Alfredo Pereira dos Santos |
A.P.Santos
Sem crítica não haveria progresso. Quanto a isso não há a menor dúvida. A crítica aponta o erro, esclarece, permite ao criticado corrigir a sua trajetória equivocada. A crítica põe fim às ilusões. Marx disse: “A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem usasse as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas sim para que retirasse as cadeias e apanhasse a flor viva”.
Sendo a crítica coisa necessária, indispensável até, porque algumas pessoas vêem a crítica como algo a ser evitado, como ofensa, como deselegância, como grosseria?
Afinal de contas, o que é crítica? Vejamos o que dizem os dicionários.
Para começar um dos conceitos diz que crítica é “Apreciação minuciosa”, e quanto à isso não se pode emitir opinião desfavorável, o que implicaria na defesa de “apreciações descuidadas, levianas, irresponsáveis” ou na abolição de todas as apreciações.
Outro conceito diz que crítica é “Apreciação desfavorável”. Quanto a isso não pode haver reparos, pois ninguém está obrigado a ter opinião favorável sobre tudo. As pessoas sempre estão contra ou a favor de alguma coisa. Podendo ou não ter razão.
Quanto ao conceito que diz que crítica pode ser “Censura, maledicência”, talvez seja esse em que os que vêem a crítica como coisa condenável mais se apeguem. Mas nem essa definição pode ser aceita como argumento contra a crítica. Vejamos. Censura pode ser “exame crítico de obras literárias ou artísticas”. Nesse sentido a palavra ficou mal vista em nosso meio tendo em vista a ação da censura durante alguns regimes de exceção. O problema, contudo, não estava na censura mas sim nos regimes e na maneira pela qual eles exerciam essa censura. Mas um censor pode decidir que um certo filme ou espetáculo seja inapropriado para uma determinada faixa etária e nada estaria de errado com isso. Os pais fazem isso sistematicamente como, por exemplo, quando tentam impedir que os filhos “andem em más companhias”. Censura pode ser “crítica com o fim de corrigir”. E se é para corrigir algo que esteja errado então não pode haver condenação. Censura pode ser também “admoestação, repreensão”, que são coisas que autoridades, pais e professores fazem sistematicamente, coisas naturais e legítimas. No que concerne à maledicência, que os dicionários dizem que é “ato ou efeito de dizer mal”, também não dá, por essa interpretação, para condenar a crítica, pois não se pode falar bem de tudo e de todos. De algumas coisas se fala mal, de outras se fala bem.
Crítica também é “Discussão para elucidar fatos e texto”. Se é para elucidar não há o que condenar.
Também pode ser “Exame do valor dos documentos”. Ora, examinar o valor das coisas se faz a toda hora, nada há de condenável.
A concepção seguinte fala em “Arte ou faculdade de julgar o mérito das obras científicas, literárias e artísticas”. Machado de Assis fez crítica teatral. Wilson Martins fez crítica literária. Estariam os dois fazendo coisa errada?
Por outro lado, sendo a crítica também “Juízo fundamentado acerca de obra científica, literária ou artística”, não pode, por isso ser condenada.
Finalmente temos o conceito que diz que crítica é “Parte da filosofia que estuda os critérios”. Há algo de mal nisso?
Todo mundo sabe que jornais e políticos de oposição criticam os governos. Resta saber se o fazem dentro dos conceitos definidos e adotados para o que se entende por crítica. Caso contrário o que se pretende fazer passar por crítica pode ser, na verdade, mentira, pura e simplesmente, quando não calúnia e difamação. A crítica há de ser feita, em geral, sobre fatos concretos, comprováveis e observáveis. Um pai deixa de comprar comida para os filhos porque gastou o dinheiro no jogo. A própria mulher e os filhos o criticam por isso. Um governante desvia dinheiro público. Vamos criticá-lo. A programação televisiva é de baixa qualidade? Vamos criticá-la. O ensino público é ruim? Vamos criticá-lo. Os professores são mal remunerados? Vamos criticar essa situação. A seleção jogou mal? A crítica faz parte do nosso cotidiano.
Naturalmente que tem pessoas que não gostam de ser criticadas. Entre elas destaquem-se, especialmente, alguns governantes. Uma jornalista, sendo entrevistada num programa de televisão, contou uma conversa que teve com o general Costa e Silva. O general, que era então presidente do Brasil, se queixou do tratamento que a jornalista dava a ele no jornal em que escrevia. A jornalista se defendeu dizendo que era imparcial com o governo e que, na verdade, nem o criticava. Diante disso Costa e Silva fez a seguinte observação: “É, mas eu gosto mesmo é de elogio”.
Esse episódio é bastante revelador da natureza humana porque, no fundo, todo mundo gosta de receber elogios, mas nem todos convivem bem com as críticas. Os antigos diziam “Obsequium amicus, veritas odium parit”. Segundo o meu dicionário “Latim-Português” do F.R. dos Santos Saraiva (Livraria Garnier, Rio de Janeiro, 1993), obsequium significa “complacência”, “condescendência”, “deferência”, “submissão”, “humildade”, “docilidade”, “ação de ceder”, “de se deixar ir”. Ou seja, se a pessoa for humilde, submissa, dócil, o que às vezes não deixará de ser uma atitude falsa e hipócrita, ela terá mais facilidade de fazer amigos. Mas se disser a verdade, ou seja, se for franca, honesta, provocará o ódio.
O que fazer, então? Achar, panglossianamente, que vivemos no melhor dos mundos e achar que tudo corre às mil maravilhas?
O médico, crítico literário, professor, membro da Academia Brasileira de Letras, Afrânio Coutinho, que nasceu em Salvador, Bahia, em 15 de março de 1911 e morreu no Rio de Janeiro em 5 de agosto de 2000, dizia que era preciso criar uma “classe de homens desagradáveis” para dizer certa coisas que precisam ser ditas, mas que ninguém diz. O que mostra que o ilustre acadêmico era um defensor da crítica.
De minha parte, eu penso que o problema não está na crítica, mas, em geral, nos que criticam a crítica e os críticos, sem se dar conta de que também são críticos.
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