7/6/2011, Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O líder do Hamas Ismail Hanniyeh, à direita, aperta a mão do dirigente senior do Fatah, Nabil Shaath durante a reunião de Gaza em maio último |
Encontros secretos entre intermediários palestinos, agentes da inteligência do Egito, o ministro turco de Relações Exteriores, o presidente Mahmoud Abbas e Khaled Meshaal, líder do Hamás – uma ida secreta a Damasco, tendo de desviar da cidade de Deraa, em rebelião – levaram à unidade dos palestinos que tanto perturbou os governos de Israel e dos EUA. Em maio, Fatah e Hamás puseram fim a anos de conflitos, com um acordo crucial para alcançar o reconhecimento internacional do estado palestino.
Várias cartas detalhadas, aceitas pelos dois lados, das quais The Independent tem cópias, mostram o quanto foram complexas as negociações. O Hamás também buscou – e obteve – o apoio do presidente sírio Bachar al-Assad, do vice-presidente Farouk al-Sharaa e de seu ministro de Relações Exteriores, Walid Moallem. Entre os resultados, há um acordo feito por Meshaal para pôr fim aos ataques de foguetes do Hamás, de Gaza, contra Israel – porque a resistência passaria a ser direito exclusivo do estado – e um acordo pelo qual o estado palestino reivindica fronteiras baseadas nas fronteiras de Israel em 1967.
“Sem a boa vontade de todos os lados, o auxílio dos egípcios e a aceitação pelos sírios – além do desejo dos palestinos de unir-se, desde o início da Primavera Árabe –, não teríamos conseguido fazer o que fizemos”, disse-me pessoalmente um dos principais intermediários, Munib Masri, 75 anos. Foi Masri quem ajudou a estabelecer um ‘Fórum Palestino’ de independentes, depois de o Hamás ter alcançado extraordinária vitória eleitoral em 2006. “Sempre entendi que as divisões que se criaram seriam uma catástrofe, e passamos quatro anos andando para frente e para trás entre os vários partidos”, disse Masri. “Abu Mazen (Mahmoud Abbas) pediu-me várias vezes que mediasse os contatos. Começamos a nos encontrar na Cisjordânia. Todos participaram. Reunimos muitas capacidades.”
Em três anos, membros do Fórum Palestino viajaram mais de 12 vezes a Damasco, ao Cairo, a Gaza e à Europa e várias iniciativas foram rejeitadas. Masri e seus colegas negociaram diretamente com o primeiro-ministro Hanniyeh do Hamás em Gaza. Adotaram a chamada “iniciativa de troca de prisioneiros” de Marwan Barghouti, alto líder do Fatah, que está preso em Israel; então, com os ventos das revoluções na Tunísia e no Egito, a juventude palestina, dia 15 de março, exigiu que os partidos se unissem e pusessem fim à rivalidade entre Fatah e Hamás. Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel sempre se recusou a negociar com Abbas porque, dizia ele, os palestinos estavam divididos. Dia 16 de março, em discurso, Abbas disse que estava “pensando em ir a Gaza”. Masri, que estava presente, subiu numa cadeira e aplaudiu.
“Supus que o Hamás responderia positivamente” – Masri recorda. “Mas nos primeiros dois ou três dias depois do discurso de Abbas, a resposta foi negativa. O Hamás queria eleições imediatas e nada de diálogo.” Abbas partiu para Paris e Moscou – para mostrar desagrado, aos olhos de alguns de seus associados. Mas o Fórum não desistiu.
“Redigimos um memorando – dissemos que íamos visitar os egípcios, para nos congratular com a revolução deles. Tivemos duas reuniões com o chefe da inteligência egípcia, Khaled Orabi – o pai de Orabi foi general do exército ao tempo do rei Farouk – e nos encontramos com Mohamed Ibrahim, do departamento de inteligência.” O pai de Ibrahim tornou-se muito conhecido na guerra de 1973, quando capturou o oficial israelense de mais alta patente no Sinai. A delegação também se reuniu com assessores de Ibrahim, Nadr Aser e Yassir Azawi.
Sete membros de cada grupo palestino formaram a delegação que foi ao Cairo. Eis os nomes que, no futuro, estarão nos livros de história da Palestina: pela Cisjordânia, o Dr. Hanna Nasser (reitor da Universidade Bir Zeit e da comissão eleitoral central palestina); Dr. Mamdouh Aker (presidente da sociedade de direitos humanos); Mahdi Abdul-Hadi (presidente de uma associação política em Jerusalém); Hanni Masri (analista político); Iyad Masrouji (comerciante de produtos farmacêuticos); Hazem Quasmeh (dirige uma Organização Não Governamental) e o próprio Munib Masri.
O ‘lado’ de Gaza foi representado por Eyad Sarraj (que não pôde viajar ao Cairo por ter adoecido); Maamoun Abu Shahla (membro da diretoria do Banco Palestino); Faysal Shawa (comerciante e proprietário de terras); Mohsen Abu Ramadan (escritor); Rajah Sourani (militante árabe de direitos humanos, que não viajou ao Cairo); ‘Abu Hassan’ (membro da Jihad Islâmica, indicado por Sarraj); e Sharhabil Al-Zaim (advogado em Gaza).
“Esses homens passaram muito tempo discutindo com o alto escalão do serviço de inteligência do mukhabarat egípcio” – Masri lembra. “Nos encontramos com eles dia 10 de abril, mas enviamos um documento antes de viajar. Por isso o contato tornou-se tão importante. Em Gaza havia dois ‘lados’ diferentes. Falamos sobre a microssituação, sobre os gazenses presos em Gaza, sobre direitos humanos, sobre o bloqueio egípcio, sobre dignidade. Shawa dizia “sentimos como se não tivéssemos dignidade – e sentimos que a culpa é nossa”. Nadr Asr, do departamento de inteligência disse: “Vamos mudar tudo isso.”
“Voltamos às 19h, para nos reunirmos outra vez com Khaled Orabi. Eu disse: “Escute, preciso saber, de você: a nova iniciativa agrada a vocês, um pacote que é situação de ganha-ganha para todos? O caso da Palestina continua ‘quente’ no Cairo? Ele respondeu: “É processo meio longo – mas, sim, gostamos da ideia. Vocês conseguem pressionar os dois lados, o Fatah e o Hamás, e trazê-los para o projeto? Mas, sim, trabalharemos com vocês. Procurem o Fatah e o Hamás – e tratem tudo isso como assunto confidencial.” Nós aceitamos. Fomos falar com Amr Moussa (agora, candidato à presidência do Egito pós-revolução) na Liga Árabe. De início, mostrou-se muito cauteloso – mas no dia seguinte, quando nos reunimos com a equipe dele, todos foram muito positivos. Dissemos: ‘Deem uma chance à ideia’. Dissemos que a Liga Árabe foi criada para a Palestina, que a Liga Árabe tem papel importante em Jerusalém.”
A delegação visitou também Nabil al-Arabi, no ministério de Relações Exteriores do Egito. “Al-Arabi disse: ‘Posso chamar o ministro das Relações Exteriores da Turquia, que está no Egito?’ O ministro veio e discutimos juntos a iniciativa. Ali descobri que o ‘novo’ Egito estava muito confiante no sucesso da nossa iniciativa: eles quiseram [itálicos] discutir na presença da Turquia. Assim, discutimos todos juntos e eu voltei com os outros para Amã, às 21h.”
O grupo foi à Cisjordânia, para relatar o que fora feito – “estávamos felizes, nunca antes nos sentíramos como naquele dia” – e informar a Azzam Ahmed (chefe do grupo do Fatah que trabalhava pela reconciliação) que o grupo se preparava para apoiar a iniciativa de Mahmoud Abbas sobre Gaza. “Tivemos sete grandes reuniões na Palestina para reunir ali todos os grupos e os independentes. Abbas já nos dera um aval presidencial. Conversei com Khaled Meshaal (líder do Hamás, que vive em Damasco) por telefone. Meshaal perguntou: ‘Abu Mazzen (Abbas) concorda com tudo isso?’ Respondi que a questão não era essa. Dia seguinte fui a Damasco com Hanna Nasser, Mahdi Abdul Hadi e Hanni Masri. Por causa dos problemas na Síria, tivemos de contornar Deraa. Tenho boa relação com Meshaal. Ele disse que havia lido o nosso documento – e que achava que valia a pena trabalhar sobre a ideia.”
O fato de que os dois lados quisessem saber o que o outro pensava da iniciativa, antes de decidir, era sinal de que persistia a desconfiança entre o Hamás e Abbas. “Meshaal perguntou-me: ‘O que diz Abu Mazzen (Abbas)?’ Eu ri e respondi: ‘Você sempre pergunta isso. Estou aqui para saber o que vocês [itálicos] querem. Nos encontramos com assessores de Meshaal, Abu Marzouk, Izzat Rishiq e Abu Abdu Rahman. Lemos e revisamos o documento do acordo durante seis horas e meia. A única coisa que não arrancamos de Meshaal foi que o governo fosse constituído por acordo. Dissemos a ele que o governo seria governo de união nacional – sob a condição que teríamos de ser capazes de organizar e realizar eleições, levantar o bloqueio de Gaza e reconstruir Gaza, que tínhamos de obedecer à lei internacional, à Carta da ONU e às resoluções da ONU. Meshaal pediu três ou quatro dias. Aceitou que a resistência só aconteceria ‘na defesa do interesse nacional do país’ – e que teria de ser ‘aqlaqi’ – ética. Os ataques de foguetes contra civis tinham de acabar. Em outras palavras: ele tinha de garantir que não haveria mais foguetes de Gaza, contra Israel.”
Meshaal contou a Masri e acompanhantes que estivera com o presidente Bashar Assad da Síria, com seu vice-presidente Sharaa e com o ministro sírio de Relações Exteriores Moallem. “Disse que queria o apoio deles – mas no fim, prevaleceu a palavra do povo palestino. Estávamos muito felizes – dissemos que ‘surgiu uma pequena brecha’. Meshaal disse: ‘Nós não vamos deixar vocês sem apoio’. Dissemos que levaríamos a palavra dele ao Fatah e aos independentes na Cisjordânia, e aos egípcios. Na Cisjordânia, o Fatah chamava a iniciativa de ‘iniciativa do Hamás’ – mas dissemos que não, a iniciativa é de todos. Dois dias depois, Meshaal disse que falara com a inteligência do Egito e que eles estavam gostando do que tínhamos proposto.”
As conversações foram bem sucedidas. Meshaal concordou com enviar dois de seus principais homens ao Cairo. A equipe de Masri esperava que Abbas fizesse o mesmo. Quatro representantes – dois de cada lado – viajaram ao Egito dia 22 de abril. Um ano antes, quando houve um impasse entre os dois lados palestinos, no Egito, o regime de Moubarak tentara criar obstáculos ainda maiores para impedir qualquer reconciliação. Meshaal chegou a reunir-se, sem qualquer resultado, com Omar Sulieman – factótum da inteligência de Mubarak e o melhor amigo de Israel no mundo árabe – em Mecca. Se alguém ainda duvidasse, ali se comprovou que Sulieman realmente trabalhava para os israelenses. Dessa vez, tudo foi mesmo muito diferente.
No dia que Abbas e Meshaal foram ao Cairo, foram os dois governos completos, exceto os dois primeiros-ministros rivais, Fayad e Hanniyeh. O Hamás declarou que, ao longo dos últimos quatro anos, os israelenses haviam roubado ainda mais terras em Jerusalém e construído mais colônias exclusivas para judeus na Cisjordânia ocupada. Meshaal irritou-se, quando supôs que não o deixariam falar do pódio, como os demais presentes – e falou, no evento. E o Hamás aceitou a fórmula sobre as fronteiras de 1967, consciente de que assim reconhecia a existência de Israel; aceitou também a referência à resistência; e também concordou em ceder mais tempo a Abbas, para mais negociações.
No momento em que o Hamás passasse a integrar o governo de união, estaria reconhecendo o estado de Israel. Mas se não integrasse o governo, ninguém reconheceria coisa alguma e não haveria acordo. “Não é justo dizer ao Hamás ‘faça isso ou aquilo’”, diz Masri. “Claro que a resistência é direito recíproco. Mas se o Hamás não se integrasse ao governo de união nacional, passaria a ser apenas um partido político, sem tribuna para dizer o que querem dizer. Os EUA portanto que se preparem para conhecer o Hamás ativo na formação do governo. Esse governo respeitará as resoluções da ONU e a legislação internacional. Essa ação tem de ser mútua. Os dos lados perceberam que, por pouco, teriam perdido o barco da Primavera Árabe. Não foi trabalho meu – foi resultado da conjunção de muitos esforços. Não fosse pela mediação dos egípcios e pela boa vontade dos dois grupos palestinos, nada teria acontecido.” No dia seguinte à assinatura do acordo, partidários do Hamás e de Abbas concordaram em parar de prender militantes de um lado e de outro.
Hoje afinal se conhece a história da unificação dos palestinos. A reação de Netanyahu, primeiro-ministro de Israel à novidade – depois de ter-se negado a negociar com os palestinos porque estavam divididos – foi decidir que não negociaria com Abbas, se o Hamás fosse integrado ao governo palestino. O presidente Obama virtualmente ignorou a iniciativa da unidade palestina.
Mas falar de “fronteiras de 1967” implica que o Hamás reconhece a existência de Israel; e a decisão negociada sobre a resistência implica o fim dos foguetes de Gaza contra Israel. A disposição para subordinar-se à legislação internacional e às resoluções da ONU implica que a paz pode ser completada e que um estado palestino pode ser criado. Essa, pelo menos, é a opinião dos dois lados palestinos.
O mundo esperará para saber se Israel outra vez rejeitará a paz.
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