Jeremy Scahill |
30/3/2011, Jeremy Scahill, The Nation [ed. imp. 14/4/2011]
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
“Jeremy Scahill usa informações publicadas por WikiLeaks em telegramas sobre o Iêmen, em artigo antológico para The Nation"
(Greg Mitchell, “The WikiLeaks News & Views Blog for Thursday Day 124”
[Notícias de WikiLeaks. O 124o. dia desde o primeiro vazamento por WikiLeaks, 30/03/2011]
Um dia antes de os mísseis dos EUA começarem a chover sobre a Líbia de Muammar El Kadafi, a centenas de quilômetros dali – do outro lado do Mar Vermelho – forças de segurança controladas pelo presidente apoiado pelos EUA, Ali Abdullah Saleh, massacraram mais de 50 pessoas que participavam de movimento flagrantemente pacífico na capital, Sanaa. Algumas vítimas foram mortas com tiros na cabeça, disparados por atiradores especialmente treinados (snipers, ing.).
Ao longo de meses, milhares de cidadãos iemenitas tomaram as ruas exigindo o fim do governo de Saleh, e o regime invariavelmente respondeu com violência extrema e desafio. Mas dia 21 de março, o governo de Saleh sofreu duro golpe, que possivelmente foi o golpe que provocou a hemorragia que, afinal, derrubou o governo.
Naquele dia, a figura de mais poder entre os militares iemenitas, o general Ali Muhsin al-Ahmar, comandante da Primeira Divisão Armada, jogou todo o seu prestígio no movimento dos cidadãos e jurou defender a “revolução pacífica dos jovens do Iêmen”. Outras altas figuras do establishment militar logo o seguiram. Altos funcionários civis do governo, entre os quais vários embaixadores e diplomatas renunciaram. Importantes líderes tribais, há muito tempo o elemento mais crucialmente importante do poder de Saleh, também se mudaram para a oposição.
Saleh, conhecido no Iêmen como “O Chefe”, assumiu o poder em 1990, logo depois da unificação entre o norte, que ele mesmo governava desde os anos 1970s, e o sul, que era então governado por governo marxista, com base em Aden.
Saleh é sobrevivente que abriu caminho pessoal por trilhas que vêm da Guerra Fria, atravessam profundas divisões tribais e chegam à “guerra ao terror” global. O governo Obama, quando chegou sua vez, aumentou a ajuda militar ao seu governo. Apesar de conhecido como jogador que faz jogo duplo, Saleh foi tacitamente definido como o homem de Washington na Península Arábica.
Ao longo de seu longuíssimo governo, Saleh sempre viu, como as maiores ameaças que enfrentou, a rebelião Houthi no norte e um movimento secessionista no sul. Para os EUA, a única ameaça seria a Al Qaeda. No final, foi uma massa autônoma, em grande parte de jovens, que provou ser a força mais potente que se atravessou no caminho do poder de Saleh.
O fim do governo de Saleh é fonte de grande ansiedade na Casa Branca, mas os EUA tiveram papel importante, embora não desejado, no enfraquecimento daquele regime. Por mais de uma década, as políticas dos EUA esqueceram a sociedade civil e o desenvolvimento do Iêmen, focados exclusivamente numa estratégia militar que visava a caçar terroristas. Essas operações não só provocaram a morte de muitos civis e incendiaram a fúria popular contra Saleh por permitir que militares norte-americanos comandassem as operações; elas também alimentaram a corrupção de Saleh e seu governo, que nada fizeram para melhorar as condições de miséria em que vivia o país árabe mais pobre do mundo –, até que essas multidões despertaram e saíram às ruas, em rebelião.
Para inúmeros analistas, a situação é muito mais grave para os EUA no Iêmen, que na Líbia, apesar de a resposta dos EUA à repressão violenta nos dois países ter sido tão absolutamente diferente nos dois casos.
Apesar de a secretária de Estado Hillary Clinton e outros altos funcionários do governo terem condenado a violência no Iêmen, ninguém exigiu o fim do regime nem qualquer tipo de ação militar para proteger civis. Para o Iêmen, os EUA clamaram por “uma solução política”.
Poucos dias antes do massacre em Sanaa, o secretário de Defesa Robert Gates, em visita a Moscou, foi perguntado sobre se os EUA ainda apoiavam Saleh. E respondeu: “Não me parece adequado falar sobre assuntos internos do Iêmen”. Mas o que disse em seguida diz muitíssimo sobre as prioridades dos EUA: “Obviamente, os EUA estão preocupados com a instabilidade no Iêmen. Consideramos a Al Qaeda na Península Arábica, AQPA [ing. AQAP], que tem bases principalmente no Iêmen, como o grupo provavelmente mais perigoso de todas as franquias da Al Qaeda, nesse momento. Qualquer instabilidade, que tire a atenção do combate à AQPA é, com certeza, minha principal preocupação sobre a situação.”
AQPA foi o grupo que enviou para os EUA o homem “da bomba na cueca” em dezembro de 2009. Também esteve por trás dos “pacotes-bomba” em outubro de 2010; e um dos seus membros é o clérigo muçulmano radical Anwar al-Awlaki. Em fevereiro, Michael Leiter, diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo falou ao Congresso sobre os principais grupos que ameaçavam os EUA em todo o mundo. “A Al Qaeda na Península Arábica, liderada por al-Awlaki, representa provavelmente a maior ameaça que pesa sobre nossa pátria norte-americana” – disse ele, ao Comitê da Câmara de Deputados para Segurança Nacional. O Procurador-geral Eric Holder disse que Awlaki “estaria na mesma lista, com Laden.” Outras fontes da inteligência disseram a The Nation que o governo exagerava o papel de Awlaki dentro da AQPA, mas reconheciam que a mitologia em torno dele já ganhara vida própria. A maioria dos analistas estimam que a AQAP conte com um núcleo de 300-500 membros (mas há quem diga que seriam vários milhares).
Desde o primeiro dia de governo, o presidente Obama e seu principal conselheiro para contraterrorismo, John Brennan, fizeram do Iêmen alta prioridade, por causa da presença da AQAP naquele território. Embora Saleh sempre tenha mostrado duas caras e dois discursos quando negocia com os EUA, difícil imaginar ditador mais subserviente naquela região. Saleh deu permissão aos EUA para conduzirem sua guerra secreta ‘particular’ em território iemenita, inclusive com bombardeios contra campos da Al-Quaeda na Península Arábica, e operações letais, unilaterais, também em solo do Iêmen. Como bônus, Saleh assumiu publicamente a responsabilidade pelos ataques norte-americanos em solo do Iêmen, como tentativa de mascarar a extensão do envolvimento dos exércitos norte-americanos. Simultaneamente, o governo Obama expandiu os programas de treinamento e de reequipamento das forças militares e de segurança do Iêmen.
Sem qualquer garantia de que um governo que substitua Saleh garanta essa qualidade de livre acesso aos exércitos dos EUA, dúzias de manifestantes mortos por guardas iemenitas não são nem jamais serão prioridade para os EUA. “A resposta incompetente dos EUA mostra a estreiteza e a falta de visão de nossa política para o Iêmen”, diz Joshua Foust, membro do American Security Project que se demitiu recentemente da Agência de Inteligência da Defesa, onde trabalhou como analista de questões do Iêmen. “Aceitamos covardemente a brutalidade de Saleh, por causa de um medo, errado, de que nossos programas de contraterrorismo sejam cortados. Parece que ninguém aqui vê que estamos praticamente garantindo que o próximo governo ataque, exatamente, esses programas.”
* * *
O coronel do exército dos EUA, aposentado, coronel W. Patrick Lang, oficial veterano das Forças Especiais, conhece Saleh desde 1979, porque serviu durante muitos anos como attaché da Defesa e do Exército, no Iêmen. Fluente em árabe, Lang serviu várias vezes como intérprete em reuniões sensíveis, das quais participavam funcionários dos EUA. Ele e o funcionário de mesma função no serviço secreto britânico, MI6, várias vezes participaram de caçadas em companhia de Saleh. “Viajávamos em comboios de carros, e atirávamos em gazelas, hienas, babuns” – Lang recorda. Recorda também que Saleh era “atirador razoavelmente bom”. Saleh, diz Lang, é “demônio muito sedutor”, e comenta que “não é fácil sobreviver no governo de um país onde lobo come lobo. É como ser o capitão de um cruzador Klingon de combate [nave de “Guerra nas Estrelas”. Veem-se imagens em STAR TREK KLINGON BATTLE CRUISER – AMT (NTs)]. Sabe como é. Eles só estão esperando por nós.” Segundo Lang, Saleh provou grande competência na arte de jogar tribo contra tribo. “O equilíbrio é sempre precário, entre a autoridade do governo e a autoridade desses imensos grupos tribais”, disse. “O futuro do Iêmen depende das tribos. Elas mandam no Iêmen, não a Al-Qaeda na Península Arábica.”
Durante a guerra dos mujahedeen apoiados pelos EUA contra os soviéticos no Afeganistão nos anos 1980s, milhares de iemenitas uniram à jihad – vários deles coordenados pelo Iêmen, que lhes garantiu proteção. “Vivemos regime de pluralismo político no Iêmen. Por isso, decidimos que não confrontaríamos aqueles movimentos” – disse Saleh ao New York Times em 2008. Al-Jihad, o movimento de Ayman al-Zawahiri, o físico egípcio que cresceu até ocupar o lugar de braço direito de Bin Laden, instalou uma de suas maiores células no Iêmen, nos anos 1990s.
Saleh viu a Al-Qaeda como aliado conveniente que poderia ser usado para protegê-lo contra a ação dos verdadeiros inimigos de seu governo, inclusive o movimento secessionista no sul, e os rebeldes Houthi na província Saada, no norte. Para os houthis, o governo de Saleh não passa de fantoche dos EUA e dos sauditas, e lutam pelo que acreditam que seja a preservação de sua seita zaidi, do islã xiita. Apesar de Saleh professar a religião islâmica xiita zaidi, os houthis dizem que Saleh permitiu que forças dos wahhabi (i.e., sunitas radicais) ameaçassem a sobrevivência dos houthis em várias ocasiões. Entre 2004 e 2010, forças de Saleh combateram batalhas importantes contra os rebeldes, conhecidas no Iêmen como “as seis guerras”.
Desde a guerra civil de 1994, Saleh usou jihadistas que haviam combatido no Afeganistão, na luta contra os secessionistas do sul e os houthis no norte. “Eram os matadores que Saleh usava para controlar os elementos mais problemáticos. São incontáveis as vezes que Saleh usou o pessoal da Al-Qaeda para eliminar oponentes do regime” – diz um ex-agente de contraterrorismo dos EUA com longa experiência no Iêmen e que pediu que seu nome não fosse divulgado, dada a alta sensibilidade das operações nas quais trabalhou. Dado que os jihadistas eram importantíssimos para Saleh, “tinham liberdade para operar como quisessem. Conseguiam documentos do Iêmen e viajavam livremente. Saleh sempre foi o porto seguro daqueles jihadistas. Fizeram de Saleh um coringa a serviço deles. Em troca, internamente, faziam o jogo de Saleh.”
O resultado foi que, quando a Al-Qaeda organizou-se para crescer, nos anos 1990s, o Iêmen serviu como ponto de apoio, com campos de treinamento e serviços de recrutamento. Durante o governo Clinton, nada disso aparecia. Só um pequeno grupo de agentes, quase todos do FBI e CIA, noticiaram essa movimentação, porque eram os únicos que acompanhavam o crescimento da Al-Qaeda.
Tudo isso mudou a partir de 12/10/2000, quando um pequeno barco a motor, carregado de explosivos, abriu enorme cratera no casco do USS Cole, navio de guerra dos EUA ancorado no porto de Aden, matando 17 tripulantes e ferindo mais de trinta. “Em Aden, atacaram e destruíram um destróier que os covardes temem, que evoca horror quando chega e quando passa ao largo” – bin Laden escreveu depois num poema usado num vídeo de recrutamento da Al Qaeda. O sucesso da ação, segundo especialistas em Al Qaeda, atraiu levas e levas de novos recrutas – sobretudo do Iêmen – que se alistaram na Al Qaeda e em grupos semelhantes.
Depois do 11/9, o presidente Bush pôs o Iêmen numa lista de alvos prioritários da “guerra ao terror”. Poderia ter facilmente desmantelado o governo de Saleh, apesar de Saleh ter dito, antes do 11/9, que “o Iêmen é a tumba dos invasores”. Mas Saleh estava decidido a não ser apanhado na trilha da luta contra os Talibã, e não perdeu tempo para garantir que isso não aconteceria.
O primeiro de seus movimentos com vistas a esse objetivo, foi embarcar, em novembro de 2001, rumo aos EUA. Em Washington, foi recebido com um pacote de ajuda militar no valor de $400 milhões, além dos financiamentos que ganhou do Banco Mundial e do FMI. Detalhe crucial para o governo Bush, o relacionamento renovado com Saleh também incluiu expandir os programas de treinamento de forças especiais. Esse treinamento permitiria às Forças Especiais dos EUA entrar discretamente no Iêmen, ao mesmo tempo em que criava um pretexto a ser apresentado internamente, para a maior presença de soldados dos EUA no país. Como parte do negócio que Saleh construiu com o governo Bush, os EUA criaram um “campo de contraterrorismo” no Iêmen, dirigido pela CIA, os Marines e Forças Especiais, apoiado pelo Camp Lemonier – , o posto avançado dos EUA no Djibouti, país vizinho do Iêmen, onde estavam guardados os aviões-robôs Predator.
Localizada a apenas uma hora de distância, por mar, do Iêmen, essa base secreta logo passaria a ser usada como esconderijo do comando das operações secretas dos EUA para todo o Chifre da África e Península Arábica.
“Saleh sabe o que fazer para sobreviver” – diz Emile Nakhleh, ex-alto analista de inteligência da CIA, que trabalhou em questões que envolvessem o Islã político durante o governo Bush. Depois do 11/9, Saleh “aprendeu muito rapidamente” que “tinha de aprender a falar a língua do antiterrorismo”, acrescenta Nakhleh. “Veio aos EUA buscar apoio e financiamento. E várias vezes nos disse exatamente o que queríamos ouvir e compreendíamos facilmente. Mas, em seguida, voltava para casa e fazia todos os tipos de alianças, com todos os tipos mais sinistros, que lhe parecessem necessárias para ajudá-lo a sobreviver. Não acredito que ele acreditasse seriamente que a Al-Qaeda representasse alguma ameaça grave ao seu governo.”
Quando começaram as construções em Lemonier, os EUA começaram a infiltrar “instrutores” militares no Iêmen. Entre as forças que entraram junto com os instrutores, estavam membros de uma unidade clandestina de inteligência militar, do Comando Conjunto de Operações Especiais [ing. Joint Special Operations Command (JSOC)] conhecida como “The Activity”. Embora estivessem oficialmente no Iêmen como instrutores, eles rapidamente se organizaram para construir capacidade operacional para rastrear membros suspeitos da Al-Qaeda no país, esperando mapear locais que, em seguida, poderiam ser atacados por forças militares dos EUA. Um ano depois do encontro entre Saleh e Bush na Casa Branca, os “instrutores” dos EUA realizariam sua primeira operação “molhada” [orig. “wet”]. E não seria a última
***
Em 2002, agentes da inteligência dos EUA descobriram que o homem que consideravam como um dos cérebros por trás do ataque ao USS Cole, Abu Ali al-Harithi, estava no Iêmen. Os agentes dos EUA chamavam-no de “o padrinho do terror no Iêmen” [orig. “the godfather of terror in Yemen]. Dia 3 de novembro, agentes do Comando Conjunto de Operações Especiais [ing. Joint Special Operations Command (JSOC) localizaram Harithi num ponto da província de Marib, quando ele usou um telefone celular que a inteligência dos EUA rastreara meses antes. “Nossos agentes tinham o local sob vigilância”, lembra o general Michael DeLong, naquele momento vice-comandante do Centcom (Comando Central dos EUA). Estavam-se “preparando para atacar, quando Ali saiu com cinco acompanhantes. Entraram num jipe e partiram.”
Como parte da operação, a CIA disparou um avião-robô Predator MQ-1, da base em Djibouti, para o espaço aéreo do Iêmen. Não era um simples avião-robô espião – era robô armado com dois mísseis Hellfire antitanques. Depois que o diretor da CIA George Tenet, deu sinal verde para a ação, um míssil Hellfire de 1,5m de comprimento atingiu o jipe, pulverizando-o.
Entre os mortos no ataque estava Ahmed Hijazi, também conhecido como Kamal Derwish, cidadão norte-americano nascido em Buffalo, New York. Depois do ataque, funcionários dos EUA publicamente ligaram Hijazi a um grupo, em Buffalo, que viria a ser conhecido como “os seis de Lackawanna”. Hijazi fora nome citado como não indiciado co-conspirador de um suposto complô de seis iemenitas-norte-americanos que dariam apoio material à Al Qaeda.
Agentes não identificados dos EUA citados em matérias de jornal revelaram que o ataque fora operação dos EUA, mas não havia detalhes do papel dos EUA. “Não queríamos publicidade”, lembrou DeLong. “Se surgissem perguntas, a versão oficial do Iêmen seria que um jipe que conduzia civis passou inadvertidamente em estrada minada no deserto e explodiu.. O plano previa que não se falasse em terroristas nem em ataques com mísseis.”
Mas dia 5/11, o subsecretário de Defesa Paul Wolfowitz confirmou que o ataque fora planejado e executado pelos EUA. “Foi operação tática muito bem sucedida, e esperamos que cada vez que conseguirmos sucesso como esse, não apenas nos tenham livrado de elemento perigoso, mas os obriguem a alterar suas táticas e operações e procedimentos” – disse Wolfowitz pela televisão à CNN. Soube-se depois que Saleh ficou “altamente enfurecido” com a revelação pública. “Isso vai-me causar graves problemas políticos”, Saleh reclamou ao general Tommy Franks, comandante do Centcom.
Foi o primeiro ataque com mortes, por agente militar dos EUA, em tempos de paz, desde que Gerald Ford proibiu os assassinatos políticos por agente oficial dos EUA, em 1976. Em resposta às críticas feitas por grupos de direitos humanos, o governo Bush revidou pesadamente. Declarando que a lei dos EUA autoriza a matar terroristas em qualquer país do mundo, inclusive cidadãos norte-americanos. “Posso assegurar que não há qualquer problema de inconstitucionalidade nesse caso”, disse à rede Fox News a Conselheira para assuntos de Segurança Nacional Condoleezza Rice, uma semana depois do ataque. “O presidente deu ampla autoridade a vários agentes dos EUA em várias circunstâncias, para que fizessem o que fosse preciso fazer para proteger o país. Vivemos um novo tipo de guerra, e já deixamos bem claro que é importante que esse novo tipo de guerra seja guerreada em diferentes campos de batalha”, disse ela, E repetiu: “Autoridade ampla”.
De 2003 a 2006, o governo de Saleh praticamente saiu do radar de antiterrorismo do governo Bush, exceto em raros contatos para exigir ação contra os suspeitos do ataque ao USS Cole. Em 2006, com o governo singularmente concentrado no Iraque, aconteceu uma fuga em massa de uma prisão em Sana – que viria a ser evento seminal para a reconstrução da Al-Qaeda no Iêmen. Entre os que fugiram da prisão estavam várias figuras chaves que viriam a constituir o eixo central da liderança da Al-Qaeda na Península Arábica, entre os quais Naser al-Wuhayshi, ex-secretário pessoal de bin Laden. Dia 3/2/2006, Wuhayshi e 22 fugiram por um túnel das células da prisão de segurança máxima onde estavam, que os levou a uma mesquita próxima da prisão. Wuhayshi mais tarde diria que todos fizeram as orações matinais, antes de deixar a mesquita pela porta da frente. Wuhayshi em pouco tempo já unira os ramos saudita e iemenita da Al Qaeda, criando a unidade regional conhecida como Al-Qaeda na Península Arábica, AQAP. Qasim al-Rimi, outro dos fugitivos, seria comandante militar da AQAP. Em 2007 Saleh mandou soltar Fahd al-Quso, suspeito de ter participado do ataque ao USS Cole, que estava preso desde 2002. Em maio de 2010 Quso apareceu num vídeo de propaganda da Al-Qaeda na Península Arábica, ameaçando atacar os EUA, embaixadas e navios.
Enquanto a Al-Qaeda ia-se reagrupando no Iêmen, começaram a acontecer várias ações de pequena escala, sobretudo na província de Marib – onde, em 2002 Harithi foi morto em ataque por míssil disparado de avião-robô. Em março de 2007, membros da Al-Qaeda assassinaram o principal investigador criminal em Marib, Ali Mahmud al-Qasaylah, que acusaram de ter participado no ataque do avião-robô. Em fita de áudio, Rimi anunciou que Wuhayshi passava a ser oficialmente o novo principal comandante da Al Qaeda no Iêmen. Na mensagem, Rimi ameaçava que o grupo prosseguiria na vingança contra os responsáveis por aquele ataque. Duas semanas depois, suicidas-bomba atacaram um trem que transportava turistas espanhóis em Marib, matando oito deles, além dos dois motoristas iemenitas. Em janeiro de 2008, atacaram um grupo de turistas belgas.
No total, foram mais de 60 ataques documentados da Al-Qaeda em solo do Iêmen, até o final do governo Bush. Ao longo dos anos, a ajuda militar dos EUA e o financiamento pela CIA não pararam de aumentar. “Quando [a Al-Qaeda] começa a criar problemas no Iêmen, o dinheiro dos EUA começa a jorrar”, diz o ex-analista do governo dos EUA para antiterrorismo. “Para Saleh, a Al-Qaeda é presente caído dos céus, que nunca para de cair dos céus. A Al-Qaeda é a principal lobbysta com que Saleh sempre conta, no que tenha a ver com arrancar dinheiro dos sauditas e dos EUA”.
***
Durante a campanha presidencial de 2008, John McCain e outros Republicanos tentaram pintar Barack Obama como demasiadamente seduzido pelas cordialidades das liberdades civis e da lei internacional, para enfrentar as ameaças do terrorismo global. De fato, desde os primeiros dias de governo, o presidente Obama mostrou-se hiperfocado em escalar a guerra suja e as operações clandestinas contra a Al Qaeda – que alcançaram níveis aos quais jamais chegaram no governo Bush, sobretudo no Iêmen.
Em abril de 2009, o general David Petraeus, que então comandava o Centcom, aprovou plano desenvolvido pela embaixada dos EUA em Sana, com a CIA e outras agências de inteligência, para expandir a ação militar dos EUA no Iêmen. O plano não envolvia apenas forças iemenitas treinadas pelos EUA para operações especiais, mas também ataques unilaterais dos EUA contra a Al-Qaeda na Península Arábica. Apesar de Petraeus falar muito da cooperação EUA-Iêmen, ele sabia que os EUA atacariam quando e onde bem entendessem. De fato, divulgou ordem secreta, de sete páginas, autorizando pequenas equipes de forças especiais dos EUA a conduzir operações clandestinas em vários pontos do Iraque e do Afeganistão. Essa ordem secreta foi classificada como “LIMDIS,” abreviatura de “limited distribution” [“distribuição limitada”]. A ordem – chamada Joint Unconventional Warfare Task Force (JUWTF) Execute Order [Ordem para executar operação conjunta de guerra não convencional], foi o passe que liberou todos os tipos de ações e operações de todos os tipos de equipes especiais. “Diferentes das ações secretas que a CIA executa, esse tipo de atividade clandestina não exige aprovação do presidente nem relatórios periódicos ao Congresso” – disse Mark Mazzetti, do New York Times, que leu a ordem.
Esse documento fala muito claramente sobre a continuidade das políticas externas do governo Bush, já durante o governo Obama. Durante o governo Bush, o Pentágono era forçado, regularmente, a explicar essas ações. Naqueles casos, o Pentágono recorria ao mantra segundo o qual não se tratava de guerra, mas de “preparação do campo de batalha”. Interessante e significativo, na ordem assinada por Petraeus em 2009, foi que a ordem amplia e consagra aquela justificativa para a guerra suja clandestina, já em pleno governo do presidente Obama.
Dia 6/9/2009, em reunião com [vice-conselheiro para Segurança Nacional John] Brennan em Sana, Saleh abriu completamente as portas para os EUA, prometendo “irrestrito acesso ao território nacional do Iêmen para operações de contraterrorismo” , como se lê em telegrama diplomático secreto “noforn” [abreviatura de “no foreign”, “vedado a estrangeiros”] publicado por WikiLeaks. “Saleh insistiu que o território nacional do Iêmen está disponível para operações de CT [contraterrorismo] conduzidas pelos EUA” (WikiLeaks, Viewing cable 09SANAA SALEH MEETING SEP 6, 2009).
Pouco depois, aconteceu o maior ataque militar em território do Iêmen em toda a história do Iêmen, parte de um programa clandestino conhecido pelo código “Indigo Spade”. Dia 17/12/2009, agentes do Comando Conjunto de Operações Especiais [ing. Joint Special Operations Command (JSOC) iniciaram programa de vigilância por aviões, para localizar e vigiar os alvos eleitos. A operação foi lançada ao raiar do dia, quando um míssil cruzador Tomahawk foi lançado de um submarino posicionado em águas nacionais do Iêmen. Armado com munição de fragmentação, o míssil explodiu contra um grupo de casas e tendas em Al Majalah, vila da província sulista de Abyan. Simultaneamente, outro ataque foi lançado contra Arhab, subúrbio de Sana, seguido de vários raids aéreos contra casas onde se suspeitava que houvesse membros da Al Qaeda; os ataques foram conduzidos por agentes das tropas de operações especiais do Iêmen treinados por forças do JSOC, para constituírem uma Unidade de Contraterrorismo [ing. Counter-Terrorism Unit (CTU)]. A autorização para os ataques tramitou “com urgência” pelo gabinete de Saleh, junto com informações de que suicidas-bomba da Al-Qaeda estariam preparando ataques em Sana. O alvo em Arhab, segundo relatórios de inteligência, seria a casa de um peixe grande protegido pela Al-Qaeda: Qasim al-Rimi.
Quando começaram a circular notícias sobre o ataque, o Pentágono, de início, recusou-se a comentar e desviou todas as questões para o Iêmen. O governo de Saleh emitiu declaração na qual assumia a responsabilidade por “raids simultâneos, para matar e prender militantes”.
O presidente Obama telefonou a Saleh, como informaram os jornais, para “congratular-se com ele” e “agradecer-lhe pela cooperação. Prometendo-lhe permanente apoio dos EUA.” Porém, quando começaram a surgir imagens do ataque em Abyan, analistas militares estranharam: ninguém sabia que o Iêmen tivesse o tipo de armas que havia sido usada naquele ataque. Na cena das casas destruídas foram encontradas fragmentos de bombas de fragmentação tipo BLU 97 A/B, um tipo de munição que explodem e cerca de 200 fragmentos de metal, que se espalham e são como disparos de arma de fogo com ampla área de alcance [sobre esse tipo de munição, ver em BLU-97/B Combined Effects Bomb (CEB)]. São como minas disparadas num míssil, capazes de destroçar corpos humanos em fragmentos pequenos. As bombas haviam sido equipadas com material incendiário, que incendeia a área alvo, depois de destruída. O míssil usado no ataque, um BGM-109D Tomahawk, pode carregar mais de 160 bombas de fragmentação. Nem o míssil nem as bombas de fragmentação jamais haviam sido vistos no arsenal militar do Iêmen.
A indignação espalhou-se por todo o Iêmen. Empurrado pela indignação popular e pela suspeita de que se tratasse de ataque conduzido pelos EUA em território do Iêmen, o Parlamento iemenita despachou para o local uma comissão de investigação. Lá chegados, os deputados constataram que “todas as casas e o que nelas havia foi destruído pelas chamas, e não havia nem restos de mobiliário”; só encontraram “traços de sangue de vítimas e grandes crateras no chão, deixadas pelo bombardeio (...) além de várias bombas que não explodiram” – segundo relatório da própria comissão. A investigação concluiu que o ataque havia matado 41 membros de duas famílias, inclusive 17 mulheres de 21 crianças. Vários dos mortos estavam dormindo no momento do ataque. Rimi não estava entre os mortos e sobreviventes disseram que não mantinha qualquer conexão com a Al-Qaeda. O governo Saleh insistiu na versão de que 14 membros da Al-Qaeda haviam morrido, mas os investigadores da comissão parlamentar disseram que o governo só lhes dera um nome. Quatro dias depois, mais três civis morreram, ao pisar inadvertidamente numa das bombas de fragmentação que não haviam explodido. Dias depois, um alto funcionário do governo do Iêmen disse ao New York Times que “o envolvimento dos EUA gera simpatia pela Al-Qaeda. A cooperação é necessária – mas nada convence o iemenita médio, que se vê atacado. E ele se solidariza com a Al-Qaeda.”
Segundo documentos agora publicados por WikiLeaks, Stephen Seche, embaixador dos EUA no Iêmen, enviou telegrama a Washington dia 21/12. Referindo-se aos ataques, disse que o governo do Iêmen “não parece extraordinariamente preocupado sobre vazamentos não autorizados referentes ao papel dos EUA e à mídia negativa sobre a morte de civis.” O telegrama dizia que o vice-primeiro ministro Rashad al-Alimi contou a Seche que “qualquer evidência de maior envolvimento dos EUA como fragmentos de munição dos EUA encontrados no local – pode ser justificado como equipamento comprados dos EUA”. O Iêmen, segundo o telegrama, “deve pensar cuidadosamente sobre sua posição pública e sobre se a adesão estrita a declarações de que os ataques tenham sido unilaterais não comprometerá o apoio dos populares às legítimas e urgentemente necessárias operações de contra-terrorismo, no caso de aparecerem provas do contrário ” (WikiLeaks, Viewing cable o9SANAA, YEMEN ABUZZ WITH TALK OF CT OPERATIONS; TTENTION SLOWLY TURNS TO THE US ROLE).
Uma semana depois dos ataques aéreos em Abyan e de ataques por terra próximos da capital Sana, o presidente Obama autorizou outro ataque, dessa vez baseado em informação fornecida por um prisioneiro capturado no ataque contra Arhab. Agora, o alvo era um cidadão norte-americano: Anwar al-Awlaki. Dia 24/12, forças norte-americanas atacaram por ar no vale das montanhas Rafd, na província de Shabwa – terra natal de toda a família de Awlaki. Informes de segurança dos EUA e do Iêmen diziam que Awlaki lá estaria, em reunião com seu grupo, inclusive com Wuhayshi, ex-secretário de bin Laden, e com Saeed al-Shihri, líder da Al-Qaeda na Península Árabe. Para a segurança do Iêmen, os homens “planejavam ataque a oleodutos do Iêmen e estrangeiros.”
Dessa vez os ataques mataram 30 pessoas, e os jornais imediatamente começaram a noticiar que Awlaki e os outros dois líderes da Al-Qaeda estavam entre os mortos. Mas a rede CBS News entrevistou uma fonte no Iêmen, que disse que, não só Awlaki estava vivo como, além disso, os ataques aconteceram “muito longe de sua casa e que ele nada tinha a ver com aqueles mortos.” Nos meses seguintes, ficou evidente que Awlaki, Wuhayshi e Shihri não haviam sido mortos: os três se manifestaram em mensagens enviadas por vídeo ou em fitas gravadas.
O foco do governo na luta contra a Al-Qaeda na Península Árabe se intensificou depois que se soube que “o terrorista da bomba na cueca”, Umar Farouk Abdulmutallab – acusado de ter planejado derrubar o voo 253 da Northwest Airlines sobre Detroit no dia de Natal de 2009 – havia sido treinado no Iêmen.
No início de 2010, o governo Obama cancelou a repatriação já programada de mais de 30 iemenitas presos em Guantánamo, cuja soltura já havia sido decidida, alegando que a situação no Iêmen estaria “indefinida”. Os iemenitas eram então o único grande bloco de prisioneiros que continuavam em Guantánamo.
E o governo dos EUA continuou a operação de mascarar o papel dos EUA no Iêmen, com funcionários repetindo sempre a mesma versão: os EUA dão suporte às operações de contraterrorismo do governo do Iêmen. “As pessoas perguntam, a pergunta sempre aparece, se estamos enviando tropas para o Iêmen” – disse o almirante Mike Mullen, comandante do conselho do estado-maior do exército dos EU, em conferência no Naval War College, dia 8/1. – “Minha resposta sempre é: não atemos planos de fazer tal coisa e não se deve esquecer que se trata de país soberano.” Dois dias depois, o próprio presidente Obama ecoou, com menos palavras, a mesma versão: “Não tenho qualquer intenção de mandar tropas para o Iêmen”.
A despeito das repetidas negativas oficiais, um inspetor do Departamento de Estado em relatório local para a embaixada dos EUA em Sana descobriu que “o número sempre crescente de pessoal militar na embaixada” era parte do projeto de “expandir a presença de tropas dos EUA” no Iêmen. No final de janeiro de 2010, o Comando Conjunto de Operações Especiais [ing. Joint Special Operations Command (JSOC) estivera envolvido em mais de duas dúzias de ataques no Iêmen, contados a partir dos ataques de 17 de dezembro. Havia dezenas de mortos e outras dezenas de prisioneiros. Ao mesmo tempo, o Comando Conjunto de Operações Especiais [ing. Joint Special Operations Command (JSOC) começou a operar regularmente com aviões-robôs no país, à medida que a guerra suja ia-se expandindo. O que começara como uma operação de um dia, contra alvo determinado, estava-se convertendo em campanha sustentada de assassinatos planejados [orig. a sustained targeted killing campaign] coordenada pelo JSOC.
“Depois da coisa em dezembro com Abdulmutallab, [Saleh] teve de pensar em modos de demonstrar mais apoio às nossas ações” – recorda Nakhleh, o ex-agente sênior da CIA. “Saleh queria jogar o jogo – como que fingia que não via, quando fazíamos alguns tipos de operações militares, operações cinéticas contra grupos radicais por lá. Quando a pressão aumentava muito, dizia que eram operações do exército do Iêmen. Saleh jogou o jogo.”
***
Enquanto as agências de segurança e militares dos EUA disparavam cada vez maior número de operações no Iêmen, o general Petraeus viajou para lá dia 2/1. Para outra rodada de reuniões com Saleh e seus principais comandantes militares e de inteligência. Abriu a reunião dizendo que os EUA mais do que duplicariam “a assistência à segurança” do Iêmen, para mais de $150 milhões em 2010, incluindo uma proposta de $45 milhões para treinar e equipar unidades de contraterrorismo no Iêmen para guerra aérea contra a Al-Qaeda na Península Arábica, AQAP.
Como se lê em telegrama diplomático publicado por WikiLeaks, Saleh pediu a Petraeus 12 helicópteros de ataque; disse que a “burocracia” dos EUA suspendera a transferência dos helicópteros e que Petraeus podia interferir, com seus contados com os sauditas e os Emirados Árabes Unidos, para que entregassem logo os helicópteros. Petraeus disse a Saleh que já discutira esse arranjo com os sauditas.
Saleh autorizou os EUA a atacarem a Al-Qaeda na Península Arábica sempre que houvesse disponível “inteligência acionável”, mas que, oficialmente, não queria que forças norte-americanas comandassem operações em terra no Iêmen. “Vocês não podem entrar na área de operações e devem permanecer no centro de operações conjuntas” – disse Saleh, como se lê no telegrama. Mas todos, na reunião, sabiam que todos, ali, estavam promovendo uma mentira coletiva.
Ao mesmo tempo em que elogiava os ataques de dezembro, Saleh “lamentou” o uso de mísseis cruzadores, segundo o telegrama, porque “não são muito precisos”. Na reunião, Petraeus disse que “os únicos civis mortos fora a mulher e dois filhos de um agente da Al-Qaeda na Península Arábica que estavam no local” – o que todos sabiam que era evidentemente falso. Saleh disse a Petraeus que preferia “bombas teleguiadas de precisão”, disparadas de avião convencional. “Continuaremos a dizer que as bombas são nossas, não de vocês” – disse Saleh. O vice-primeiro ministro Alimi riu e fez piada: disse que, nesse caso, ele acabava de “mentir”, no Parlamento, porque dissera lá que as bombas em Arhab, Abyan e Shabwa eram fabricadas nos EUA mas usadas por militares do Iêmen (WikiLeaks, Viewing cable o9SANAA, YEMEN ABUZZ WITH TALK OF CT OPERATIONS; TTENTION SLOWLY TURNS TO THE US ROLE).
Pouco depois dessa reunião, Alimi disse a jornalistas no Iêmen que “As operações foram realizadas 100% por forças do Iêmen. O aparelho de segurança do Iêmen recebeu apoio, informação e tecnologia dos EUA, Arábia Saudita e outras nações amigas”.
Mas os cidadãos no Iêmen nunca acreditaram em nada disso. Ahmed al-Aswadi, líder do partido al-Islah, de oposição a Saleh, disse que “a maioria da população sabe que os recentes ataques foram feitos por forças norte-americanas”.
Enquanto as forças do comando unido de operações especiais JSOC continuavam a operar no Iêmen, treinando o exército iemenita e repetindo suas ações “cinéticas”, os ataques aéreos continuavam. Dia 25/5/2010, um míssil dos EUA atingiu um comboio de veículos no deserto de Marib, o qual a “inteligência acionável” concluíra que se dirigia para uma reunião de operadores da Al-Qaeda. A inteligência acertou em parte, mas os homens no comboio de carros não eram membros da Al-Qaeda. Entre os mortos estava Jaber al-Shabwani, vice-governador da província de Marib – e principal negociador do governo nas conversações para desmilitarizar a província, homem muito especial, porque seu irmão, Ayad, era o líder local da Al-Qaeda na Península Arábica, o mesmo homem que EUA e Iêmen tentavam matar nos ataques de 15 e 20 de janeiro, uma semana antes. Um tio de Shabwani e dois guarda-costas também foram mortos nesse ataque, que aconteceu num pomar de laranjas, na fazenda de Ayad. Como nos outros ataques, as autoridades iemenitas assumiram publicamente a responsabilidade e o Comitê Supremo de Segurança pediu desculpas por o que chamou de raid aéreo que deu errado.
Mas dessa vez o efeito foi ainda maior, porque, no ataque, morreu um iemenita conhecido. Horas depois da morte, a tribo dos shabwani atacou o principal oleoduto que vai da província do Marib ao terminal petroleiro de Ras Isa na costa do Mar Vermelho. Os atacantes também tentaram tomar o palácio do governador da província, mas foram repelidos pelo exército do Iêmen e tanques. Políticos iemenitas exigiram que o governo de Saleh explicasse como o ataque acontecera e que, de fato, estava por trás da guerra aérea que se ampliava tão visivelmente.
O que não se discute é que os ataques, sobretudo os que mataram civil e figuras tribais importantes, estavam dando valioso empurrão de propaganda à Al-Qaeda em suas campanhas de recrutamento no Iêmen e em sua campanha para desestabilizar a aliança EUA-Iêmen de contraterrorismo. Funcionários do governo do Iêmen disseram que os ataques, de dezembro a maio, haviam feito mais de 200 mortos, dos quais apenas 40 eram ligados à Al-Qaeda.
“É incrivelmente perigoso o que os EUA estão tentando fazer no Iêmen nesse momento, porque, de fato, colabora para a estratégia mais ampla da Al-Qaeda na Península Arábica, que diz que o Iêmen em nada difere do Iraque e do Afeganistão” – disse em junho de 2010 o professor Gregory Johnsen, da Universidade de Princeton, depois de divulgado relatório da Anistia Internacional documentando o uso de munição dos EUA nos ataques no Iêmen. “Estão dando argumentos, para que digam que o Iêmen é frente legítima para a luta jihadista”, disse Johnsen que em 2009 serviu como membro da equipe de avaliação de conflitos da USAID para o Iêmen.
No verão de 2010, depois de meses de ataques aéreos e em terra sustentados por EUA e Iêmen, a Al-Qaeda na Península Arábica retaliou. Em junho, um grupo de agentes da AQPA moveram pesado ataque contra a divisão em Aden da polícia secreta do Iêmen, a Organização de Polícia de Segurança. Em cerimônia matinal de hastear bandeira no complexo da Organização, os homens da AQPA abriram fogo com armas automáticas e foguetes lança-granadas contra o prédio. Mataram pelo menos dez oficiais de segurança e três mulheres que trabalhavam na limpeza. O ataque visava a libertar suspeitos de serem militantes que estavam detidos no complexo e conseguiu libertá-los. Depois desse ataque, teve início campanha sangrenta de assassinato de vários comandantes militares de alto nível do exército do Iêmen e agentes de segurança. Durante o Ramadan, que começou em agosto, a Al-Qaeda na Península Ibérica lançou uma dúzia de ataques. Em setembro nada menos que 60 militares e agentes de segurança haviam sido assassinado, muitos dos quais em atentados nos quais os assassinos estavam em motocicletas. Esse método de ataque tornou-se tão frequente, que o governo proibiu a circulação de motocicletas nas áreas urbanas em Abyan.
Então desenrolou-se um plano de ataque contra os EUA que viria a ser conhecido como “ataque dos pacotes-bomba”. Dia 29 de outubro, os norte-americanos assistiram à cobertura, nos noticiários, de aviões dos EUA que escoltavam o voo 201 da Emirates Airlines, até um pouso de emergência no aeroporto JFK. Imagens mostravam também outros aviões sendo escoltados até o pouso nos aeroportos de Philadelphia e Newark. Naquela noite, Obama disse que os explosivos nos aviões manifestavam “ameaça terrorista da qual não se pode duvidar”. Nenhuma das bombas explodiu. Mas quando se estabeleceu sem sombra de dúvidas a conexão com o Iêmen – o material explosivo, escondido em cartuchos de tinta para impressora fora embarcado no Iêmen – ninguém pensou duas vezes, no governo: todos os olhos voltaram-se para a Al-Qaeda na Península Arábica.
Foust, o ex-analista da DIA, assim descreve a resposta de Obama: “Ele imediatamente mandou os aviões robôs e o pessoal das operações especiais para o Iêmen. Foi reação instantânea. Mandem o JSOC. Mandem os ninjas, foi o que ele fez.” Sem dar detalhes, que diz serem secretos, Foust diz que viu operações de assassinatos seletivos ordenadas, que ele supunha que fossem autorizadas. Diz que esses assassinatos seletivos “teoricamente não são coisa errada”. Mas preocupavam-no gravemente os padrões usados para definir os alvos a serem assassinados. “Sinceramente, passei todo o tempo em que trabalhei no Iêmen discutindo com eles [com o Comando de Operações Especiais no Iêmen e outros analistas locais], sobre os padrões de seleção dos alvos” – Foust relembra. “Os padrões para seleção dos alvos a serem eliminados, na minha opinião, são assustadoramente baixos”.
* * *
O levante popular contra o regime no Iêmen recentemente pôs toda a comunidade de contraterrorismo dos EUA a correr para definir planos de contingência. A queda de Saleh “é a oportunidade para o povo do Iêmen construir um estado mais moderno”, diz Nakhleh. Mas ao mesmo tempo, “cria um desafio para os EUA, que não sabe como continuará a política de contraterrorismo contra a Al-Qaeda e seu grupo ‘derivado’ ativo no Iêmen, a Al-Qaeda na Península Arábica”.
“O que temos no Iêmen é resultado de muito tempo de trabalho. Já perdi noites de sono, só pensando nisso” – disse recentemente o deputado Republicano Mike Rogers, presidente da Comissão de Inteligência da Câmara de Deputados. Segundo Foust, estão sendo feitos planos para mudar as unidades de contraterrorismo para o Djibouti, quartel-general atual das ações dos EUA contra a Líbia, “no caso de as relações com o próximo governo do Iêmen não darem certo”. Mas, diz ele, o que mais preocupa é “o que acontecerá com as missões de treinamento [que os EUA mantêm no Iêmen] e com os muitos programas [de inteligência] já instalados no Iêmen. Ninguém sabe como podem ser afetados por um novo governo. Os EUA não mantemos boas relações com os movimentos de oposição, que é movimento caótico e com certeza, em pouco tempo, estará preso em conflitos internos. A verdade é que não se sabe como reagirão.” O fim do governo de Saleh “com certeza terá impacto negativo nas operações de contraterrorismo dos EUA no Iêmen,” diz Johnsen, e acrescenta: “O que mais me preocupa é que a Al-Qaeda já está recebendo armas e dinheiro, em várias áreas do país, nas quais os militares estão desertando e distribuindo-se entre vários grupos de oposição.”
O Iêmen “vive terríveis problemas que, se não forem resolvidos, como nunca foram resolvidos até agora, todos eles ajudarão a Al-Qaeda a ganhar força na região, nos próximos anos” –Johnsen alerta. “No Iêmen, de nada adiantará insistir em resolver com mísseis o problema da Al-Qaeda. Os EUA simplesmente não conseguirão bombardeá-los até o último homem. Já tentam essa via há anos, e com governo favorável, e fracassaram.”
Não há dúvidas de que quando o presidente Obama assumiu o governo, a Al Qaeda ressuscitou no Iêmen. Agora, discute-se é a extensão da ameaça que a Al-Qaeda representa para os EUA e para o próprio Saleh.
O que absolutamente não se discute é se a ação dos EUA no Iêmen – os assassinatos seletivos, os ataques com Tomahawk e os aviões-robôs armados – podem ter sido a causa do ressurgimento da Al-Qaeda no Iêmen e até que ponto os ataques da grupo no Iêmen fora motivados pela guerra suja, nunca declarada, que os EUA lutam no Iêmen. “As operações dos EUA não geram boa vontade a nosso favor” – diz Nakhleh. “Visamos só radicais e potenciais radicais, mas, infelizmente, nas condições em campo, estamos destruindo outras coisas e matando outras pessoas. No longo prazo, nada disso pode ajudar os EUA. Para mim, a grande questão é a questão do radicalismo. Como se puxa o tapete dos radicais?”
Quem converteu o mundo em campo de batalha foi o governo Bush, para o qual qualquer país seria cenário possível para assassinatos programados. Mas foi o governo Obama, fazendo do Iêmen seu laboratório, que fez dessa opção a única opção para os dois principais partidos nos EUA, um paradigma que, com certeza, sobreviverá ao próprio mandato de Obama na Casa Branca.
“A guerra global ao terror ganhou vida própria” – diz o coronel Lang. “É como uma casquinha de sorvete que se autolambe e continua sempre cheia. E o fato de que a indústria do contraterrorismo/ contraguerrilha tenha evoluído até ser o que é hoje – as fundações privadas, os jornalistas, as editoras de livros e os generais e o pessoal encarregado diretamente da matança – tudo isso carrega gigantesca força própria, uma inércia incontrolável que manterá todo o aparelho andando sempre na mesma direção.” E acrescenta: “A coisa continua a rolar. Seria preciso que alguém tomasse uma decisão consciente, os políticos, os civis, alguém como o presidente, por exemplo, que decidisse ‘OK, pessoal, o show acabou’.” Mas Obama, diz o coronel Lang, está longe de decidir que o show acabou. “Tudo leva a crer que o show continua e continuará ainda por muito tempo.”
Gostei muito de ler, e saber mais a fundo sobre o o assunto! Obrigado!!
ResponderExcluir