]; agora, passaríamos a viver “a um passo da guerra”. Mas nos dois casos as palavras têm o significado que têm em discursos à moda 1984 de Orwell: guerra é paz ou, no mínimo, não é guerra-guerra-mesmo-prá valê.

O motivo superevidente desse golpe de mão é conseguir capar completamente qualquer participação democrática, nas decisões sobre segurança nacional – um dos ideais sempre presentes entre os princípios fundantes da democracia norte-americana. Afinal de contas, se a guerra já não está classificada como guerra... o presidente fica dispensado até de fingir que precisa de autorização do Congresso – que a Constituição exige – para envolver o país em conflitos militares.

A exigência de que o Congresso autorize ou não o presidente a envolver o país em guerras foi incluída na Constituição, desde o início, especificamente para assegurar que haja, pelo menos, algum debate público, nas decisões sobre guerra e paz. Mas... se já não se fala oficialmente de “guerra”, Washington pode fazer o que dê na telha de alguém lá, sem sequer ser obrigada a perguntar se o país quer o mesmo que Washington quer.



Notas de rodapé

[1] 25/10/2012, Los Angeles Times, Paul Richter em: Most Americans want less foreign involvement, polls show

[2] Idem Nota [1]

[3] 17/9/2012, ThinkProgress, Bem Ambruster em: “Misinformation On Iran’s Nuclear Program Pervades Sunday Talk Shows

[4] 12/10/2012, The Guardian, Glenn Greenwald em: “Martha Raddatz and the faux objectivity of journalists

[5] 25/10/2012, New York Times, David E. Sanger e William J. Broad  em: “Iran Said to Nearly Finish Nuclear Enrichment Plant


[7] 24/2/2012, New York Times, James Risen e Mark Mazzetti em: U.S. Agencies See No Move by Iran to Build a Bomb

[8] 24/10/2012, ThinkProgress, CNN vídeo a seguir:

[9] 24/10/2012, ThinkProgress, Bem Ambruster em: GOP Rep Says Strike On Iran’s Nuclear Facilities Would Not Be An Act Of War

[10]  24/3/2011, Político, Jonathan Allen, em: “Kinetic military action” or “war”?

Vença quem vencer, Obama ou Romney: As relações dos EUA com o mundo árabe mudarão


30/10/2012, The Independent, Robert Fisk em Information Clearing House
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Robert Fisk
Depois dos gestos e palavras de amor eterno de Obama-Romney a Israel, semana passada, os árabes puseram a pensar para decidir, com calma, qual dos dois candidatos seria melhor para o Oriente Médio. Parece que preferirão Barack Obama; mas o problema – como sempre – é o fato triste, patético, obscenamente óbvio, de que essa decisão não fará nem um átomo de diferença.

George Bush invadiu o Iraque depois de dar permissão a Ariel Sharon para prosseguir na colonização da Cisjordânia ocupada. Obama caiu fora do Iraque, ampliou a guerra de aviões-robôs, os drones, na fronteira Paquistão-Afeganistão e depois meteu o rabo entre as pernas, quando Benjamin Netanyahu informou-o de que nem se discutiria qualquer possibilidade de Israel retirar-se para as fronteiras de 1967. Em vez de ordenar “Sim, Israel se retirará”, como presidente forte e independente, Obama lá ficou, encolhido em sua poltrona na Casa Branca, enquanto o Primeiro-Ministro de Israel lhe dizia, com todas as letras, que a Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU – o próprio fundamento do inexistente “processo de paz” – era letra morta.

Desde então, Mitt Romney, que parece entender tanto de Oriente Médio quanto aquele pastor texano que queimou um Corão, só faz repetir que os palestinos “não têm interesse algum em fazer a paz” e até hoje ainda não conseguiu explicar satisfatoriamente por que, em 2005, como governador de Massachusetts, mostrava-se tão interessado em instalar escutas clandestinas em mesquitas. Assim sendo, só resta desejar boa sorte aos árabes.

Mas a verdade é que o próximo presidente não terá liberdade para definir qualquer política independente para o Oriente Médio. O amancebamento com Israel continuará – a menos que Israel ataque o Irã e arraste os EUA para mais uma guerra no Oriente Médio. 

De novidade, isso sim, é que, pela primeira vez na história dos EUA, o candidato que consiga ser eleito presidente terá de lidar com um novo mundo árabe, com um novo mundo muçulmano.

O "Despertar Árabe" na Praça Tahrir no Cairo, Egito (Junho/2012)
O ponto crítico é que o Despertar Árabe (acabemos, por favor, para sempre, com a conversa de “primavera”) manifesta a voz de gente que exige ser tratado com dignidade. Há aí também muçulmanos não árabes – e que outra coisa seria, senão isso, a minirrevolução dos Verdes iranianos, depois das últimas eleições no Irã?

E devem-se somar os milhões de muçulmanos que vivem na parte do mundo que nós ainda gostamos de chamar de Oriente Médio – que nada parece ter de “médio”, para quem viva lá – e que, agora, também planejam tomar decisões próprias, baseados nos próprios desejos, não nos desejos dos sátrapas ex-presidentes e dos patrões dos sátrapas, em Washington. La Clinton continua sem dar sinais de ter percebido isso. Obama talvez veja. Romney? Aposto que não acertaria o nome de nenhuma das nações da região, no mapa, exceto um, claro.

Ao contrário do que o ocidente crê, que os árabes estariam lutando por “democracia”, a batalha e a tragédia do Oriente Médio hoje – e seja qual for o saldo da revolução “soft” na Tunísia ou da carnificina na Síria – acontecem em torno da palavra “dignidade”, sobre o direito de, como ser humano, dizer o que deseja que seja feito a quem ele decida dizer, e nunca mais admitir que um déspota se apresente como proprietário de um país inteiro (desde que autorizado a tanto pelos EUA) e trate, países e cidadãos, como se fossem sua propriedade privada.

Sim, revoluções são confusas. A revolução egípcia não saiu como se pensou que sairia. A Líbia está rachando ao meio. A Síria é um cataclismo. Mas o povo árabe afinal começou a falar e, doravante, os árabes saberão exigir que seus presidentes e primeiros-ministros obedeçam aos seus desejos, não a ordens de Washington ou de Moscou.

Diferente da crença cara aos Romneys, para os quais haveria déficit de valores civilizacionais entre os árabes – que perderiam de longe para os valores da civilização de Israel – os povos do Oriente Médio estão comprovando exatamente o contrário. É processo lento, negócio demorado: todos os leitores que nesse momento leem esse artigo já estarão mortos, ou muito velhos, antes de que a “revolução” árabe se complete.

 Enoch Powell
Mas os tempos em que presidentes dos EUA davam instruções aos potentados do Oriente Médio sobre o que dizer e fazer, esses tempos estão acabando. Ainda demorará para que venha abaixo o regime saudita, com todas as outras bombas de gasolina espalhadas pelo Golfo. E é preciso dizer que a tragédia dos palestinos, provavelmente, está e sempre esteve no coração do Despertar Árabe.

Infelizmente, os palestinos são os únicos que não se beneficiam das revoluções árabes. Já não resta terra suficiente, aos palestinos, para que tenham Estado seu. Aí está fato acima de qualquer enrolação [orig. above peradventure [1]] (como dizia Enoch Powell [2]).

Quem ainda duvida, compre passagem e voe até Israel e olhe para a Cisjordânia. Não há mais espaço para os palestinos; essa é a tragédia real que os presidentes dos EUA, sejam quais forem, têm de encarar nos anos futuros.



Notas de tradução
[1] Orig. “[acima de] peradventure”. Termo arcaico, em desuso. A expressão “Acima de peradventure” significa “acima” ou “à prova” de qualquer argumento real ou inventado, e até, como os tradutores preferiram, “acima de qualquer enrolação”. Tradução tentativa. Todos os comentários, correções e sugestões são bem-vindos.
[2] Enoch Powell (1912-1998). Deputado conservador, ministro da Saúde da Grã-Bretanha nos anos 60. Foi poeta e linguista. Famoso por um discurso “Rios de sangue, de 1968, contra a entrada de imigrantes na Inglaterra, considerado racista (em inglês).

Quem perdeu o mundo?


O estranho caso de como a Líbia virou questão eleitoral nos EUA

30/10/2012, Ira Chernus, Tom Dispatch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Ira Chernus
Quem perdeu a Líbia? De fato, quem perdeu todo o Oriente Médio? Eis duas perguntas candentes que estão por trás da sequência infindável de manchetes sobre o “Benghazi-gate” [1]. Mas a pergunta que todos deveríamos estar fazendo é outra: Como um incidente trágico, mas isolado, num consulado dos EUA em local do qual poucos norte-americanos algum dia ouviram falar, é inflado até se converter em questão em torno da qual passou a girar toda a disputa presidencial nos EUA, que continua empatada?

Minha opinião, curta: isso aconteceu por causa da persistência do mito de uma política externa de poder; a ideia, já velha de décadas, de que os EUA teriam algum direito inalienável a ser “donos” do mundo e a controlar tudo e todos os lugares. Quero dizer: ninguém pode perder poder que nunca teve.

A campanha eleitoral em curso nos mostra como as coisas pouco mudaram, desde o início da Guerra Fria, quando os baluartes Republicanos gritavam “Quem perdeu a China?” [2].

Mais de 60 anos depois, ainda é surpreendentemente fácil preencher com alta ansiedade o enorme vácuo político: basta acusar o adversário de ter “perdido” um país, ou, pior ainda, toda uma grande região da qual os EUA, sabe-se lá como ou por quê, supunham que fossem “donos”.

A fórmula “Quem perdeu...?” opera como truque mágico. Não há como perceber o modo como funciona, a menos que desviemos nossa atenção, dos que gritam ‘advertências’ de perigo e alarme, para olhar o que realmente se passa por baixo dos panos.

Quem manda aqui?

O estranho caso em Benghazi já começou cheio de surpresas. Só um raro comentarista [3] não repetiu a “explicação” que se lia por todos os cantos, segundo a qual os eleitores, em 2012, pouca importância dariam a assuntos externos. Que, agora, só “a economia, estúpido!”. Que temas externos só criariam breve agitação e mais nada; e tratariam, claro, de Afeganistão, Paquistão ou China.

Embaixador Christopher Stevens
Apesar disso, a morte do embaixador dos EUA na Líbia, J. Christopher Stevens, e três outros cidadãos dos EUA virou grito de campanha contra Barack Obama. O que torna o caso ainda mais surpreendente: quando começaram a chegar notícias da tragédia, tudo levava a crer que, como caso político, a coisa não prosperaria.

Mas, dia seguinte, com as primeiras notícias sobre as mortes já em todos os veículos, Mitt Romney também já estava nas manchetes, acusando seu concorrente: “A liderança norte-americana é necessária para assegurar que os eventos na região não fujam de controle”. [4] Presidente tem de mostrar “decisão ao aplicar nosso poder” e prontidão para usar “força total”. Barack Obama falhara nas duas frentes, disse Romney, como o comprovariam as mortes em Benghazi.

O candidato Republicano foi devidamente criticado por “politizar” o incidente. Foi criticado, praticamente, por todos os lados [5]. Até Ed Rogers, conhecido porta-voz dos Republicanos, escreveu que “Romney tropeçou”  [6] e que “o presidente Obama disse a coisa certa, no tom certo”.

Mitt Romney
Romney jamais retirou uma linha do que dissera no primeiro dia – mas, de algum modo, as mesmíssimas palavras, de início denunciadas como “não presidenciais”, foram-se transformando misteriosamente em argumentos poderosos contra a reeleição do presidente. Um mês adiante, nova narrativa já dominava as manchetes: as críticas de Romney no caso da Líbia “acertavam o alvo” [7], mudando a dinâmica  [8], e estavam tendo papel fundamental [9] no ressurgimento de sua campanha.

Essa mudança de tom refletia, pelo menos em parte, com certeza, a necessidade primal da imprensa-empresa, que precisa de disputa equilibrada, para manter cativo o interesse dos consumidores. No momento em que ocorreram as mortes na Líbia, todos concordavam que Obama começava a ampliar a vantagem sobre Romney, a qual, a partir dali, poderia ser decisiva; qualquer coisa que aumentasse as chances de Romney seria sempre bem-vinda em qualquer mesa de editor de veículo-empresa.

Há notícias que, por mais que o editor insista, nunca “pegam”; mas a história da Líbia “pegou”. De algum modo ecoou nos corações e mentes de muitos norte-americanos. É preciso entender por quê.

Grande parte dessa explicação reside no poder das palavras-chaves na primeira fala: “poder” e “controle” [orig. might e control]. Seus estrategistas capturaram, naquela fala, uma verdade básica da política norte-americana: o público tem apetite insaciável por histórias sobre desafios ao poder global dos EUA e o pressuposto direito de os EUA controlarem o mundo. Então mandaram Romney repetir, insistir e insistir, naquela versão da narrativa.

Em seu primeiro grande discurso sobre política exterior [10], Romney absolveu o adversário de qualquer responsabilidade direta nas quatro mortes, mas acusou Obama de pecado mil vezes pior. Num arriscado salto de imaginação, converteu o incidente em Benghazi em ponta de lança de vasto assalto contra os EUA: “Nossas embaixadas foram atacadas. Nossa bandeira foi queimada (...) Nossa nação, atacada”. O trabalho do presidente é nos proteger, dominando nossos inimigos – disse Romney. É nosso consistente currículo de vitórias, tanto quanto nossos valores, que fazem os EUA “excepcionais” – e durante o turno de guarda de Obama, como o incidente em Benghazi teria provado, os EUA e seu excepcionalismo foram-se, todos, pelo ralo.

Não foi simples exagero, ao denunciar a “fraqueza” presidencial. Como já fizera no primeiro dia, Romney outra vez levantava questão até mais crucial em qualquer narrativa popular da política exterior dos EUA: “quem é o encarregado-em-chefe hoje e aqui?”.

Afinal, de que serve ser superpotência global, se não consegue controlar os eventos em todo o mundo? Como disse Romney: “É responsabilidade do nosso presidente usar o grande poder dos EUA para modelar a história”. E nisso, nesse ponto absolutamente crucial, Romney insistiu, Obama falhara miseravelmente; e um embaixador dos EUA pagara, por essa falha, com a própria vida.

Uma mitologia bipartidária

O debate Romney Obama
Os debates deram a Romney uma chance para afinar seu ataque. No segundo, Obama driblou habilmente as acusações sobre a Líbia (embora, de fato, jamais tenha respondido a qualquer delas). À altura do terceiro debate [11], os estrategistas de Romney, parece, não viram vantagem e viram muitos riscos em pressionar sobre a questão líbia. Mas ainda viam grande possibilidade de ganho em manter ativada a questão mais “geral”. Então Romney rapidamente deixou para trás a questão líbia. Disse que “Estamos vendo, em nação após nação, grande número de eventos perturbadores”.

Construiu seu argumento com imagens de medo: “Vejo o Oriente Médio com uma maré montante de violência, caos, tumulto (...) Dá para ver a al-Qaeda entrando ali”. O poder em Washington precisava ser devolvido às mãos certas, para que, “sob o manto da liderança firme”, os EUA possam “ajudar o Oriente Médio” a fazer retroceder a “maré crescente do tumulto e da confusão” e submeter os terroristas.

Tradução: Durante décadas praticamente todos os governos no Oriente Médio, o coração energético do mundo, foram nossos aliados (mais exatamente, nossos fregueses [12], embora esse palavrão não possa ser usado em ambientes de gente fina). Nós construíamos  [13] os exércitos deles, apoiávamos as ditaduras deles, e contávamos com eles para calar qualquer manifestação de antiamericanismo. Agora, sob Obama, essa área crucial do mundo, que sempre mantivemos sob nosso tacão, está fugindo ao controle. Perca o controle, porque fracassa no exercício de nosso poder, e acabou-se nossa segurança nacional.

Poder, força, controle e segurança nacional são, todos, partes do mesmo pacote; nada mais importante para os EUA – e Obama estava deixando tudo isso ir-se pelo ralo. E por aí ia a narrativa Republicana (apesar de copiosos documentos vazados sobre “a armação/ manipulação/ golpe na Líbia, construída(o) dentro do Congresso [14]). O que até aí vinha sendo apresentado como grande trunfo de Obama – afinal, é o homem que matou Osama bin Laden – passava, de repente, a parecer muito pouco.

Os Democratas de fato responderam, construindo história espantosamente semelhante sobre uma (como disse o presidente no 3º debate) “liderança forte e firme”, a qual, diziam os Democratas estava conseguindo impedir que o Oriente Médio ficasse fora de controle. Em outras palavras, os EUA, de fato, não perderam, de modo algum, a Líbia. Mas essa foi a única diferença entre os dois e o único aspecto sobre o qual houve alguma disputa.

O debate entre Republicanos e Democratas não se trava entre objetivos no Oriente Médio, onde os dois lados assumem pleno apoio a ditadores amigos como na Arábia Saudita [15] e no Bahrain [16], e os dois lados concordam quanto à necessidade de eleições democráticas, pluralismo religioso, imprensa livre, direitos assegurados às mulheres, reforço ao capitalismo de livre empresa e quanto à destruição de todos os terroristas islamistas.

Em termos mais amplos, Republicanos e Democratas concordam, como concordam há décadas, que o objetivo principal, superior, dominante da política exterior de Washington tem de ser modelar a história, controlar o mundo e fazê-lo cópia perfeita dos valores norte-americanos e forçá-lo a trabalhar a favor dos interesses dos EUA. Essa visão mítica da política exterior dos EUA é raro exemplo de consenso e perfeita sintonia entre os dois partidos.

Quando falo de mito, não estou dizendo que seja mentira. Estou dizendo que é uma narrativa fundacional [17] do poder norte-americano que manifesta o que assumimos de mais basal sobre o mundo – uma história segundo a qual toda e qualquer nação do planeta é, em teoria, nossa; só não será, se nós a “perdermos”.

Para muitos norte-americanos (embora não seja bem assim no resto do mundo), essa narrativa não reflete húbris ou arrogância ou intoxicação pelo poder imperial. É normal: é senso comum. Ao longo de nossa história, no coração da mitologia nacional dominante sempre houve, assumida, a ideia de que os EUA seriam “a locomotiva do mundo” e todas as demais nações seriam “o reboque” (como Dean Acheson, Secretário de Estado do presidente Harry Truman, disse certa vez). A razão era simples (pelo menos para os norte-americanos): éramos a primeira e a maior nação fundada sobre verdades morais universais que seriam, supostamente, autoevidentes para qualquer pessoa razoável.

Claro que controlar o mundo atenderia nossos interesses de vários modos tangíveis. Mas nosso autointeresse principal, reza o mito, sempre foi e sempre será o aprimoramento moral – quiçá, a perfeição – de todo o mundo. Servindo a nós mesmos, servimos a toda a humanidade.

A mais furiosa batalha política que há ou pode haver

A única questão que vale a pena debater, portanto, é como podemos usar nosso poder preponderante e nossa riqueza do modo mais produtivo e esperto, para manter o controle efetivo. Muitos norte-americanos contam com que seu presidente saiba o que fazer. Simultaneamente, muitos norte-americanos temem que ele não saiba. Um pilar mais recente da narrativa dos dois partidos – o mito da insegurança da pátria [18] – sugere coisa diferente.

Segundo esse mito, não importa a força militar máxima que acumulemos, nem o controle máximo que exerçamos, sempre há “uma maré montante de tumulto” em algum canto do mundo, que ameaça nossa segurança nacional. A todo momento, em algum ponto do mundo, temos algo crucial a perder. O nome da ameaça pode mudar com surpreendente facilidade. Mas o perigo tem de estar em algum lugar. É essencial, para manter o mito, a narrativa, a história.

E aquela narrativa, por sua vez, é hoje essencialmente importante em todas as eleições presidenciais. Como Maureen Dowd, colunista do New York Times escreveu certa vez, “Todas as eleições seguem a mesma narrativa: o pai forte conseguirá proteger a casa, contra os invasores?” [19] (Pensem em Ronald Reagan e o conto dos reféns iranianos  [20], ou em George W. Bush e o 11/9  [21]). Se um dos candidatos é o presidente, a questão passa a ser: “Mostrou-se pai suficientemente forte para controlar o mundo e, assim, proteger a casa?”.

Todos os desafiantes apostam nessa ansiedade, recolhendo o exemplo mais à mão, o mais acessível do dia, como gancho ao qual se penduram as sempre idênticas acusações de fraqueza e omissão ante perigos. Desde os dias do “Quem perdeu a China”, os Republicanos jogam essa carta com notável competência [22].

Esse ano, parecia que um Democrata que “avançou” [23] no Afeganistão, matou bin Laden e conduziu pessoalmente  [24] uma campanha de assassinatos em massa (também individuais), armado com drones e diretamente da Casa Branca teria, sem dúvida possível, protegido bem o flanco direito contra esse previsível ataque do Grande Velho Partido [orig. Great Old Party, GOP, os Republicanos]. Então, o destino doou as mortes em Benghazi à campanha de Romney, às salas de redação dos jornais e televisões, e a considerável porção do público norte-americano. Dê-se ao pessoal da campanha de Romney um mérito que é deles: perceberam a oportunidade logo ao primeiro momento do primeiro dia.

Mitt tinha de perguntar “Quem perdeu a Líbia?” e, em seguida, converter a pergunta em “Quem perdeu o Oriente Médio?” – não só para melhorar suas chances, mas também porque parte muito significativa dos eleitores ansiavam por esse “debate.” Afinal, cada vez que surge a pergunta “Quem perdeu........ [preencha a lacuna]?”, a própria pergunta reafirma, simultaneamente, tanto a promessa de que merecemos, mesmo, controlar o mundo, quanto a perturbadora ansiedade de que estamos sob risco de perder o que nos pertence por direito.

O que, apesar das dimensões trágicas, não passou de evento de guerra na Líbia, passou a ser a questão central de uma campanha eleitoral presidencial nos EUA, porque comprovou que é, nas eleições de 2012, a palavra código que aciona todo o pacote mitológico. Para muitos norte-americanos, a mais profunda sensação de segurança pode advir, simplesmente, de sentir que nossa mitologia tradicional – as velhas lentes familiares através das quais vemos nossa nação e seu papel no mundo – permanece intacta.

Mas, no horizonte, já é impossível não ver uma outra questão que começa a aparecer: por quanto tempo ainda sobreviverá essa mitologia? Foi grave e profundamente ferida na Guerra do Vietnã, quando a fantasia do controle global foi violentamente sacudida pela realidade. A mesma ferida voltou a abrir-se, com quantidades terríveis de sangue, em várias guerras, hoje, sem sentido e sem resultados aproveitáveis [25] e nos conflitos no Iraque, no Afeganistão e por toda a parte.

Hoje, estão em curso tantas mudanças inquietantes em todo o mundo, que nem se as pode prever, muito menos controlá-las. Não tarda – talvez já em 2020, talvez mesmo em 2016 – o grito de batalha já seja, quem sabe, “Quem perdeu o mundo?”.

Já é até possível imaginar que, algum dia, os norte-americanos conseguirão abordar o debate do qual realmente precisamos – sobre eleger um novo paradigma de política exterior adequado ao mundo real, hoje, onde a fantasia do controle global já se tornou irrelevante, porque os fatos mais corriqueiros já a contradizem bem evidentemente, enquanto declina o poder dos EUA e outras nações já vão, aos poucos, ganhando força.

Mas que ninguém espere que a velha mitologia morra morte silenciosa, discreta. A batalha política entre o velho mito contra novo mito é a mais furiosa batalha política que há ou pode haver.



Notas de rodapé

[2] Wikipedia - China Hands (em inglês)
[3] 23/9/2012, Tom Dispatch, Tom Engelhardt em: Obama Against the World
[4] 12/9/2012,Washington Post, em: Mitt Romney’s statement on the Libya ambassador attack
[5] 12/9/2012, Los Angeles Times, David Lauter e Mitchell Landsberg em: Romney's quick criticism on Libya draws rebuke
[6] 12/9/2012, Washington Post, Ed Rogers em: The president was poised; Romney stumbled
[7]  11/10/2012, Washington Post, Scott Wilson em: Ryan presses Biden on Libya
[8] 15/10/2012, Bloomberg – Businessweek, Margaret Talev e John McCormick em: Romney Gaining Ground as Scrutiny Rises on Taxes, Libya
[9] 13/10/2012, Newser, John Johnson em: Romney Steps Up Criticism Over Libya Attack
[10] 8/10/2012, Washington Post, em: Text of Romney Speech on Foreign Policy at VMI
[11] 22/10/2012, Debate transcrito (em inglês) 
[12] 31/1/2011, lobelog Foreign Policy, Gareth Porter em: Why Washington Clings To A Failed Middle East Strategy
[13] 14/9/2012, The Atlantic, Armin Rosen em: “The U.S. and Egypt Sure Look Like Allies, at Least on Military Matters
[14] Idem nota [13]
[15] 13/1/2012, Council on Foreign Relations, Thomas W. Lippman em: Saudi Arabia Remains Indispensable U.S. Ally, Argues New CFR Book”  
[16] 18/9/2012, Tom Dispatch, Jen Marlowe em: Terror and Teargas on the Streets of Bahrain
[17] Blog MythicAmerica, Ira Chernus em: THE MEANING OF “MYTH” IN THE AMERICAN CONTEXT
[18] Blog Mythic America, Ira Chernus em: “THE MYTHOLOGY OF HOMELAND INSECURITY
[19] 31.1/2012, The New York Times, Maureen Dowd em: Who’s Tough Enough?
[20] Verão de 1992, The Fletcher Fórum, Warren Cohen em: October Surprise: America's Hostages in Iran and the Election of Ronald Reagan. By Gary Sick
[21] 14/12/2004, Tom Dispatch, Tom Engelhardt  em: Tomgram: Ira Chernus on the Electoral Fear Factor
[23] 10/12/2009, Tom Dispatch, Tom Engelhardt em: The Nine Surges of Obama’s War
[25]  20/10/2012, redecastorphoto, Nick Turse em: “Fórmula falhada para guerra permanente - Império muda de pele, não de vícios (em português, trad. Vila Vudu)