23/8/2013, [*] Gabriella
Coleman – Princeton University Press,
USA
Traduzido pelo
pessoal da Vila
Vudu
Edward Snowden em Moscou |
De todas as acusações
arregimentadas contra Edward Snowden, considero o “diagnóstico de
narcisismo” a mais espúria e intrigante. Em
que sentido, exatamente, arriscar a própria vida – e prisão perpétua – seria
caso de personalidade narcísica? Embora se tenha exposto em público, em parte
para sua autoproteção, Snowden limitou ao mínimo possível suas interações com a
mídia, bem claramente sem buscar atenção indevida. Dado que não há sinais dessa
patologia, rotulá-lo como narcisista soa, isso sim, como assassinato de
reputação, para desqualificar “preventivamente” questões mais graves que a ação
de Snowden trouxe à tona.
Se
se contextualiza o que ele fez, não em termos de personalidade, mas à luz do
momento histórico contemporâneo, o que se vê, sem sombra de dúvida, é que Edward
Snowden não está só. Ele é parte de um cortejo crescente de indivíduos que há
anos já diagnosticaram o crescimento explosivo do estado de vigilância e segredo
como problema tão grave, que todos se dispõem a assumir riscos pessoais para
forçar o debate e as mudanças. O mais notável desse cortejo é que nele se reúnem
pessoas de dentro do sistema (William Binney, Thomas Drake, Edward Snowden,
Bradley Manning) e marginais (Julian Assange, Barrett Brown e James Bamford).
O
fato de que já se ouça um coro de vozes é significativo.
Julian Assange |
A
opinião pública talvez se mantivesse mais cética, se só se ouvisse uma voz, ou
se só os Julian Assanges do mundo – ativistas há muito tempo, que sempre se
mantiveram fora do aparelho do estado – estivessem tocando o apito e dando o
alarme. O fato de que no mesmo cortejo se reúnam jornalistas investigativos,
pessoal militar, empregados de agências de segurança e ativistas sinaliza
eloquentemente a extensão do problema: indivíduos sem qualquer conexão entre
eles, emergindo de diferentes campos da vida, todos estão identificando
problemas semelhantes.
Isso nos leva rumo às margens da
segunda questão: a “santidade” da lei. Parece-me, agora já bem claramente, que
os programas revelados violam aspectos da lei, tanto no espírito da lei, quanto
na letra da lei. Foi o que advogados disseram, sem meias palavras: “Os dois programas violam a letra e o
espírito da lei federal. Não há lei nos EUA que explicitamente autorize a
vigilância em massa”.
Num
mundo ideal, nós simplesmente usaríamos mecanismos legais para eliminar leis
nocivas e combater injustiças graves. Os críticos seguiriam essa trilha, antes
de infringir a lei. Exatamente o que aconteceu nesse caso.
Desde
a aprovação da Lei Antiterrorismo [orig. Patriot Act], aprovada em tempos
de grande agitação e muito medo nos EUA, vimos inúmeras tentativas, empreendidas
por organizações que defendem as liberdades civis, contra a vasta empreitada das
escutas e gravações clandestinas sem mandado e sem supervisão judicial. Um
primeiro processo, movido pela EFF e ACLU em 2006 contra a empresa AT&T foi
não apenas descartado, mas acabou por ser mumificado por uma lei dúbia, que
garantiu às grandes empresas de telecomunicações que cooperassem com o governo
um tipo jamais visto de imunidade retroativa. A lei foi adulterada de tal modo,
que perdeu qualquer serventia real.
Além
dos esforços legais empreendidos por organizações civis, alguns indivíduos
usaram canais legais que encontraram à disposição deles para forçar mudanças,
sem qualquer resultado.
Thomas Drake |
Não é preciso ir além do caso de
Thomas Drake, empregado da Agência de Segurança Nacional por longos anos e que,
num certo momento, passou a se sentir incomodado com as incontáveis violações da
lei a que assistia quase diariamente, e de primeira mão. Seu primeiro ato teve
caráter reformista. Procurou seus superiores, disse das suas preocupações e
ouviu que parasse imediatamente de meter-se no que
não era de sua conta. Procurou então a imprensa, com
informação não sigilosa. Por isso, pagou caro, virou alvo de uma investigação do
Departamento de Justiça – a qual depois foi suspensa, mas não antes de a
carreira de Drake como funcionário público ter sido arruinada.
Até
agora, as únicas ações que geraram debate substantivo e esperanças de alguma
mudança foram os vazamentos de Snowden. Por quê? Em primeiro lugar, porque não
existe a tal maioria inventada que apoiaria a vigilância desmedida.
Quando
surgiram as primeiras notícias sobre o programa PRISM e fizeram-se as primeiras
pesquisas, só 56% se declararam a favor da vigilância irrestrita pelo Estado,
mas a pesquisa não informava que os próprios cidadãos entrevistados estavam
sendo também vigiados clandestinamente. Seja como for, como um número que
expressa apenas a metade da população poderia ser apresentado como “maioria”?
Não pode. E a questão da “aprovação” pelos cidadãos permanece aberta.
Bradley Manning |
Além do mais, conforme vinham à
tona as revelações mais graves, os números mudaram, e mais e mais
norte-americanos opõem-se hoje aos programas de vigilância, sobretudo quando já
se sabe que a vida digital dos norte-americanos está
sendo capturada e armazenada.
As
razões de Snowden para revelar o que revelou não podem ser reduzidas a simples
“não deve haver segredos”. Suas palavras sobre porque fez o que fez e os
documentos que vazou mostram raciocínio muito mais complexo, que não pode ficar
de fora de nossa análise.
O
que Snowden fez foi abrir a torneira, para que informação valiosa possa jorrar
sobre uma opinião pública que tem do direito de saber. Só se obtiver informação
verídica e confiável, o público poderá construir avaliação realista dos
acontecimentos e decidir sobre o que fazer de uma agência do governo que, hoje,
tem ilimitados poderes para vigiar tudo e todos; que ativamente sonega
informação; e que mentiu ao Congresso dos EUA sobre o que faz.
O
debate apaixonado que Snowden gerou, a fervente coalizão que se vai construindo
e a militância que já chega à imprensa exigindo mudanças depois
daquelas revelações – não alguma reverência cega a leis duvidosas – são a
própria vida da democracia, em seu pulso mais vital. Todos devemos muito a
Snowden, que abriu as portas. Agora, cabe a nós concluir o trabalho.
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[*] Gabriella
Coleman ou Biela Coleman (nascida Enid Gabriella Coleman) é uma
antropóloga, acadêmica e ensaísta cuja obra incide em “cultura hacker”, estudo
sobre os “Anonymous”e ativismo online
em geral. Atualmente ocupa a Cátedra Wolfe em Scientific & Technological Literacy
na McGill University, Montreal, Canadá. Seu trabalho The Chronicle of Higher Education é
considerado o mais importante do mundo sobre os “Anonymous”. Graduou-se na Columbia University, fez mestrado e
doutorado na University of Chicago.
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