segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Sobre Snowden

23/8/2013, [*] Gabriella ColemanPrinceton University Press, USA
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Edward Snowden em Moscou
De todas as acusações arregimentadas contra Edward Snowden, considero o diagnóstico de narcisismo” a mais espúria e intrigante. Em que sentido, exatamente, arriscar a própria vida – e prisão perpétua – seria caso de personalidade narcísica? Embora se tenha exposto em público, em parte para sua autoproteção, Snowden limitou ao mínimo possível suas interações com a mídia, bem claramente sem buscar atenção indevida. Dado que não há sinais dessa patologia, rotulá-lo como narcisista soa, isso sim, como assassinato de reputação, para desqualificar “preventivamente” questões mais graves que a ação de Snowden trouxe à tona.

Se se contextualiza o que ele fez, não em termos de personalidade, mas à luz do momento histórico contemporâneo, o que se vê, sem sombra de dúvida, é que Edward Snowden não está só. Ele é parte de um cortejo crescente de indivíduos que há anos já diagnosticaram o crescimento explosivo do estado de vigilância e segredo como problema tão grave, que todos se dispõem a assumir riscos pessoais para forçar o debate e as mudanças. O mais notável desse cortejo é que nele se reúnem pessoas de dentro do sistema (William Binney, Thomas Drake, Edward Snowden, Bradley Manning) e marginais (Julian Assange, Barrett Brown e James Bamford).

O fato de que já se ouça um coro de vozes é significativo.

Julian Assange
A opinião pública talvez se mantivesse mais cética, se só se ouvisse uma voz, ou se só os Julian Assanges do mundo – ativistas há muito tempo, que sempre se mantiveram fora do aparelho do estado – estivessem tocando o apito e dando o alarme. O fato de que no mesmo cortejo se reúnam jornalistas investigativos, pessoal militar, empregados de agências de segurança e ativistas sinaliza eloquentemente a extensão do problema: indivíduos sem qualquer conexão entre eles, emergindo de diferentes campos da vida, todos estão identificando problemas semelhantes.

Isso nos leva rumo às margens da segunda questão: a “santidade” da lei. Parece-me, agora já bem claramente, que os programas revelados violam aspectos da lei, tanto no espírito da lei, quanto na letra da lei. Foi o que advogados disseram, sem meias palavras: Os dois programas violam a letra e o espírito da lei federal. Não há lei nos EUA que explicitamente autorize a vigilância em massa.

Num mundo ideal, nós simplesmente usaríamos mecanismos legais para eliminar leis nocivas e combater injustiças graves. Os críticos seguiriam essa trilha, antes de infringir a lei. Exatamente o que aconteceu nesse caso.

Desde a aprovação da Lei Antiterrorismo [orig. Patriot Act], aprovada em tempos de grande agitação e muito medo nos EUA, vimos inúmeras tentativas, empreendidas por organizações que defendem as liberdades civis, contra a vasta empreitada das escutas e gravações clandestinas sem mandado e sem supervisão judicial. Um primeiro processo, movido pela EFF e ACLU em 2006 contra a empresa AT&T foi não apenas descartado, mas acabou por ser mumificado por uma lei dúbia, que garantiu às grandes empresas de telecomunicações que cooperassem com o governo um tipo jamais visto de imunidade retroativa. A lei foi adulterada de tal modo, que perdeu qualquer serventia real.

Além dos esforços legais empreendidos por organizações civis, alguns indivíduos usaram canais legais que encontraram à disposição deles para forçar mudanças, sem qualquer resultado.

Thomas Drake
Não é preciso ir além do caso de Thomas Drake, empregado da Agência de Segurança Nacional por longos anos e que, num certo momento, passou a se sentir incomodado com as incontáveis violações da lei a que assistia quase diariamente, e de primeira mão. Seu primeiro ato teve caráter reformista. Procurou seus superiores, disse das suas preocupações e ouviu que parasse imediatamente de meter-se no que não era de sua contaProcurou então a imprensa, com informação não sigilosa. Por isso, pagou caro, virou alvo de uma investigação do Departamento de Justiça – a qual depois foi suspensa, mas não antes de a carreira de Drake como funcionário público ter sido arruinada.

Até agora, as únicas ações que geraram debate substantivo e esperanças de alguma mudança foram os vazamentos de Snowden. Por quê? Em primeiro lugar, porque não existe a tal maioria inventada que apoiaria a vigilância desmedida.

Quando surgiram as primeiras notícias sobre o programa PRISM e fizeram-se as primeiras pesquisas, só 56% se declararam a favor da vigilância irrestrita pelo Estado, mas a pesquisa não informava que os próprios cidadãos entrevistados estavam sendo também vigiados clandestinamente. Seja como for, como um número que expressa apenas a metade da população poderia ser apresentado como “maioria”? Não pode. E a questão da “aprovação” pelos cidadãos permanece aberta.

Bradley Manning
Além do mais, conforme vinham à tona as revelações mais graves, os números mudaram, e mais e mais norte-americanos opõem-se hoje aos programas de vigilância, sobretudo quando já se sabe que a vida digital dos norte-americanos está sendo capturada e armazenada.

As razões de Snowden para revelar o que revelou não podem ser reduzidas a simples “não deve haver segredos”. Suas palavras sobre porque fez o que fez e os documentos que vazou mostram raciocínio muito mais complexo, que não pode ficar de fora de nossa análise.

O que Snowden fez foi abrir a torneira, para que informação valiosa possa jorrar sobre uma opinião pública que tem do direito de saber. Só se obtiver informação verídica e confiável, o público poderá construir avaliação realista dos acontecimentos e decidir sobre o que fazer de uma agência do governo que, hoje, tem ilimitados poderes para vigiar tudo e todos; que ativamente sonega informação; e que mentiu ao Congresso dos EUA sobre o que faz.

O debate apaixonado que Snowden gerou, a fervente coalizão que se vai construindo e a militância que já chega à imprensa exigindo mudanças depois daquelas revelações – não alguma reverência cega a leis duvidosas – são a própria vida da democracia, em seu pulso mais vital. Todos devemos muito a Snowden, que abriu as portas. Agora, cabe a nós concluir o trabalho.
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[*] Gabriella Coleman ou Biela Coleman (nascida Enid Gabriella Coleman) é uma antropóloga, acadêmica e ensaísta cuja obra incide em “cultura hacker”, estudo sobre os “Anonymous”e ativismo online em geral. Atualmente ocupa a Cátedra Wolfe em Scientific & Technological Literacy na McGill University, Montreal, Canadá. Seu trabalho The Chronicle of Higher Education é considerado o mais importante do mundo sobre os “Anonymous”. Graduou-se na Columbia University, fez mestrado e doutorado na University of Chicago.

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