Patrick Cockburn |
21/6/2011, Patrick Cockburn, The Independent, UK
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Foi uma das maiores fugas de prisioneiros de que se tem notícia, em termos de engenho e perseverança dos envolvidos. Aconteceu às 22h do dia 25 de abril de 2011, no sul do Afeganistão. Depois de cinco meses de cavar túneis, os escavadores Talibã chegaram finalmente ao chão de concreto de uma cela no centro da prisão de Sarposa, nos arredores de Kandahar. Atrás deles serpenteava um túnel com 90 cm de altura e quase 400 m de comprimento, que passava por baixo das muralhas da prisão e ia até uma casa num dos extremos de uma estrada próxima. Durante as cinco horas seguintes, 541 prisioneiros, um deles com uma perna quebrada, rastejaram rumo à liberdade. Só mais tarde, pela manhã, quando os guardas fizeram a chamada regular dos prisioneiros reunidos no pátio, descobriram-se as celas vazias, das quais haviam desaparecido alguns dos prisioneiros considerados os mais perigosos do mundo.
A história dessa fuga não é apenas excitante e cheia de suspense; ela mostra, sobretudo, que os Talibã – sempre apresentados no ocidente como fanáticos e dementes – são gente disciplinada, que são imaginativos e capazes de mobilizar inúmeros recursos. Isso, precisamente, faz deles adversários tão formidáveis, que, apesar de inferiores numericamente, com armas menos poderosas e treinamento menos moderno, ainda não foram derrotados pelos exércitos norte-americano, britânico e afegão. A fuga da prisão de Kandahar é prova de rara habilidade para planejar, prever dificuldades e construir soluções inteligentes para superá-las.
Essa fuga também é uma das raras operações de alta complexidade levadas a cabo pelos Talibã e da qual há relatórios extensivos elaborados pelos próprios Talibã, cuja autenticidade pode ser confirmada por fontes oficiais dos EUA e do Afeganistão. Alguns dos detalhes surgiram logo depois da fuga; um porta-voz dos Talibã vangloriou-se do sucesso da operação, e funcionários dos EUA e Afeganistão tiveram de acorrer com explicações embaraçadas sobre o que não dera certo. Mas a história completa da fuga da prisão de Kandahar só apareceu meses depois, quando os Talibã liberaram detalhes da operação para publicação em sua revista Al-Somood, em árabe.
Foram publicados dois artigos, um dos quais parece ser o relatório oficial integral redigido pelos Talibã de toda a fuga; o outro relatório, mais curto, apareceu assinado por “Muhammad Idris”, um jovem combatente Talibã que estava detido na prisão de Sarposa à espera de julgamento e que foi dos primeiros a entrar no túnel.
Os dois artigos foram traduzidos e distribuídos pela prestigiosa página Afghanistan Analysts. Os relatores pouco dizem sobre alguns episódios, por exemplo, a possível cumplicidade de guardas da prisão. Mas, no geral, o relatório é convincente.
A prisão onde houve a fuga em massa está localizada em Sarposa distrito de Kandahar, bem próximo à estrada que liga Kandahar à cidade de Herat, no leste do país. É o maior centro de detenção no sul do Afeganistão. A prisão foi usada para os insurgentes capturados na região central da rebelião dos Talibã. Foi depois praticamente reconstruída, com assessoria de norte-americanos e canadenses especializados na construção de prisões de alta segurança, para impedir ataques de dentro para fora e fugas – como os que haviam acontecido na década anterior. Em 2003, 45 Talibã escaparam por um túnel escavado de dentro para fora; e em 2008 900 prisioneiros escaparam, depois que homens-bomba explodiram os portões da prisão.
Essas falhas levaram a uma reconstrução em grande escala, para tornar impossíveis as fugas. Construíram-se mais torres de vigia e instalaram-se câmeras; novas muralhas, que avançam também abaixo da superfície, para impedir túneis; e a prisão for cercada por um fosso profundo. Vários Talibã chegaram a reconhecer que a prisão se tornara inexpugnável. Mas um dos membros do movimento, segundo o relatório dos Talibã, ainda tinha dúvidas. O relatório diz que, ele, meio misteriosamente, teria recebido “de suas fontes, conhecimento pleno da prisão, por dentro e por fora”, o que o teria convencido de que “talvez fosse possível cavar um túnel de fora para dentro do outro lado da rua até a prisão, para libertar prisioneiros”.
De início, teve medo de falar sobre sua ideia. Mas, afinal, conversou com dois outros combatentes com os quais viajava numa motocicleta. Céticos de início, esses homens levaram a informação ao alto comando dos Talibã em Kandahar, que autorizou o início dos trabalhos.
Ao final de 2010, um pequeno grupo de Muhahideen Talibã de confiança do comando alugou uma casa a sudoeste da prisão. Levaram para lá pedreiros para fabricar blocos de concreto a serem vendidos no varejo, para dar a impressão de que a casa abrigaria uma das muitas pequenas empresas afegãs de construção que florescem pela cidade, beneficiárias do boom na construção civil no país. Os trabalhadores construíam blocos de concreto no pátio durante o dia, o que dava cobertura à atividade na casa – bem próxima de uma das torres de vigia. Quando esses pedreiros contratados – que nada sabiam do plano de fuga – deixavam o trabalho no fim da tarde, começava o verdadeiro trabalho de construção da empresa: a construção de um túnel em direção à prisão, a partir de um dos aposentos da casa.
No começo, só quatro Mujahideen conheciam o segredo e trabalhavam na escavação, um dos quais trabalhava na cabeça do túnel com uma picareta; os outros três removiam a terra. O túnel era estreito demais para que se pudesse usar um carrinho de pedreiro; usaram triciclos de crianças, que converteram em carrinhos, removendo o assento e a barra de direção, substituídos por um balde para a terra retirada. Carregados, os carrinhos eram puxados por uma corda, de volta à entrada do túnel. Livrar-se da terra removida foi mais fácil do que se supõe, porque terra é material valioso em Kandahar; a terra era removida em caminhão e vendida no mercado local.
Os quatro homens trabalharam durante dois meses no túnel. O número de trabalhadores foi duplicado: oito homens escavavam cerca de 3m por noite. Como era de esperar, ao se aproximarem dos 100m começaram a sofrer com falta de oxigênio. Mais 50m adiante, o ar irrespirável tornou impossível o trabalho. Os escavadores tentaram usar ventiladores, mas as dores de cabeça não melhoravam. Então construíram uma bomba ligada a uma bateria, que silenciosamente aspirava ar puro para dentro do túnel. Ao chegar à estrada (pouco mais de 2m acima do túnel), temeram que o túnel não resistisse, sobretudo ao peso dos caminhões militares carregados, que entravam e saíam da prisão. O túnel foi testado com um caminhão carregado que os Talibã estacionaram sobre o túnel. Concluíram que, embora o túnel tivesse resistido, seria prudente aumentarem a profundidade da escavação.
Nesse ponto, alguma coisa não estava dando certo. Mais tarde, um porta-voz dos Talibã disse que “desde o início contamos com o apoio de profissionais capacitados, engenheiros treinados que supervisionaram a escavação e nos levaram até o ponto onde eram mantidos os prisioneiros”.
Mas isso, como disseram os próprios Talibã, era exatamente o que não havia. Antes de chegarem aos muros da prisão, os escavadores perderam o rumo e escavaram mais de 100m na direção errada. Só perceberam o erro quando encontraram um cano que nada tinha a ver com a prisão e levou-os a uma vila próxima. Só então conseguiram um mapa da prisão, por meio simplíssimo: baixaram da Internet. O tempo perdido era problema grave, porque só podiam trabalhar à noite, para não levantar suspeitas entre os pedreiros que fabricavam blocos de concreto. O verão se aproximava, com noites cada vez mais curtas. Aumentaram para 21 o número de escavadores, para apressar as coisas.
Os prisioneiros eram mantidos em dois locais da prisão. A maior parte estava na chamada “ala política”; mas os outros eram mantidos numa pequena sala chamada “Tawqif Kannah” – o primeiro ponto a que os escavadores chegaram. Para chegar, os escavadores procuraram pelo sinal de um prisioneiro que sabia da operação e que indicaria o ponto final com batidas no chão. Depois de localizado o ponto de chegada, os escavadores trabalharam mais cinco dias na direção da ala política.
A fase final da fuga envolveu inúmeros outros riscos. O homem que o comando do Talibã escalou para chefiar a operação era o mesmo que tivera a ideia de escavar um túnel. Sem que o sigilo jamais tenha sido quebrado até o último minuto, o homem construiu plano meticuloso para remover os prisioneiros pelo túnel com o mínimo risco de que fossem descobertos.
Para garantir suficiente ventilação, instalou-se uma bomba mais potente e o cano que transportava oxigênio foi furado em 10 pontos para que todo o túnel recebesse oxigênio suficiente. Ligaram-se 45 lâmpadas interconectadas e fixadas às paredes do túnel. Na rua, sobre o túnel, homens-bomba esperavam ordens para iniciar um ataque que desviaria a atenção dos guardas da prisão. Instalou-se um fio de telefone para que, no instante em que o túnel fosse aberto dentro da prisão, o fio fosse ligado a um aparelho, de modo que as duas extremidades do túnel pudessem coordenar os movimentos.
Para o sucesso da operação era crucial o trabalho de três (ou quatro, as fontes não coincidem) prisioneiros que sabiam de todo o plano. Tomaram-se providências para impedir que vários prisioneiros identificados como espiões infiltrados entre os prisioneiros pela administração da prisão soassem o alarme. Para quebrar os pisos de concreto nas duas salas onde estavam os prisioneiros, usaram-se elevadores hidráulicos (‘macacos’) de erguer carros. Os primeiros a chegar à prisão, estabeleceram a comunicação por telefone e entregaram aos prisioneiros quatro pistolas e quatro facas para neutralizar informantes ou espiões que houvesse lá e que pudessem ameaçar o sucesso do resgate.
Um dos prisioneiros da ala política era o combatente Talibã de 23 anos de nome Idris, preso sete meses antes e que aguardava julgamento. Idris narrou os momentos finais da fuga. Interessante, ele diz que todas as portas internas das celas da ala política da prisão estavam destrancadas, o que leva a crer que os guardas encarregados daqueles prisioneiros, muitos dos quais tinham telefones celulares, estavam controlados. Outro dos que escaparam diz que os guardas estavam ou dormindo ou drogados com ópio, maconha ou heroína e não tinham condições de impedir a saída de ninguém. Evidentemente, tudo isso pode ser, apenas, um modo de não revelar a participação dos guardas na fuga.
Idris diz que ouviu falar da fuga, pela primeira vez, quando foi convidado, com vários outros, a comer e orar com um Imã numa sala. Foi o Imã quem falou a todos ali reunidos sobre a fuga, naquela noite. Removeu-se o revestimento do chão da cela. Diz Idris: “Momentos depois, alguém bateu de baixo para cima, na área vazia” e usaram o ‘macaco’ hidráulico para quebrar o concreto. Explica por que precisavam das armas: “Aquela ala tinha duas salas para criminosos e vários espiões da polícia. Decidiu-se que, se os espiões criassem problemas ou tentassem alertar os guardas, nós os mataríamos”. Os prisioneiros foram informados de que não poderiam levar nenhuma bagagem.
Idris foi o segundo homem a entrar no túnel. Descreve o que viu: “O túnel não era muito largo. Podia-se andar agachado ou rastejar sem dificuldade. A cada 15m havia uma lâmpada, que clareava muito bem. Os Mujahideen haviam instalado um tubo de plástico de 6 polegadas para ventilação. Andamos cerca de 15 minutos por dentro do túnel e chegamos ao outro lado.” \\Na saída do túnel, os prisioneiros eram revistados por um grupo de Mujahideen, que recolhiam telefones celulares e dinheiro que ultrapassasse 3 mil Afghanis (£43). Não havia carros e caminhões suficientes para transportar todos; os que conheciam Kandahar foram instruídos a sair pelos fundos da casa e andar até a cidade, evitando as vias principais. Idris conta que ele e alguns amigos pararam um táxi às 4h da manhã e passaram livremente por dois postos policiais. Àquela altura, todos os prisioneiros políticos já haviam saído do túnel, inclusive um que tinha uma perna quebrada, ainda fixada por pinos metálicos. Os pinos quebraram dentro do túnel, mas o homem foi carregado para fora pelos outros.
Os Talibã estimam o custo total da operação em cerca de £12 mil “pelo aluguel da casa, comida, alimentação para os Mujahideen, custo dos caminhões e outros equipamentos”.
O relato de como mais de 500 homens conseguiram dispersar-se sem ser notados em Kandahar, no meio da noite, soa estranho, mas não é inverossímil. As casas afegãs são em geral conjuntos voltados para um pátio interno, com paredes externas sem janelas, o que impede que se veja o interior das casas. O relato dos Talibã diz que “a casa usada para a operação estava a cerca de 20m de uma torre de vigia inimiga”, de onde se podia ver o interior do pátio da casa.
O mais provável é que a audácia da operação gigante de escavação, ao longo de tanto tempo, sob o nariz dos guardas, tenha sido o fator decisivo para impedir que as autoridades descobrissem o plano. Também impressiona que pelo menos 25 pessoas que participavam do plano nas etapas finais tenham conseguido preservar absoluto sigilo.
Nos dias que se seguiram à fuga, a mídia estrangeira só comentou o ganho dos Talibã, que haviam conseguido resgatar tantos combatentes experientes, prontos para voltar aos combates. Mas talvez mais importante que isso é o quanto a grande fuga da prisão de Kandahar diz sobre a capacidade de organização, a habilidade e a determinação dos Talibã. Esses são os atributos que explicam por que é tão difícil derrotá-los.
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