Terry Eagleton |
1/7/2011, Terry Eagleton, Guardian, UK
(Resenha de Visions of England [Roy Strong])
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
A visão do interior da Inglaterra como paraíso árcade de camponeses de bochechas rosadas foi, em larga medida, inventada pelos comerciantes das cidades. É o mito dos que creem que o interior é mais bonito para olhar, que interessante para viver.
Thomas Hardy, um dos mais refinados memorialistas da Inglaterra rural, sabia que praticamente já não se encontravam camponeses por lá, se, por “camponês” se entendesse pequeno proprietário da terra que cultiva. Praticamente todos, no interior, já haviam sido reduzidos a trabalhadores sem-terra, pelas forças dos mercados e das leis dos Enclosure Acts, ou triturados nas máquinas satânicas do começo da Inglaterra industrial. Nada há de intemporal ou idílico nessa paisagem de capitalistas latifundiários, pobreza repugnante, despopulação e uma classe decadente de artesãos – razão pela qual Hardy não é o mais propagandeado dos autores ingleses.
A visão que Roy Strong tem da Inglaterra, ao contrário, é um sonho de harmonia rural. O livro começa com floreados elogios a Elizabeth I, mulher com quem, parece, Strong teria gostado muito de coabitar – e nos leva por Shakespeare, oBook of Common Prayer, Thomas Gainsborough e John Constable, até Vaughan Williams, Edward Elgar, música folclórica e o National Trust. Nada que interesse aos britânicos-bangladeshianos. Num epílogo elegíaco, o autor lamenta que pouco desse patrimônio nacional se ensine hoje nas escolas, trocado por questões nada patrióticas, como Revolução Russa, duas Guerras Mundiais e Holocausto; que encham a cabeça das crianças inglesas muito mais com Trotsky, que com Tudors.
Strong pode ser conservador e romântico, mas não é uma besta fascista. De fato, o aspecto mais surpreendente de seu livro é o modo como subterraneamente vai minando suas próprias teses. Faz restrições a lições de história mais focadas em Rommel que em Rupert Brooke, mas admite que sua própria educação foi excessivamente anglocêntrica. Vê o multiculturalismo sob luz favorável, mas bem claramente deseja que os paquistaneses aprendam tudo sobre mansões no campo e jardins, e danças morris folclóricas.
Tampouco está longe de reconhecer que a orgulhosa linhagem do Protestantismo Britânico pode ser descrita, mais acuradamente, como anticatolicismo visceral. Apesar de uma referência anódina às “viagens heroicas” de aventureiros esquálidos como Drake e Raleigh, Strong conhece muito bem o papel que teve o imperialismo na formação da identidade britânica. Também observa que um dos traços chaves dessa identidade é uma sensação de “ameaça externa” – modo polido de descrever o que sempre é desprezo racista patológico por tudo que seja francês. Sem o francês para execrar, o britânico teria a autoconsciência de um cachorro spaniel (britânico).
Sr. e Sra. Andrews, de Thomas Gainsborough. Photograph: National Gallery, London |
Mais surpreendente ainda, Strong navega bem perto de reconhecer que o tema no coração de seu livro é absoluto engodo. É “paraíso inventado”, que zomba das desigualdades sociais e da “horrenda depressão” da Inglaterra rural. Os grandes pintores paisagistas do século 18 que exibam o latifundiário a deleitar-se com a visão de seus rebanhos de ovelhas gordas e abundantes colheitas. Strong sempre nos lembra de que não se veem, nos quadros, nem sinal de quem realmente trabalha no eito. (Poderia ter acrescentado que o mesmo se pode dizer de Jane Austen – que tinha olho notavelmente esperto para a extensão e o preço de terras, mas nunca viu ser humano que nelas trabalhasse.).
Pinturas que romanticizavam a vida rural, diz o livro, eram dispostas pelas paredes das casas de alguns dos proprietários, os quais, ao mecanizar e cercar os campos, ajudavam a destruir as comunidades que aquelas pinturas festejavam. O ex-diretor do Museu Victoria & Albert parece tatear, à beira de um discurso marxista sobre contradições sociais.
A pintura pastoral, em resumo, é invenção patrícia. A nostalgia de classe pode ser boa para os negócios, como, hoje, a indústria do ‘turismo histórico’. Dado que as paisagens rurais não mudam tão rapidamente, e Box Hill é hoje praticamente idêntico a quando Austen escreveu sobre o lugar, é fácil imaginar que o modo de vida que ali existiu seria igualmente persistente ou eterno. Strong está alerta contra esse erro, e alerta, também, aos muitos que são excluídos por esses ícones ingleses de olhar enviesado. A revolução industrial é externa, está escrita por fora da autoimagem nacional dos britânicos, e, com ela, praticamente tudo ao norte de Warwickshire. A identidade britânica é coisa muito mais dos Downs do sul, que dos Moors do Yorkshire.
O que os britânicos reconhecemos como nação é construção imaginária de poetas, Strong reconhece. Não é nenhum tipo de ‘reflexo’ da realidade.
A ideia de uma Inglaterra rural atemporal emergiu no exato momento em que começava a nascer ali o primeiro país do mundo a conhecer a industrialização. É o mesmo que dizer que o país rural tornou-se imutável... no momento em que começou a encolher. Poucos séculos antes, quando o John of Gaunt de Shakespeare falou de “essa ilha coroada” [orig. “this scepter'd isle”], estava, diz Strong, lamentando o fim de uma Inglaterra que, afinal, estava sendo definida pela primeira vez, no preciso instante em que deixava de existir. Como o crítico Raymond Williams gostava de repetir: a única coisa garantida sobre a sociedade orgânica é que se foi para sempre.
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O que é realmente espantoso sobre o livro de Strong é que nada disso, no fim, ganha peso suficiente para operar contra a ilusão da Inglaterra como Arcádia. Claro que deixa muita coisa de fora, mas esse é o problema dos mitos; acontece sempre.
A exclusão de “fábricas e fornalhas, de favelas e da degradação humana”, no senso de identidade da nação, não é problema grave, porque, afinal, essas imagens são obras da imaginação. Chega-se a suspeitar de que Strong nunca tenha ouvido falar de Dickens e Joyce, dois superiores mitólogos da cidade. Por que a imaginação não poderia buscar inspiração em motores a diesel, tanto quanto em celeiros e foices? Porque, apesar de todas as tolices, muitas das quais o livro examina bem, essa visão passadista da sociedade inglesa deve ser preservada. Porque ela fala – informa-nos Strong –, de uma sociedade “pacífica e tranquila”, “que existe em harmonia e onde a vida acompanha o ritmo das estações”.
Sempre que se ouve falar de harmonia social, pode-se ter certeza de que alguém sentiu odor de alguma ameaça contra interesses seus. O fato de que a Inglaterra de hoje não seja nem tranquila nem harmoniosa, o que jamais foi, não atrapalha, de modo algum, a fantasia. Ideologias não existem para serem aferidas por fatos. A visão rural-harmônica continua a ser a principal fonte da identidade nacional inglesa.
Há algo a ser dito, perversamente, a favor da decisão de Strong, de insistir nessa ilusão neo-Georgiana. A ideologia da classe dominante inglesa sempre envolveu uma curiosa mistura de rural e de imperial – quer dizer, de pacífica e belicosa, ou mesmo, para falar pelos estereótipos, de feminina e de masculina. Strong dá força à primeira parte, porque não lhe agrada a ideia de uma identidade nacional marcada pela mitologia imperial. Aristocrata espiritual, não faz nenhuma concessão às noções complacentes de progresso e conquista, de classes médias liberais arrogantes endinheiradas.
Mas, de fato, essas duas visões são dois lados da mesma moeda. Os soldados que combateram nas duas guerras mundiais, diz Strong, podem até ter saído de fábricas e escritórios e lojas, mas combateram em nome de Chipping Campden e Lavenham, não de Manchester ou Birmingham. Não, isso não é absolutamente verdade. A maioria daqueles homens jamais tinham ouvido falar de Lavenham; lutaram porque foram obrigados. Mesmo assim, por via tortuosa, a ideia de Strong parece capturar alguma espécie de verdade.
As visões de paz e harmonia são as ilusões agradáveis, cujos pesadelos subterrâneos são a guerra e o imperialismo. O sonho de voltar a colher lilases na primavera seguinte tem potência suficiente para arrastar um homem por Flanders ou Dunquerque. Nesse sentido, todas as utopias carregam um elemento de verdade. Quando Strong escreve sobre o amor inglês por jardins, ele vê que pode estar havendo aqui alguma disputa pela memória, pela qual, os cidadãos da Inglaterra pós-rural podem talvez encontrar algum laço frágil que os una outra vez ao passado de agricultores de seus ancestrais. Nem todas as nostalgias são mórbidas, sim. Mas tampouco somos definidos pelo passado, como esse livro sugere; com dúvidas, sim; mas sugere.
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