24/6/2011, MK Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O presidente Barack Obama dos EUA sempre se faz presente, quando a hora exige floreios retóricos. Por esse metro, o discurso da retirada, quarta-feira, em Washington, que ele atentamente intitulou “No caminho avante no Afeganistão”, foi mais discurso programático que discurso para incendiar as mentes. E avalia corretamente que não é hora de celebrar, mas de justificar o que foi feito sobre algo que deu horrivelmente errado.
Há vencedores e derrotados no discurso de Obama. Primeiro, os derrotados. São o Pentágono, o presidente Hamid Karzai do Afeganistão, o Paquistão e o sul da Ásia e a criatura amorfa conhecida como al-Qaeda. Vencedores são os Talibã e, mais uma vez, o Paquistão.
A mudança de “combate para apoio” e da via militar para a via política é reflexo do ceticismo crescente quanto à efetividade da “avançada” [orig.“surge”] das tropas. Obama agradeceu aos soldados pelo bom trabalho que fizeram, mas foi nisso apenas superficial. Para ele, a “avançada” foi um sucesso. E mudou de assunto. Não elogiou a “avançada” – os 33 mil soldados que mandou para o Afeganistão no final de 2009 – como sucesso retumbante. Foi sombrio. Agradeceu os soldados da infantaria que entregaram a vida em sacrifício supremo, mas não mencionou o herói da “avançada” – o general David Petraeus, comandante dos EUA no Afeganistão, que Obama acaba de nomear novo diretor da Agência Central de Inteligência (CIA).
Seja qual for o ponto de vista, não é o tipo de retirada que o Pentágono desejaria – 10 mil soldados até o final de 2011, 33 mil até meados de 2012 e remoção dos demais 70 mil soldados, “em passo regular” ao longo de 2013, de tal modo que, ao final de 2014, “esse processo de transição estará completado”. Obama deixou sem definir se todos os 70 mil soldados serão retirados ao final de 2014 ou quando, ou se, como no Iraque, onde 10 mil soldados podem ser deixados mesmo depois da retirada total prometida para o final de 2011, haverá soldados norte-americanos residuais de longo prazo, deixados também nas montanhas do Hindu Kush.
É possível que Obama tenha deixado sem definir esses pormenores porque a decisão não compete só a ele. Deve saber que longe vão os tempos em que os EUA podiam decidir os desdobramentos desses sangrentos dez anos de guerra. Quando não se vence uma guerra, os desdobramentos têm de ser decididos por consenso. Portanto, em primeiro lugar e antes de qualquer outra voz, falarão os Talibã; depois, falará o governo de Karzai e, cada dia mais, falarão também as potências regionais.
Além do mais, Obama admite que os EUA têm limitações. O dinheiro pode ser mais bem empregado em casa, para consertar estradas, para criar novos empregos e indústrias, “em momento de déficit crescente e tempos econômicos duros em casa”. Os EUA não se retirarão em movimento isolacionista, mas não manifestarão qualquer entusiasmo por intervenções em terra distante, a menos que sejam ameaçados. E mesmo que sejam ameaçados, não optarão por despachar grandes exércitos (darão preferência a armas de alta tecnologia) e convocarão ações internacionais.
Obama garantiu que a al-Qaeda foi vencida e já não há razão para prosseguir em guerra. O que agora se exige é vigilância, para que a serpente não volte a erguer a cabeça. Mas avisou o Paquistão de que ainda tem planos de “atacar paraísos seguros para terroristas” naquele país. Acrescentou que continuará a “pressionar o Paquistão para que aumente sua participação (...) e a trabalhar com o governo do Paquistão (...) e a insistir para que cumpra os compromissos assumidos”.
Obama nem tentou oferecer qualquer ramo de oliveira a Islamabad, não fez qualquer movimento para remendar as fraturas do relacionamento EUA-Paquistão, sequer comentou, nem de passagem, o que o Paquistão tem dito sobre os enormes sacrifícios que já fez – maiores que os de qualquer outro aliado dos EUA.
Em resumo, está partindo sem uma palavra de agradecimento. O que com certeza já foi anotado pelo comando militar paquistanês em Rawalpindi e pelo governo civil em Islamabad anotaram. As consequências que daí advirão escondem-se ainda no útero do tempo. Mas, curiosamente, o movimento de Obama é como uma reverência não desejada aos paquistaneses.
Porque o Paquistão é também um grande vencedor. O discurso de Obama é, na essência, o reconhecimento de tudo que os militares paquistaneses têm repetido ao longo de um, dois anos – que a guerra do Afeganistão é inútil, que é hora de reconciliar-se com os Talibã, que a via militar não leva a lugar algum, que só um acordo de paz levará a paz duradoura e à estabilidade.
Agora, dos píncaros do poder nos EUA, ouve-se Obama dizer, embora indiretamente, que “sim, sim, o Paquistão sempre esteve certo, desde o começo”. Obama reconhece devidamente em seu discurso que “a maré da guerra está em baixa” no Afeganistão. Obama fala com otimismo da possibilidade de acordo político, apesar dos “dias negros que haverá pela frente”.
As nuances da estrada para a paz no discurso de Obama receberão atenção máxima nos próximos dias, para que se identifique onde está a substância. Fala dos Talibã como entidade uniforme, sem qualquer exceção para a rede Haqqani. Desde que aceitem as precondições para a reconciliação, praticamente qualquer um será bem-vindo à tenda da reconciliação. O espírito é de “esquecer-e-perdoar”. Os Talibã foram citados como parte “do povo afegão”.
Dois, Obama admite que a reconciliação tem de ser “conduzida pelo Afeganistão”. Ecoa a posição padrão dos EUA, mas nada diz além dela para mitigar os medos palpáveis em Kabul e Islamabad, para as quais o que é dito não passa de palavras ocas, porque os EUA insistem em preservar para eles o papel de locomotiva e mantêm em perfeita escuridão o aliado afegão e seu aliado regional. Vai-se ver, é um pequeno detalhe.
Ou, vai-se ver, não há o que Obama possa fazer quanto àquela situação, porque quando o camelo entra na tenda, sempre acontece de a tenda encolher, sem espaço para outros. Mas Kabul e Islamabad sabem que terão de esperar ao relento, até que o enviado dos EUA chegue à região para detalhar o discurso de Obama, quando então saberão que nada mudou na estratégia diplomática de longo prazo dos EUA sobre o processo de paz.
O ponto mais interessante de todo o discurso é o otimismo que Obama exsuda ao falar da reconciliação com os Talibã. Declara que “tenho razões para crer que se podem obter progressos (...) que o objetivo que buscamos é alcançável”. E só. Deixa as coisas entusiasmantemente, nesse ponto. Deve-se concluir que Obama está tranquilizado pelo feedback que recebeu dos seus funcionários sobre as confabulações secretas até aqui. E Obama tem motivos para acreditar que os Talibã são manobráveis por persuasão e desejarão negociar.
Obama não menciona Karzai nesse contexto do processo de paz, silêncio realmente ensurdecedor. Sim, é verdade, reconhece o papel-chave do governo afegão na estabilização da situação em campo, mas não há como não ver que a ênfase dos EUA vai toda para o encontro marcado entre EUA e o povo afegão em geral.
Obama tampouco diz palavra sobre a conferência que os alemães ambiciosamente planejam receber em Berlim, em dezembro, uma espécie de Congresso de Viena, na qual parece que os Talibã estarão sentados à mesa de negociações sob candelabros de cristal com diplomatas em ternos caros bebericando champanhe. Mas Obama fala, sim, de outra conferência internacional, reservada aos EUA e aliados, que acontecerá em maio, em Chicago, “na minha cidade”, para “modelar a próxima fase dessa transição [afegã]”.
Obama é político esperto e sabe bem avaliar o imenso potencial de exibir aos eleitores norte-americanos, em campanha para as eleições presidenciais, o quão brilhantemente ele conseguiu salvar a guerra do Afeganistão, que os governos Republicanos haviam deixado em estado miserável.
Obama pode contar com o recém-eleito prefeito de Chicago e seu antigo camarada Emmanuel Rahm, para que a Conferência de Maio seja sucesso esplêndido e momento de definição da campanha eleitoral. De fato, Obama deu bom uso em seu discurso às sandices do governo George W Bush, que não soube dar suficiente atenção à guerra do Afeganistão e desencadeou, levianamente, a invasão do Iraque em 2003.
Pode-se argumentar que é direito de Obama acumular milhagem doméstica, beneficiando-se eleitoralmente da conclusão da guerra afegã. (O pico da retirada de soldados – meados de 2012 – também coincide com o pico da campanha eleitoral.) Afinal, exige-se coragem sobre-humana de um comandante-em-chefe para reconhecer que está metido em guerra que nunca vencerá. Mais difícil ainda é fazer as coisas de modo a que a retirada não pareça derrota nem tenha de ser feita por helicópteros, do telhado do prédio da embaixada dos EUA em Kabul. Obama está conseguindo sair-se bem dessas duas dificuldades.
Mas não há como não ver que os Talibã derrotaram os EUA. Quanto a isso não há o que discutir. Manter os Talibã excluídos do cálculo do poder afegão já não é objetivo dos EUA. Os EUA reconhecem que os Talibã são parte integrante da nação afegã. Nenhum braço dos Talibã será excluído do centro político da vida dos afegão, para servir ou ao orgulho ou aos preconceitos dos EUA. Todos são bem-vindos a bordo do trem da paz rumo a Kabul.
A região em volta do Afeganistão ficará sem entender o que, afinal, se disputava nessa guerra. Há muitas ruínas e cacos por toda a parte, resultado da destruição que os EUA causaram. Obama diz que os EUA já não têm dinheiro para a reconstrução. “America, é hora de nos focarmos em reconstrução-da-nação aqui mesmo, em casa”. Uma dúzia de palavras que ecoarão, não só pelos vales e picos das montanhas do Afeganistão, mas por todas as estepes da Ásia Central e pelo milenar Vale do Industão.
A dura realidade é que o discurso de Obama desencadeará arrepios de medo pela coluna dorsal dos não-pashtuns no Afeganistão. Nada pode ser pior do que receber ofertas de apoio e proteção e, de repente, quando mais precisa, ser deixado para trás. Os centro-asiáticos preocupar-se-ão com o efeito que terá a volta triunfante dos Talibã sobre as forças do islamismo em seus países – os quais já se preparam para enfrentar a chegada lá da Primavera Árabe.
A Índia sentir-se-á duramente abandonada. O Irã será só júbilo. E talvez também a Rússia, na medida em que essa história fará lembrar que ela já não é a única superpotência a ser derrotada em guerra no Hindu Kush. A China passará a depender ainda mais do Paquistão, e cada vez mais, para garantir que os Talibã cumpram o que disseram sobre não ter qualquer agenda para além das fronteiras do Afeganistão.
Formidável desafio para o Paquistão, digerir a verdade dura de engolir. Como as bruxas de Shakespeare dizem a Banquo, em Macbeth, há graças complexas. A morte avizinha-se de Banquo, mas sua descendência conhecerá a mais alta glória real – “Gerarás reis, mas rei nunca serás”[1]. Pode haver mais plena satisfação?
Nota de tradução
[1] Macbeth, Shakespeare, ato I, cena 3, verso 70: “Thou shalt get kings, though thou be none”; ou Macbeth: William Shakespeare, em português.
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