Pepe Escobar |
2/6/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A primavera árabe vai chegando ao verão, e a contrarrevolução está vencendo.
Alguns ditadores – mas não os sistemas – já caíram na Tunísia e no Egito. A “revolução” líbia é pura farsa: a guerra aérea da OTAN somada a “forças especiais” ocidentais ativas em terra para ajudar uma gangue de desertores/exilados e golpistas. No Bahrain, Iêmen e Síria, as forças populares foram derrotadas.
No que tenha a ver com Washington e seletas capitais europeias, prevalece a “estabilidade”; como em Israel e na Arábia Saudita, os pilares, agora que o Egito está outra vez por um fio; e o Clube Contrarrevolucionário do Golfo, também conhecido como Conselho de Cooperação do Golfo [ing. Gulf Cooperation Council (GCC)] persiste, mais firme que o Himalaia. Não se permitem revisionismos. “Democracia”, sim, sim – desde que não ameace “interesses ocidentais”.
E, mesmo assim, uma vida secreta das Arábias, que se agita nas sombras, diz muito mais sobre o futuro.
Até aqui, a salvo da guilhotina
Considere-se o Qatar – outra vez sob os holofotes, porque fontes da não-Federação Internacional de Futebol [ing. non-Federation Internationale de Football Association] que governa o futebol juram que o emirado comprou a Copa do Mundo de 2022. E Doha também andou chutando outras bolas mais sérias, como quando o emir do Qatar visitou o presidente Abdelaziz Bouteflika da Argélia, para pedir gentilmente que ele parasse de fornecer tanques e veículos blindados ao coronel Muammar Gaddafi da Líbia.
Tudo dependerá de quem esteja realmente no comando do show na Argélia – Bouteflika, ou mercadores “bandidos” de armas, tentados pelos fundos de petróleo de Gaddafi e por 1.100 quilômetros de fronteira de deserto, perfeitos para contrabando.
O Conselho de Cooperação do Golfo é unânime: Gaddafi tem de sair. O Qatar é a face do Conselho de Cooperação do Golfo na Líbia. Os jatos de combate qataris são parte da força de ataque da OTAN. Conselheiros qataris estão infiltrados bem fundo em Misrata, misturados aos “rebeldes”. O Qatar também está manobrando seu soft power em direção à Síria de Assad; e uma Damasco enfurecida acaba de cancelar projetos qataris na Síria, de mais de US$6,4 bilhões.
E isso quando o número de sírios mortos pela máquina de repressão do presidente Bashar al-Assad já ultrapassou o número de egípcios mortos pela máquina de repressão de Hosni Mubarak. Não fosse a lei de contagem de mortos que manda calcular diferentemente os mortos por regimes “bandidos” e os mortos pelos “nossos” filhos da puta, Assad já estaria amarrado e pronto para a guilhotina. O problema é que o consórcio anglo-franco-norte-americano não encontrou saída “aceitável” para o caso de Assad (não existe). Daí advieram as sanções brandas e o benefício da dúvida.
Simultaneamente, o Qatar obra para convencer o Conselho de Cooperação do Golfo a criar um Banco de Desenvolvimento do Oriente Médio – inspirando no Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento [ing. EBRD] –, essencialmente para apoiar com dezenas de bilhões de dólares anuais os estados árabes “primaveris” que se comportem nos termos da esperada “democracia”. Nenhum figurão no Conselho de Cooperação do Golfo jamais criticará a democracia-zero que impera no próprio Conselho de Cooperação do Golfo.
A Casa de Saud mantém-se fria, calma, contida – confiante de que em breve terá muito a festejar, com negócio de $60 bilhões de dólares em armas (que virão de Washington), ao mesmo tempo em que a Grã-Bretanha já garante treinamento à Guarda Nacional de Saud, a ser usada para repressão sem limites no vizinho Bahrain.
Segundo o ministério britânico da Defesa, trata-se só de “treinamento armado, em campo, com desenvolvimento de competências militares genéricas, além de treinamento para gestão de tumultos, localização e desmonte de bombas, manutenção da ordem pública e treinamento de tiro”, todas as competências supracitadas consideradas utilíssimas no Bahrain.
O rei saudita Abdullah talvez odeie Gaddafi visceralemente, mas no que tenha a ver com Assad da Síria – independente da contabilidade dos cadáveres –, o rei está andando devagar, movendo uma duna de areia por vez, saboreando antecipadamente o gosto de ver a Síria dominada pela Fraternidade Muçulmana.
Na Líbia, a Casa de Saud só faz saborear o pesado contingente islâmico inserido no conselho “rebelde” de transição, o qual, por falar dele, mantém oculta a identidade da maioria de seus membros.
A Casa de Saud foi diretamente aos “-stãos” do Paquistão, Malásia, Indonésia e Ásia Central em busca de apoio diplomático – para esmagar os protestos pró-democracia no Bahrain. Agora, saboreiam o terrível futuro, quando Wahhabis linha dura discutirão com seus bons amigos do serviço secreto do Paquistão questões que irão do melhor modo de controlar tumultos a sequestros e, até, ao inigualável targeted assassination, “assassinato de alvo predefinido”.
Mas a parte mais sumarenta talvez seja a reação dos EUA: essa perpétua ultrarreacionária aliança Paquistão-sauditas estaria interferindo no movimento de Washington, de “orientar os levantes populares” rumo a uma “conclusão democrática”. Quem pensa que engana quem?
Cavalo de Tróia no cafofo
O levante sírio é 80% movimento de jovens, movimento secular, sob um slogan que, sintetizado, daria “todos unidos contra slogans e símbolos de partidos, religiões ou etnias”. O boato que mais se ouve em Damasco é que tudo que se diz e ouve é boato.
O que é certo é que aqueles jovens estão sendo mortos às pilhas pela máquina de repressão de Assad; os alawitas estão apavorados; as milícias pró-governo incitam ao caos também quando atacam o exército e a polícia; e a burguesia em Damasco e Aleppo ainda não jogou suas cartas (sabem que esse é processo a ser cozido em fogo baixo).
No Bahrain, mulheres que trabalham, muitas com pouco mais de 20 anos, estão sendo presas nos locais de trabalho. Muitas desapareceram em prisões de estilo militar. As poucas que têm sido libertadas denunciam abuso sexual violento e até tortura.
É um estado membro do Conselho de Cooperação do Golfo torturando suas mulheres para esmagar um movimento pró-democracia. Vê-se um upgrade nos métodos da Arábia Saudita, frequentemente descrita como a maior prisão feminina do planeta.
A Casa de Saud anda ocupadíssima também com o Egito – agora que o Conselho Militar Egípcio recebeu perfeitos 4 bilhões de dólares de Riad. A lembrar, um detalhe iluminador: o Marechal de Campo Tantawi – atual homem forte “transicional” no Cairo – foi ataché de Defesa do governo do Egito no Paquistão, durante a Jihad afegã nos anos 1980s.
O que quer dizer que Tantawi é queridinho do serviço secreto do Paquistão (ISI) e também é queridinho do príncipe Bandar saudita. Com Tantawi metido no Egito como Cavalo de Tróia saudita, os sauditas apostam que o futuro do Egito está muito mais para Fraternidade Muçulmana que para Praça Tahrir secular.
Tudo isso casa à maravilha com o ardente (nada secreto) desejo de Washington: um Egito à moda do Paquistão, com o exército comandando um governo civil de fachada constituído de partidos islâmicos eleitos “nas urnas”. Mas esse regime de islâmicos “moderados” só será aceitável no caso de abraçar o neoliberalismo e subscrever os acordos de Camp David com Israel.
A Casa de Saud subscreve esse projeto por uma única razão, muito simples. A Casa de Saud sabe que sua suposta hegemonia no mundo árabe só existirá enquanto o Egito for mantido sob total insignificância política. A via para conseguir mantê-lo assim é islamicizar – à moda Wahhabi – o estado e a política egípcios. Esperemos que a Praça Tahrir lute com unhas e dentes contra esse plano. Há pelo menos algumas poucas razões para esperar que o verão árabe que se aproxima não seja, só, verão de fracassos.
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