sábado, 11 de junho de 2011

Um mundo em guerra financeira

Nota de tradução:

Ao ler este artigo, todas as vezes em que a palavra “Grécia” for mencionada substitua-a mentalmente pela palavra “Portugal” ou “Itália” ou “Espanha” ou “Irlanda” e suas respectivas moedas pré-Euro — quase sempre faz sentido.


por Michael Hudson*
 

Quando a Grécia substituiu o Dracma pelo euro, em 2000, a maior parte dos eleitores era pela adesão à eurozona. A sua esperança era que a mesma garantisse estabilidade e que isto promoveria a elevação dos salários e dos padrões de vida. Poucos viram que o grande obstáculo era a política fiscal. A Grécia fora excluída da eurozona no ano anterior devido ao descumprimento do critério do Tratado de Maastricht (1992) para a entrada na UE, de limitar os déficits fiscais a 3 por cento do PIB e a dívida governamental a 60 por cento.

O Euro também tem outros problemas fiscais e monetários graves, desde o princípio. Há pouca consideração sobre as economias mais ricas da UE ajudarem a trazer aquelas menos produtivas ao mesmo nível, tal como fizeram os Estados Unidos com suas áreas deprimidas (como no resgate da indústria automobilística em 2010) ou quando o governo federal declara um estado de emergência devido a inundações, tornados ou outras perturbações.

Em comparação com os Estados Unidos e na verdade quase todos os países, a “ajuda” da UE é em grande medida egoísta – uma combinação de promoção de exportações e salvamentos para economias devedoras pagarem a bancos dos principais países credores da Europa: Alemanha, França e Holanda.

A carta da UE proíbe o Banco Central Europeu (BCE) de financiar déficits governamentais e impede (na verdade, “salva”) os membros de terem de pagar pela “irresponsabilidade fiscal” de países que incidem em déficits governamentais. Esta política fiscal “dura” foi o preço que os países de rendimento mais baixo tiveram de subscrever quando aderiram à União Europeia.

Ao contrário, também, dos Estados Unidos (ou quase qualquer país), o parlamento da Europa é meramente cerimonial. Ele não tem poder para estabelecer e administrar impostos à escala da UE. Politicamente, o continente permanece uma federação à deriva. Espera-se que cada membro descubra o seu próprio caminho. O Banco Central não monetiza déficits e há uma partilha federal mínima com os estados membros. Os gastos deficitários públicos – mesmo para investimento de capital em infraestrutura – devem ser financiados incorrendo em dívida, taxas de juro crescentes à medida em que os déficits incorridos se tornam mais arriscados.

Isto significa que despesas com transportes, energia e outras infraestruturas básicas que eram financiados publicamente na América do Norte e nas principais economias europeias (proporcionando serviços a taxas subsidiadas) devem ser privatizados. Os preços para estes serviços devem ser estabelecidos suficientemente altos para cobrir juros e outros encargos de financiamento, altos salários e bônus e serem administrados para o lucro – na verdade, para a extracção de renda pois a autoridade regulamentar pública é desativada.

Isto torna menos competitivos países que vão por este caminho. Também significa que eles incorrerão em dívidas para com a Alemanha, França e Holanda, causando as tensões financeiras que agora estão levando a confrontações com governos democraticamente eleitos.

Está em causa se a Europa deveria sucumbir ao planejamento centralizado – na ala direita do espectro político, sob a bandeira dos “mercados livres” definidos como economias livres de regulamentação pública de preços e de supervisão, livres da proteção ao consumidor e livres de impostos sobre os ricos.

A crise para a Grécia – assim como para a Islândia, Irlanda e economias praguejadas por dívidas impostas pelos Estados Unidos – verifica-se quando lobbysts dos bancos pedem que os “contribuintes” paguem os salvamentos de más especulações e dívidas do governo que decorrem em grande medida de cortes fiscais para os ricos e para o imobiliário, comutando o fardo fiscal bem como o fardo da dívida para o trabalho e a indústria. O poder crescente do setor financeiro em alcançar este favoritismo fiscal está paralizando economias, conduzindo-as outra vez a depender cada vez mais do financiamento da dívida para permanecerem solventes. A ajuda é condicionada a que os países receptores reduzam seus níveis salariais (“desvalorização interna”) e liquidem suas empresas públicas.

A visão em túnel que guia estas políticas é auto-reforçadora.

A Europa, a América e o Japão retiram seus administradores econômicos das fileiras de profissionais que deslizam para trás e para a frente entre os bancos e os ministérios das finanças – o que os japoneses chamam “descer do céu” para o setor privado onde os prêmios materiais são maiores.

Não se trata simplesmente de pagamento atrasado por serviços passados. A sua experiência de governo e os seus contatos ajudam-nos a influenciar a burocracia pública restante e fazer lobby das suas substituições oportunistas para promover políticas fiscais e monetárias favoráveis ao sector financeiro. Isto é, para algemar o governo e desviar a regulamentação e a tributação do setor financeiro, do imobiliário e dos monopólios clientes, além de utilizar o poder tributário e de criação de dinheiro para proporcionar salvamentos quando ocorre o inevitável colapso financeiro no momento em que a economia contrai-se abaixo dos níveis de ruptura, no terreno da situação líquida negativa.

Políticas fiscais regressivas – comutando impostos sobre os ricos e a propriedade para o trabalho – provocam déficits orçamentais financiados pela dívida pública. Quando possuidores de títulos puxam a tomada, a pressão resultante força governos a liquidarem dívidas com a venda de terra e de outros ativos públicos para compradores privados (a menos que governos repudiem a dívida ou recuperem-se restaurando a tributação progressiva). A maior parte de tais vendas é feita a crédito. Isto beneficia os bancos com a criação de um mercado de empréstimos para a compra de umas empresas pelas outras (buyouts). Enquanto isso, os juros absorvem os rendimentos, privam o governo de receita fiscal que anteriormente podiam receber. A prenda fiscal para os financeiros baseia-se na má política de tratar o financiamento da dívida como um custo necessário de fazer negócio, não como uma opção política – uma opção que na verdade é induzida pela distorção fiscal de fazer com que os pagamentos de juros sejam fiscalmente dedutíveis.

Compradores contraem empréstimo para se apropriarem de “bens públicos” ("the commons") do mesmo modo como licitam pelo imobiliário comercial. O vencedor é quem quer que seja que consiga o maior empréstimo para buyout – prometendo a maior parte da receita como pagamento ao banco sob a forma de juros. Assim o setor financeiro acaba, no fim, por ficar com a receita até então paga a governos como impostos ou taxas de utilização. Isto é um eufemismo para “mercado livre”.

Promover o setor financeiro a custa da economia

A resultante alavancagem da dívida não é um problema solúvel. É uma quadratura da qual as economias só podem escapar pela concentração na produção e no consumo ao invés de meramente subsidiar o sistema financeiro ao permitir que os atores façam dinheiro a partir de dinheiro através do inflacionamento de preços de ativos nos teclados eletrônicos do crédito livre.

A austeridade causa desemprego, o qual reduz salários e impede o trabalho de participar no excedente (surplus). Isto permite às companhias forçar os seus empregados a trabalhar horas extras e mais arduamente a fim de obter ou manter um emprego, mas não eleva realmente nem a produtividade nem os padrões de vida do modo idealizado um século atrás. Aumentar os preços da habitação a crédito – exigindo maiores dívidas para o acesso à propriedade da casa – não é prosperidade real.

Contrastar a economia “real” com a do setor financeiro exige estabelecer distinções entre o crédito e o investimento produtivo e aquele não produtivo.

É necessário entender o conceito de renda (rent) econômica como um retorno institucional e político ao privilégio sem um custo de produção correspondente.

A economia política clássica era toda voltada para a distinção entre o rendimento ganho do rendimento não ganho, entre o valor do custo e o preço de mercado. Mas os lobbiyists pró-financeiros negam que qualquer rendimento ou riqueza rentista seja não ganha ou parasitária. As contas do rendimento e do produto nacional (national income and product accounts, NIPA) não estabelecem tal distinção. Este ponto cego não é acidental. Ele é a essência da teoria econômica pós-clássica. E ele explica porque a Europa está tão paralisada.

O modo pelo qual foi criado o euro, em 1999, reflete esta visão superficial. As regras fiscais e financeiras de Maastricht maximizam o mercado do empréstimo comercial ao impedir bancos centrais de fornecerem a governos (e, portanto, à economia) créditos para crescerem. Os bancos comerciais são a única fonte de financiamento de déficits orçamentários – definidos de modo a incluir investimento de infraestrutura em transportes, comunicações, energia e água. A privatização destes serviços básicos impede governos de os fornecerem a taxas subsidiadas ou gratuitamente. Assim a estradas são transformadas em estradas pedagiadas, cobrando taxas de utilização que são prontamente monopolizadas.

As economias são transformadas em conjuntos de pedágios, pagando seus encargos de acesso como juros a credores. Estas rendas extrativas tornam de alto custo as economias privatizadas. Mas para o setor financeiro isto é “criação de riqueza”. Ele é avançado ao desagravar fiscalmente pagamentos de juros a bancos e possuidores de títulos – ainda que agravando nesse processo os déficits fiscais.

A crise orçamentária grega em perspectiva

Um dos legados fiscais da junta de coronéis (1967-74) foi a evasão fiscal por parte dos ricos. Os partidos “amistosos para com os negócios” que se seguiram foram relutantes em tributar a riqueza.

Um relatório de 2010 declarava que aproximadamente um terço do rendimento grego não era declarado, com “menos de 15 mil gregos declarando rendimentos superiores a €100 mil, apesar de dezenas de milhares viverem em opulenta riqueza nos arredores da capital. Uma nova iniciativa dos socialistas para identificar proprietários de piscinas através do Google Earth recebeu uma resposta virulenta quando gregos investiram em relva falsa, camuflagem e asfalto a fim de esconder os passivos fiscais dos espiões no espaço”. (Helena Smith, “The Greek spirit of resistance turns its guns on the IMF”, The Observer, May 9, 2010.)

Como a ditadura militar comprimiu a despesa pública para níveis mais baixos do que a norma europeia, a infraestrutura precisava ser reconstruída – e isto exigiu déficits orçamentários. O único meio de evitar incorrer em déficits teria sido fazer com que os ricos pagassem os impostos que deveriam. Mas pressionar a extração da despesa pública até o nível que os gregos ricos estavam dispostos a pagar em impostos não parecia politicamente factível. (Desde a década de 1980 quase nenhum país pôs em vigor as políticas fiscais da Era Progressista).

O limite de Maastricht de 3% dos déficits orçamentários recusa contabilizar despesas de capital dos governos como formação de capital, com base na suposição ideológica de que todos os gastos de governo são uma sobrecarga ruinosa e de que só o investimento privado é produtivo.

O caminho de menor resistência era entrar no engano fiscal. Banqueiros da Wall Street ajudaram os partidos “conservadores” (isto é, fiscalmente regressivos e financeiramente perdulários) a esconder a extensão da dívida pública com a espécie de contabilidade-lixo de que engenheiros financeiros fizeram trabalho pioneiro para a ENRON. E como é habitual quando está envolvida, a fraude financeira na busca de taxas e lucros, a Goldman Sachs estava no meio.

Em Fevereiro de 2010 a revista alemã Der Spiegel revelou como a firma havia ajudado a Grécia a esconder a subida da dívida pública, hipotecando ativos num negócio intrincado de derivativos – legal, mas com a intenção encoberta de contornar a limitação de Maastricht quanto a déficit. “As regras de relatar do Eurostat não registram exaustivamente transações envolvendo derivativos financeiros”, de modo que a obrigação da Grécia aparecia como um swap cruzado de divisa (cross-currency swap) ao invés de uma dívida. O governo utilizou entidades fora do balanço e derivativos semelhantes aos que bancos islandeses e irlandeses utilizariam posteriormente para se permitirem desaparecimentos fictícios de dívidas e uma ilusão de solvência financeira.

A realidade, naturalmente, era uma dívida virtual. O governo foi obrigado a pagar à Wall Street milhares de milhões de euros com base em futuras taxas de aterragem no aeroporto e futuras taxas da lotaria nacional, pois “os chamados swaps cruzados de divisas ... vencem e incham o déficit já inflado do país”. (Beat Balzli, “How Goldman Sachs Helped Greece to Mask its True Debt”, Der Spiegel, February 8, 2010. O relatório acrescenta: “Uma vez, despesas militares gigantescas foram deixadas de fora e em outra vez milhares de milhões em dívidas de hospitais”. Traduzido em linguagem direta, o negócio deixou o déficit do setor público da Grécia a 12 por cento do PIB, quatro vezes o limite de Maastricht.

A utilização de derivativos para engendrar uma contabilidade estilo ENRON permitiu à Grécia mascarar uma dívida como um swap de mercado baseado em opções de divisas estrangeiras, a serem concluídas num prazo de 10 a 15 anos. À Goldman foram pagos US$300 milhões em taxas e comissões pela sua ajuda na orquestração do esquema de 2001. “Um negócio semelhante em 2000, chamado Ariadne, devorou a receita que o governo arrecadou com a sua lotaria nacional. A Grécia, contudo, classificou aquelas transações como vendas, não como empréstimos”. O JPMorgan Chase e outros bancos ajudaram a orquestrar negócios semelhantes por toda a Europa, proporcionando “cash adiantado em retorno de pagamentos do governo no futuro, com tais passivos sendo mantidos fora da contabilidade”.

O setor financeiro tem interesse em subestimar o fardo fiscal – primeiro, pela utilização da contabilidade-lixo “mark to model” [1] e, segundo, pela pretensão de que o fardo da dívida pode ser pago sem desestabilizar a vida econômica.

Porta-vozes financeiros, desde Tim Geithner a Dominique Strauss-Kahn no FMI, afirmaram que a crise de dívida pós 2008 é meramente um “problema de liquidez” a curto prazo (falta de “confiança”), não de insolvência que reflete uma incapacidade subjacente de pagar. Bancos prometem que tudo ficará certo quando a economia “retornar ao normal” – desde que o governo compre suas hipotecas-lixos e maus empréstimos (“investimentos saudáveis a longo prazo”) por dinheiro efetivo.

A fraude intelectual em ação

Os lobbyists financeiros procuram desviar a atenção de eleitores e gestores políticos da percepção de que a “normalidade” não pode ser restaurada sem liquidar as dívidas que tornaram a economia anormal. Quanto mais o fardo da dívida crescer, mais austeridade ampla na economia será exigida para pagar dívidas a bancos e possuidores de títulos ao invés de investir em formação de capital e crescimento real.

A austeridade agrava o problema, ao intensificar a deflação da dívida. Ao pretenderem que a austeridade ajude economias ao invés de destruí-las, lobbyists da banca afirmam que mercados em contração reduzirão taxas salariais e “tornarão a economia mais competitiva” através da “extração da gordura”. Mas a “gordura real” é o sobrecusto da dívida – os juros, amortizações, comissões e penalidades financeiras embutidas dentro do custo de fazer negócio, do custo de vida e do custo do governo.

Quando surgem dificuldades no pagamento de dívida, o caminho da menor resistência é proporcionar mais crédito – a fim de permitir aos devedores que paguem. Isto mantém o sistema solvente aumentando os encargos gerais da dívida – aparentemente um paradoxo. Quando instituições financeiras vêem aproximar-se o ponto em que as dívidas já não podem ser pagas, elas tentam conseguir que “credores seniores” – o BCE e o FMI – emprestem aos governos bastante dinheiro para pagar e, idealmente, transferir dívidas em risco para o governo (“contribuintes”). Isto as retira da contabilidade dos bancos e de outras grandes instituições financeiras que do contrário teriam de assumir perdas sobre títulos do governo grego, obrigações de bancos irlandeses, etc., assim como estas instituições perdem sobre os seus haveres de hipotecas-lixo. Os bancos utilizam o resultante espaço para respirar para tentar despejar os seus títulos com haveres e apostas más sobre o proverbial “louco maior”.

No fim as dívidas não podem ser pagas.

Para os administradores da alta finança o problema é como adiar descumprimentos por tanto tempo quanto possível – e então salvarem-se, deixando governos (“contribuintes”) segurando o saco, assumindo as obrigações de devedores insolventes (tais como a AIG nos Estados Unidos). Mas para fazer isso em face da oposição popular é necessário suprimir a política democrática. Assim o desinvestimento pelos que eram antes perdedores financeiros exige que a política econômica seja retirada das mãos de corpos governamentais eleitos e transferida para as dos planejadores financeiros. É assim que a oligarquia financeira substitui a democracia.

Pagando juros mais altos por riscos mais elevados, enquanto se protegem bancos de perdas

O papel do BCE, FMI e outras agências de supervisão financeira tem sido assegurar que os banqueiros sejam pagos. Quando a passada década de laxismo fiscal e contabilidade fraudulenta veio à luz, banqueiros e especuladores fizeram fortunas elevando a taxa de juro que a Grécia tinha de pagar pelo seu risco acrescido de descumprimento. Para garantir que não perderiam, banqueiros comutaram o risco para a “troika” europeia à qual foram dados poderes para exigir pagamento dos contribuintes gregos.

Bancos que concederam empréstimos ao setor público (a taxas acima do mercado refletindo o risco), ... estavam sendo salvos às expensas dos cofres públicos. Exigindo que a Grécia não impusesse um “haircut” a credores, o BCE e a burocracia relacionada da UE pediram para possuidores de títulos europeus um melhor acordo do que os credores tiveram com os títulos Brady que resolveram dívidas latino-americanas e do Terceiro Mundo na década de 1980.

Numa entrevista ao Financial Times, Lorenzo Bini Smaghi, membro do conselho executivo do BCE, insistiu em que:

Primeiro, a solução dos títulos Brady foi uma solução para bancos americanos, aos quais basicamente foi permitido não “mark to market” os títulos reestruturados. Houve tolerância regulamentar, o que foi possível nos anos 1980, mas não seria possível hoje

Segundo, a crise latino-americana foi uma crise de dívida externa. O principal problema na crise grega é a Grécia, seus bancos e o seu próprio sistema financeiro. A América Latina contraiu empréstimos em dólares e as linhas de crédito eram principalmente para com estrangeiros. Aqui, uma grande parte das dívidas é para com gregos. Se a Grécia incumprisse, o sistema bancário grego entraria em colapso. Seria então necessária uma enorme recapitalização – mas de onde viria o dinheiro?

Terceiro, após o descumprimento, os países latino-americanos ainda tinham bancos centrais que podiam imprimir dinheiro para pagar salários de funcionários públicos e pensões. Eles fizeram isso e criaram inflação. Assim eles livraram-se [da crise] através da inflação, depreciação e assim por diante. Na Grécia não haveria um banco central que pudesse financiar o governo e ele teria de encerrar parcialmente algumas das suas operações, como o sistema de saúde.

Bini Smaghi ameaçou que a Europa destruiria a economia grega se esta tentasse reduzir (scale back) suas dívidas ou mesmo estender para maturidades a fim de refletir a sua capacidade de pagar. A opção da Grécia era entre isso ou a anarquia. A reestruturação não beneficiaria “o povo grego”. Ela implicaria num grande desastre econômico, social e mesmo humanitário, dentro da Europa.

“A disciplina implica que as coisas caminhem suavemente, mas se você liquida o sistema bancário, como podem elas ir suavemente?”. A posição do BCE “é baseada no princípio de que dívidas na área euro têm de ser reembolsadas e países têm de ser solventes. Isso tem de ser o princípio de uma economia baseada no mercado”. (Ralph Atkins, “Transcript: Lorenzo Bini Smaghi,” Financial Times, May 30, 2011. A entrevista ocorreu em 27 de Maio.)

É claro que uma economia orientada para o credor não está realmente baseada no mercado. Os bancos destruíram o mercado através do seu próprio planejamento financeiro central – utilizando alavancagem de dívida para deixar a Grécia com uma opção nua: Ou ela permitiria que responsáveis da UE viessem e usurpassem a sua economia, vendendo os seus principais sítios turísticos e oportunidades de extração de renda monopolista a credores estrangeiros num gigantesco movimento de arresto nacional, ou ela aguentaria uma situação duríssima e retirar-se-ia da eurozona. Foi este o acordo que Bini Smaghi ofereceu: “se houver privatizações suficientes e assim por diante – então o FMI pode desembolsar e os europeus farão a sua parte. Mas a chave jaz em Atenas, não alhures. O elemento chave para o retorno da Grécia ao mercado é travar discussões acerca de reestruturação”.

De uma forma ou de outra a Grécia perderia explicou ele: “inadimplência ou reestruturação não ajudariam a resolver os problemas da economia grega; problemas que podem ser resolvidos só pela adoção das reformas estruturais e medidas de ajustamento fiscal incluídas no programa. Do contrário, isso empurraria a Grécia para uma grande depressão econômica e social”. Este poder de exigirem ser pagos ou destruírem as poupanças da economia e o sistema monetário é o que os banqueiros centrais chamam de “resgate”, ou “restaurar forças de mercado”. Banqueiros afirmam que a austeridade ressuscitará o crescimento. Mas aceitar isso como alternativa democrática realista seria auto-imolação.

A menos que a Grécia assinasse esta insensatez, nem o BCE nem o FMI concederiam empréstimos para salvar o seu sistema bancário da insolvência.

Em 31 de Maio de 2011, a Europa concordou em proporcionar €86 bilhões se a Grécia “adiar, por enquanto, uma reestruturação, suave ou dura, do enorme fardo que é a dívida grega” A pretensão constituía a “esperança de que num par de anos a Grécia estará em melhor posição para reembolsar plenamente suas dívidas”. A antecipação do falso resgate levou o euro a recuperar-se em relação a divisas estrangeiras e as ações europeias saltaram 2 por cento. Os rendimentos de títulos gregos a 10 anos caíram “apenas” um nível aflitivo de 15,7 por cento, um ponto percentual abaixo da data da semana anterior de 16,8 por cento quando um responsável grego fez o anúncio ameaçador de que “Reestruturação está fora de discussão. Por agora trata-se só de crescimento, crescimento, crescimento”.

Como pode austeridade consistir em crescimento?

Esta ideia nunca funcionou, mas a pretensão está em andamento. A UE proporcionaria bastante dinheiro para o governo grego salvar possuidores de títulos de terem de sofrer perdas. O setor financeiro suporta pesadas despesas de contribuintes enquanto o fardo não cair sobre si próprio ou seus principais clientes no setor imobiliário ou a infraestrutura de monopólios a ser privatizada.

O compromisso empréstimo-por-privatização foi chamado de “ajuda à Grécia” ao invés de ajuda a possuidores de títulos alemães, franceses e outros. Mas os investidores financeiros queriam mais. “Desde que começou a crise, 60 mil milhões de euros em depósitos foram retirados de bancos gregos, cerca de um quarto do PIB do país” (Atkins, FT). Estas retiradas, que foram ganhando ímpeto, foram da dimensão exata do empréstimo que estava sendo oferecido!

Enquanto isso, a transferência de 60 bilhões de euros para fora dos balanços dos bancos e para dentro do setor privado ameaçava elevar a razão da dívida pública em relação ao PIB em mais de 150%.

Houve a conversa de que outros 100 bilhões de euros seriam necessários para “socializar as perdas” que de outra forma seriam sofridas por banqueiros alemães, franceses e outros da Europa. Banqueiros estes que tinham os olhos fixos num ganho inesperado se títulos gregos fortemente descontados fossem tornados livres de risco pelo retalhamento da Grécia de forma muito semelhante àquela que o Tratado de Versalhes fez à Alemanha após a I Guerra Mundial.

A população grega certamente viu que o mundo estava em guerra financeira.

Multidões cada vez maiores reuniram-se a cada dia para protestar na Praça Sintagma, em frente ao Parlamento, tal como multidões de islandeses haviam feito antes sob ameaças semelhantes dos seus sociais-democratas de liquidarem a nação junto a credores europeus. E assim como o primeiro-ministro da Islândia, Sigurdardottir, resistiu arrogantemente contra a opinião pública, da mesma forma comportou-se o primeiro-ministro socialista grego, George Papandreu.

Isto levou a Comissária das Pescas da UE, Maria Damanaki, a “falar abertamente acerca do dilema enfrentado pelo seu país”, advertindo: “O cenário da saída da Grécia do euro está agora em cima da mesa, assim como os caminhos para fazer isso. Quer concordemos com os nossos credores sobre um programa de árduos sacrifícios e resultados ... ou quer retornemos ao dracma. Tudo o mais é de importância secundária”.

E o antigo ministro das Finanças holandês Wiem Vermeend escreveu em De Telegraaf que: “A Grécia deveria deixar o euro, uma vez que nunca será capaz de reembolsar a sua dívida”.

Tal como na Islândia, as medidas de austeridade gregas deveriam ser postas em referendo nacional – com pesquisas relatando que cerca de 85 por cento dos gregos rejeitam o salvamento bancário com plano de austeridade. O seu governo está pagando pelo crédito o dobro dos alemães, apesar de aparentemente não haver risco cambial externo (utilizando o euro).

O resultado pode ser impulsionar a Grécia para fora da eurozona, não só ao forçá-la à inadimplência (não há receita para pagar) como pela Terceira Lei do Movimento Político de Newton: Toda ação cria uma ação igual e oposta. A tentativa do BCE de fazer com que o trabalho grego (“contribuintes”) paguem possuidores estrangeiros de títulos está levando o contra pelo repúdio total e ao movimento interno “Não pagarei”. O movimento trabalhista grego sempre foi forte e a crise da dívida está a radicalizá-lo mais.

O objetivo de bancos comerciais é substituir governos na criação de moeda, tornando a economia inteiramente dependente deles, com a tomada de empréstimos pelo setor público criando um enorme “mercado” livre de risco para empréstimos geradores de juros. Foi para ultrapassar esta situação que foi criado o Banco da Inglaterra em 1694 – para libertar o país da dependência do crédito italiano e holandês. De modo análogo a Reserva Federal dos EUA, com todas as suas limitações, foi fundada para permitir ao governo criar a sua própria moeda. Mas os bancos europeus manietaram os seus governos, substituindo a democracia parlamentar pela ditadura do BCE, o qual está impedido constitucionalmente de criar crédito para governos – até que bancos da Alemanha e da França considerem do seu próprio interesse fazer isso. Tal como o professor Bill Black, da Universidade do Missouri-Kansas City resume a situação:

“Um país que abandona a sua divisa soberana aderindo ao euro abandona os três principais meios efetivas de responder a uma recessão. Ele não pode desvalorizar a sua divisa para tornar as suas exportações mais competitivas. Ele não pode empreender uma política monetária expansionista. Ele não tem qualquer política monetária e os países da periferia da UE não têm influência significativa sobre as políticas monetárias do BCE. Ele não pode montar uma política fiscal adequadamente expansionista devido às restrições do pacto de crescimento e estabilidade da UE. O pacto é um duplo paradoxo – ao impedir políticas fiscais contra-cíclicas prejudica o crescimento e a estabilidade por toda a Eurozona”.

As políticas financeiras agora são dominadas pelo impulso para substituir inadimplências de dívidas por contínuos excedentes fiscais para pagar banqueiros e possuidores de títulos. O sistema financeiro quer ser pago. Mas matematicamente isto é impossível, devido à “mágica do juro composto” ultrapassar a capacidade da economia para pagar – a menos que bancos centrais inundem mercados de ativos com nova bolha de crédito, como tem feito a política estadunidense desde 2008. Quando devedores não podem pagar e quando os bancos por sua vez também não podem, os seus depositantes e outras contrapartes, o sistema financeiro vira-se para o governo a fim de extrair a receita dos “contribuintes” (não do próprio setor financeiro). É a política de salvar bancos insolventes através do afundamento de economias internas na deflação da dívida, fazendo os contribuintes arcarem com o custo dos bancos em más condições.

Estas obrigações financeiras são virtualmente uma exigência de tributos. E desde 2010 elas têm sido aplicadas aos países PIIGS. O problema é que receita utilizada para pagar credores não fica disponível para gastar dentro da economia. De modo que o investimento e o emprego se contraem e a inadimplência propaga-se. Alguma coisa deve ceder, politicamente assim como economicamente, quando a sociedade é recuada ao “problema de Copérnico”. Será que a economia “real” da produção e do consumo gira em torno das finanças ou, em alternativa, as exigências financeiras de juros devorarão o excedente econômico e começarão a comer a própria economia?

Deterministas tecnológicos acreditam que a tecnologia conduz tudo. Se assim fosse, o aumento da produtividade teria feito todo mundo rico na Europa e nos Estados Unidos; bastante ricos para não ficarem com dívidas. Mas há um brutal questionamento da Escola de Chicago insistindo em que o sofrimento desnecessário de hoje é perfeitamente natural e mesmo necessário para resgatar economias através do salvamento dos seus bancos e do encargo da dívida – como se tudo isto fosse o núcleo econômico, não o envoltório em torno do núcleo.

Enquanto isso, economias estão caindo cada vez mais profundamente na dívida, apesar das medidas de aumento da produtividade. O enigma aparente foi explicado muitas vezes, mas é tão contra-intuitivo que produz uma parede de dissonância cognitiva.

A visão natural é pensar que o mundo não deveria estar neste caminho, deixar a criação de crédito sobrecarregar economias com dívidas sem financiar os meios de pagá-las. Mas este desequilíbrio é a dinâmica chave que define se as economias crescerão ou contrair-se-ão.

John Kenneth Galbraith explicou que a banca e a criação de crédito é um princípio tão simples que a mente o rejeita – porque é alguma coisa em troca de nada, o proverbial almoço gratuito que tem origem no princípio de bancos criarem depósitos ao fazerem empréstimos. Assim como a natureza odeia o vácuo, do mesmo modo a maior parte das pessoas odeia a ideia de que existe uma coisa tal como um almoço gratuito. Mas os adeptos financeiros do almoço gratuito assumiram o comando do sistema político.

Eles podem manter-se no seu privilégio e impedir uma amortização da dívida apenas na medida em que possam impedir a generalização de uma objeção moral à ideia de que a economia é só para salvar os direitos dos credores de serem reduzidos à capacidade de pagar da economia – pela afirmação de que o freio financeiro é realmente a chave para o crescimento, não um pagamento de livre transferência.

O iminente referendo grego coloca esta questão assim como o fez no princípio desta Primavera o da Islândia. Como comentou Yves Smith recentemente quanto ao jogo da galinha de se o governo da Grécia aceitaria ou rejeitaria seus árduos termos.

“Isto é ao que se assemelha a escravidão da dívida a um nível nacional... A Grécia parece estar no caminho exato para ficar sob a bota de banqueiros, assim como antigamente pequenos agricultores livres sulistas foram transformados em “colhedores de dívidas” após a Guerra Civil dos EUA. Políticas deflacionárias deixaram muita gente com pagamentos de hipotecas cujo serviço era cada vez mais difícil. Muitos caem na servidão do “empenho da plantação”. Agricultores estavam famélicos por dinheiro e empenharam suas plantações a mercadores os quais, então, atuaram de um modo parental abusivo, sendo dadas listas de bens necessários para operar a terra e manter a família do agricultor e repartindo-os como consideravam adequado. Os mercadores não só aplicavam juros aos empréstimos como também vendiam os bens aos agricultores com margens de 30 por cento ou maiores sobre os preços à vista. O sistema era operado, intencionalmente, de modo a que a colheita do agricultor nunca o livrasse das suas dívidas. (o mercador como comprador contratado podia pagar o que quisesse pela colheita; o agricultor não podia comercializá-la junto a terceiros). Esta servidão da dívida finalmente levou à rebelião na forma do movimento populista. (Yves Smith, “Will Greeks Defy Rape and Pillage By Barbarians Bankers? An E-Mail from Athens,” Naked Capitalism, May 30, 2011.)

Poder-se-ia esperar um movimento político semelhante nos dias de hoje. E tal como no fim do século XIX, serão mobilizados economistas acadêmicos para rejeitá-lo. Subsidiados pelo setor financeiro, a ortodoxia econômica de hoje considera natural canalizar ganhos de produtividade para o sector das finanças, seguros e imobiliário (finance, insurance and real estate. FIRE) e os monopólios ao invés de elevar salários e padrões de vida. Lobbyists neoliberais e seus mascotes acadêmicos rejeitam a partilha dos ganhos de produtividade com o trabalho como sendo improdutiva e não conducente à “criação de riqueza” em estilo financeiro.

Fazendo governos pagarem credores quando bancos encalham

Está em debate não só se dívidas à banca deveriam ser pagas pela transferência para o balanço público a expensas do contribuinte, mas também se elas podem razoavelmente ser pagas. Se elas não puderem ser, então tentar pagá-las contrairá as economias ainda mais, tornando-as assim menos viáveis. Muitos países já ultrapassaram este limite financeiro. O que está agora em causa é um passo político – se há um limite de quanto mais juros credores podem pressionar populações nacionais à dependência da dívida. Gerações futuras podem recordar a nossa época como um grande Experimento Social de quão longe o ponto pode ser diferido no qual o governo – ou parlamentos – traçarão uma linha contra a imposição ao passivo público de dívidas para além de qualquer capacidade razoável de pagar sem cortar drasticamente despesas públicas com educação, cuidados de saúde e outros serviços básicos?

Será que um governo – ou economia – será declarado solvente enquanto tiver bastante terra e edifícios, estradas, ferrovias, sistemas telefônicos e outras infraestruturas para liquidar pagamentos de juros sobre dívidas que se acumulam exponencialmente? Ou deveríamos pensar na solvência como aquelas proporcionalmente existentes nas nossas economias mistas público/privadas? Se populações puderem ser convencidas da última definição – como o foram aquelas da antiga União Soviética e como o BCE, UE e FMI estão agora a exigir – então o setor financeiro prosseguirá com buyouts e arrestos até possuir todos os ativos do mundo, todos os ativos até agora públicos, ativos corporativos e aqueles de indivíduos e sociedades.

É essa a guerra financeira de hoje. E é o que os gregos que se reúnem na Praça Sintagma estão demonstrando. Em causa está o relacionamento entre o setor financeiro e a economia “real”. Da perspectiva da economia “real”, o papel adequado do crédito – isto é, da dívida – é financiar investimento em capital produtivo e crescimento econômico. Afinal de contas, é a partir do excedente econômico que o juro tem de ser pago.

Isto exige um sistema fiscal e um sistema regulamentar das finanças para maximizar o crescimento. Mas é precisamente a política fiscal que o setor financeiro de hoje está combatendo. Ele exige dedutibilidade fiscal para o juro, encorajando o financiamento por dívida ao invés de ações. Desativou as leis truth-in-lending e a regulamentação que mantinha preços (as taxas de juro e as comissões) a par dos custos de produção. E impede governos de terem bancos centrais para financiarem livremente suas próprias operações e fornecerem moeda às economias.

Os bancos e seus lobbyists financeiros não têm mostrado grande interesse pelo bem-estar da economia em sentido amplo. É mais fácil e mais rápido fazer dinheiro sendo extractivo e predatório.

A fraude e o crime compensam, se você puder desativar a polícia e agências regulamentares. Esse fator tornou-se a agenda financeira, ansiosamente endossada por porta-vozes acadêmicos e ideólogos da imprensa, os quais aplaudem administradores da banca e corretores de hipotecas subprime, atacantes (raiders) corporativos e seus acionistas, e a nova ninhada de privatizadores, utilizando a medida unidimensional de quanta receita pode ser extraída e capitalizada em serviço da dívida. Desta perspectiva neoliberal, a riqueza da economia é medida pela magnitude das obrigações de dívida – hipotecas, títulos e empréstimos bancários empacotados – que capitalizam rendimento e mesmo esperançosamente ganhos de capital à taxa de juro existente.

A Islândia tardiamente decidiu que era errado entregar sua banca a uns poucos oligarcas internos sem qualquer supervisão ou regulamentação real sobre as suas transações. Do ângulo privilegiado da teoria econômica, não era loucura imaginar que o gracejo de Adam Smith acerca de não confiar na benemerência do açougueiro, cervejeiro ou padeiro pelos seus produtos, mas sim no seu auto-interesse, será aplicável a banqueiros? O seu “produto” não é um bem de consumo tangível, mas dívida portadora de juros. Estas dívidas são um direito sobre a produção, receita e riqueza, elas não constituem riqueza real.

Isto é o que os neoliberais pró-financeiros deixam de entender. Para eles, criação de dívida é “criação de riqueza” (eufemismo favorito de Alan Greenspan) quando o crédito – isto é, dívida – aumenta preços de propriedade, ações e títulos e, portanto, fortalece balanços financeiros. A “teoria do equilíbrio” que está subjacente à ortodoxia acadêmica trata preços de ativos (riqueza financeirizada) como refletindo uma capitalização do rendimento esperado. Mas na Bolha Econômica de hoje, preços de ativos refletem seja o que for que banqueiros emprestem. Ao invés de serem baseados no cálculo racional, seus empréstimos são baseados no que banqueiros de investimento são capazes de empacotar e vender a instituições financeiras frequentemente crédulas. Esta lógica leva a tentativas de pagar pensões a partir de um processo de “criação de riqueza” que dirige economias para a dívida.

Não é difícil ilustrar isso estatisticamente. O montante de dívida que uma economia pode pagar é limitado pela dimensão do seu excedente, definido como lucros corporativos e rendimento pessoal para o setor privado e a receita fiscal líquida paga ao setor público. Mas nem a teoria financeira de hoje nem a prática global reconhecem um constrangimento da capacidade de pagar. Assim, tem sido permitido ao serviço da dívida comer a formação de capital e reduzir padrões de vida – e agora, exigir privatizações a preços de saldo.

Como alternativa a tais exigências financeiras, a Islândia proporcionou um modelo do que a Grécia pode fazer. Respondendo a exigências britânicas e holandesas de que o seu governo garantisse o pagamento do salvamento do Icesave, o Althing [Parlamento] recentemente afirmou o princípio da dívida soberana:

“As pré-condições para a extensão de garantia do governo de acordo com este Ato são:

1. Que ... o cálculo será feito considerando a dificuldade e circunstâncias sem precedentes com a qual a Islândia está confrontada e a necessidade de decidir sobre medidas que permitam reconstruir seu sistema financeiro e econômico.

Isto implica, dentre outras coisas, que as partes contratantes concordarão num pedido fundamentado e objetivo da Islândia para uma revisão do acordo em conformidade com as suas disposições.

2. Que a posição da Islândia como estado soberano exclui processos legais contra seus ativos os quais são necessários para desempenhar de uma maneira aceitável suas funções como estado soberano.”

Ao invés de impor a espécie de programas de austeridade que devastaram países do Terceiro Mundo desde a década de 1970 à de 1990 e levá-los a evitar o FMI como uma praga, o Althing está mudando as regras do sistema financeiro. Ele está subordinando o reembolso da Islândia à Grã-Bretanha e Holanda à capacidade da economia islandesa de pagar:

“Ao avaliar as pré-condições para uma revisão dos acordos, também serão tomadas em conta a posição da economia nacional e das finanças do governo em qualquer dado momento e as perspectivas a este respeito, com especial atenção sendo dados a questões de câmbio estrangeiro, desenvolvimentos da taxa de câmbio e a balança de transações correntes, crescimento econômico e alterações no produto interno bruto bem como desenvolvimentos quanto à dimensão da população e da participação no mercado de trabalho”.

Esta é a proposta do Althing para regularizar reclamações sobre o banco Icesave que a Grã-Bretanha e a Holanda rejeitam tão apaixonadamente como “impensável”. Assim, a Islândia disse: “Não, leve-nos ao tribunal”. E é neste ponto que as coisas estão agora.

A Grécia não está em tribunal. Mas fala-se de uma “lei superior”, tal como foi discutido nos Estados Unidos antes da Guerra Civil quanto à escravidão. Em causa está hoje o seu análogo financeiro, a servidão da dívida.

Será suficiente mudar o ambiente financeiro do mundo? Pela primeira vez desde a década de 1920 (tanto quanto sei), a Islândia fez do princípio capacidade-para-pagar a base legal explícita para o serviço internacional de dívida. O montante a ser pago deve ser limitado a uma proporção específica do crescimento do seu PIB (com base na admitidamente ténue suposição de que este possa ser convertido em rendimentos de exportação). Após a recuperação da Islândia, a Tesouro ofereceu como garantia de pagamento à Grã-Bretanha no período 2017-2023 até 4 por cento do crescimento do PIB após 2008, mais outros 2 por cento para os holandeses. Se não houver crescimento no PIB, não haverá serviço da dívida. Isto significa que se credores tomassem ações punitivas cujo efeito seja estrangular a economia da Islândia, eles não obteriam pagamento.

Não é de admirar que a burocracia da UE reagisse com tamanha raiva. Era quase uma rebelião de escravos. Retornando à Terceira Lei do Movimento, de Newton, aplicável à política e à ciência econômica, era bastante natural para a Islândia, como para a maior parte dos países por toda a área do desastre neoliberalizado, ser a primeira economia a recuar.

Nos últimos dois anos viu o seu status afundar dos mais altos padrões de vida do Ocidente (financiados pela dívida, como se verificou) para o mais profundamente endividado. Em tais circunstâncias é natural para uma população e seus representantes eleitos experimentarem um choque cultural – neste caso, uma conscientização da ideologia destrutiva dos eufemismos do “mercado livre” neoliberal que levaram à privatização dos bancos do país e a decorrente bacanal de dívida.

Os gregos reunidos na Praça Sintagma não parecem precisar de qualquer choque cultural para rejeitar a genuflexão do seu governo socialista a banqueiros europeus. Aparentemente podem seguir a Islândia e levar o pêndulo ideológico outra vez rumo à consciência clássica de que na prática esta retórica revela-se ser uma teoria econômica-lixo favorável a bancos e credores globais. Dívida portadora de juros é o “produto” que os bancos vendem, afinal de contas.

O que parecia à primeira vista ser “criação de riqueza” era mais precisamente criação de dívida, na qual os bancos não assumiam qualquer responsabilidade pela capacidade de pagar. O crash resultante levou o setor financeiro a acreditar subitamente que amava o controle centralizado do governo – na medida dos pedidos ao setor público por salvamentos que reduzissem economias endividadas a uma geração de servidão fiscal para pagar a dívida com a resultante contração econômica.

Tanto quanto sei, este acordo é o primeiro desde o Plano Young para reparações devidas pela Alemanha de subordinar obrigações internacionais de dívida ao princípio da capacidade de pagar. A proposta do Althing explicita isso em termos claros, como uma alternativa à ideia neoliberal de que economias devem pagar quer queiram quer não (como diria Keynes), sacrificando seu futuro e conduzindo a sua população a emigrar numa vã tentativa de pagar dívidas que, no fim, não podem ser pagas, mas simplesmente deixam economias devedoras irremediavelmente dependentes dos seus credores. No fim, países democráticos não estão desejosos de entregar a autoridade do planejamento político a uma oligarquia financeira emergente.

Não há dúvida de que países pós-soviéticos estão observando, bem como os latino-americanos, africanos e outros devedores soberanos cujos crescimentos tem sido atrofiados pelos programas de austeridade predatórios impostos pelo FMI, Banco Mundial e neoliberais da UE nas últimas décadas.

Todos nós deveríamos desejar que a Era pós Bretton Woods esteja ultrapassada. Mas não estará até que a população grega siga a da Islândia dizendo não – e a da Irlanda finalmente acorde.

[1] Mark-to-Model : a prática de estabelecer os preços de uma carteira com base nos preços determinados por modelos financeiros, ao invés de permitir que o mercado determine o preço.

*Michael Hudson é professor da Universidade de Missouri-Kansas City, autor de numerosos livros, incluindo Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (new ed., Pluto Press, 2002) e Trade, Development and Foreign Debt: A History of Theories of Polarization v. Convergence in the World Economy . mh@michael-hudson.com

O artigo original, em inglês, encontra-se em: A World at Financial War .
Tradução de JF.
Esta tradução encontra-se em: Resistir

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