1/10/2013, [*] Pepe
Escobar, Asia Times Online –The Roving Eye
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
Jamais
subestime o Soft Power [poder suave] norte-americano.
E se o governo dos EUA estiver
paralisado em sinal de luto pela morte do seriado Breaking Bad,
[1] pode-se dizer o mais impressionante
seriado da história da televisão? Seria legítima justiça poética – porque
Breaking Bad é infinitamente mais pertinente, no que tenha a ver com a
psique norte-americana, que o “pico” barato, previsível, na colina do Capitólio.
Walter
White, codinome Heisenberg, bem pode ter-se tornado o último, radical, absoluto
herói da era Google/YouTube/Facebook. Num arco de tragédia que se estendeu por
cinco temporadas, Breaking Bad fez a crônica do que tem de acontecer para
que um homem aceite quem realmente é, mesmo que, no processo, acabe pagando o
preço insuportável de perder tudo que ama e que ele assume como seu único
tesouro: o amor da mulher e do filho.
Simultaneamente,
Breaking Bad foi também um estudo entomológico do turbocapitalismo
norte-americano – com os 1% que tudo-têm mostrados ou como gângsteres ou como
farsa, e os que quase-têm ou nada-têm mal conseguindo sobreviver, como os
professores de escolas públicas degradados, cidadãos de segunda classe.
No
início de Breaking Bad, em 2008, Walter White estava morrendo de câncer.
Progressivamente, ele foi-se livrando de Mr. Hyde – um plácido professor
de química – em favor do Dr. Jekyll, codinome Heisenberg, barão sem concorrentes
da produção de cristal de metanfetamina. Não é um pacto faustiano. É uma descida
rumo à noite escura da própria alma. No final, até “ganha”, pelos seus próprios
termos, e morre com um sorriso de beatitude.
Seu
segredo é que nunca se tratou apenas de curtir um “barato” transgressor, de
produzir o mais puro cristal de metanfetamina. Sempre se tratou do ato máximo do
Marginal, do Outsider, como num romance de Dostoevsky ou de Camus: um
homem que confronta seus medos, ultrapassa o umbral, assume pleno controle da
própria vida e, afinal, encara as consequências, sem fazer meia volta.
E, como tudo em Breaking
Bad, a música contou parte crucial da história. Nesse caso, nada menos que o
encerramento ao som de My Baby Blue,de Badfinger, a mais sombria das
canções de amor:
Guess
I got what I deserve [Acho
que tive o que mereço]
Kept
you waiting there, too long my Love [Deixar
você esperando lá, tempo demais, meu amor]
All
that time, without a Word [Todo
aquele tempo, sem uma palavra]
Didn’t
know you’d think, that I’d forget, or I’d regret [Não
sabia que você pensaria que eu esquecera, ou que estava arrependido]
The special love I have for you/ [Do amor especial que tenho por você]
My baby blue.
Áudio a seguir:
E
assim vai – e Walter White finalmente admite, o que faz todo o sentido, no
último episódio – que fez tudo o que fez, à moda My Way de Sinatra, não
pela família, mas por ele mesmo. E aí está o mais puro cristal de metanfetamina
como reflexo da mais pura revelação nesse mais puro dos seriados de televisão,
abençoado por roteiro e redação sem iguais (sente-se a excitação, palpável, o
entusiasmo dos redatores), direção, elenco, cinematografia de primeira, citando
tudo, de Scarface [2] a Taxi Driver
via O Poderoso Chefão, com meticuloso desenvolvimento dos personagens
e sensacionais viradas de enredo e roteiro.
Mas, outra vez, a espectral My
Baby Blue não trata só de cristal de metanfetamina – como a Crystal Blue Persuasion de Tommy James
e Shondells,usada numa espetacular montagem na
4ª temporada. Áudio a seguir:
Trata-se
de Jesse Pinkman, o jovem sócio usado e abusado de Walter White; Jesse é o
baby, sempre a evocar o “amor especial” de Walt sob a forma de
sentimentos paternos sempre espetacularmente malfadados.
“Estou
no negócio do Império”
Walt/Heisenberg
é um cientista. Seu gênio científico foi expropriado por sócios inescrupulosos
no passado, que enriqueceram numa empresa de tecnologia. Como Heisenberg,
finalmente o gênio científico mecânico chegou à plena fruição – de uma cadeira-de-rodas-bomba a um raid feito
com ímãs e até um remix do Assalto ao
Trem Pagador em 1963 na Grã-Bretanha, para nem falar da metanfetamina produzida
à perfeição.
Nessa
coluna da Time, um dos redatores
fala da cozinha de Breaking Bad. Mas nem assim se explica por que Walter
White tocou tão firmemente no nervo e tornou-se fenômeno pop global, de Albuquerque a Abu Dhabi.
Dizer
que é uma narrativa clássica do “azarão” explica também só uma parte da
história. No forno lento de cinco temporadas, o que se cristalizou foi Walter
White como homem comum em luta contra O Establishment – que inclui todos:
de criminosos dementes (um cartel mexicano de drogas, neonazistas descerebrados)
a advogados abutres (“Better Call Saul” [Melhor chamar o Saul]);
trapacear contra ex-sócios e, por fim, mas não menos importante, o governo dos
EUA (via a Agência Antidrogas [Drug Enforcement Agency, DEA]).
O
nihilismo – de um tipo sub-nietzscheano – também só explica parte da história.
Pode-se sentir a alegria dos redatores de Breaking Bad cada vez de
detonam o conceito judeu-cristão de culpa. Mas isso nada tem a ver com um mundo
sem qualquer código moral.
Basta
uma olhada ao O ramo de ouro [3] de James Frazer (1905), para perceber
como Walter White, em sua mente, anseia por uma sociedade tribal baseada na
família. Estará, então, rejeitando o Iluminismo?
Vamos-nos aproximando mais, quando
vemos Breaking Bad como uma meditação sobre o mito do Sonho Americano –
hoje já extrapolado para “o excepcionalismo norte-americano”. Como o personagem
Walter White admite para Jesse, ele está “no negócio do Império”.Assista cena logo
abaixo:
Na vida real, Walter White poderia
ter sido o cérebro do complexo orwelliano-Panóptico.
Assim, com My Baby Blue
soando na cabeça, acabei por encontrar minha resposta num livro que sempre levo
comigo quando estou na estrada nos EUA: Studies in Classic American
Literature, de D H Lawrence. [4] Não por acaso, Lawrence foi amante
apaixonado do Novo México – cenário no qual se desenrola a geopolítica de
Breaking Bad. E Walter White está bem aqui, quando Lawrence disseca o
[livro] The Deerslayer
(or
The First Warpath)
[1841] [O matador de veados (ou o primeiro caminho da guerra)], de James
Fenimore Cooper.
Walter
White, outra vez, incorpora “o mito da América branca essencial. Todo o resto, o
amor, a democracia, o protesto contra a luxúria, é uma espécie de preliminar. A
alma americana essencial é dura, isolada, estoica, e matadora. Nunca, ainda,
derreteu”.
Quando
Walter White converte-se em Heisenberg, metamorfoseia-se no Matador de
Veados:
Um
homem que dá às costas à sociedade branca. Que mantém dura e intacta a própria
integridade moral. Homem isolado, quase indiferente, estoico, resistente, que
vive pela morte, da matança, mas que é branco puro.
Isso
é o mais intrínseco, o mais americano. Está no núcleo de todo o resto do fluxo e
refluxo. E quando esse homem divide-se, quebra seu isolamento estático, e faz
movimento novo, cuidado, alguma coisa acontecerá.
O
gênio da sala de redação de Breaking Bad – com o criador Vince Gilligan
ao centro – foi mostrar a descida de Walter White rumo ao vórtice como descida
primeva, como intrinsecamente a “mais americana”. Não surpreende que Gilligan
defina Breaking Bad como essencialmente “um western”. Clint Eastwood
gosta de dizer que o western e o jazz são as únicas verdadeiras artes
norte-americanas (ora, esquece o film noir e o blues, o rock’n roll, o soul e o funk, mas, sim, se aproveita a ideia
geral).
Portanto,
se pode dizer de Breaking Bad, esse western empenado, que é pintura,
pintada com mão de mestre, do excepcionalismo norte-americano. E o faz vez na
batida menor de uma potência solitária, moribunda, mas ainda capaz de viciar a
população do planeta, até torná-la morbidamente dependente do espetáculo
cinematograficamente suntuoso do descarte da ex-potência.
Notas
dos tradutores
[1]
Referência ao seriado Breaking Bad, exibido no Brasil pelo
canal AXN, aos domingos, às 20h. No Urban Dictionary, a acepção mais votada para breaking
bad, aqui traduzida, hoje é, e vem da gíria do sudoeste dos
EUA, significando “quebrar convenções, desafiar a autoridade e transgredir a
lei”. A segunda opção mais votada hoje é: “Pirar, enlouquecer, pisar na jaca,
esquecer toda a prudência e simplesmente não dar merd* de porr* nenhuma de
atenção a coisa alguma, sair do modelão”. Pode-se também assistir à série. Em Portugal, a série foi
apresentada sob o título traduzido de “Ruptura Total”. No Brasil, aceita-se que
a expressão breaking bad signifique que o que já era ruim, piorou muito.
Pode-se dizer, tentativamente, que equivalha a “sujou”, “pintou sujeira”,
“dançamos”, “a gente se ferrou” [Nota (esforçada) dos Tradutores. Todas as
correções e comentários são bem-vindos.]
[2]
Há
dois filmes: Scarface, vergonha de uma nação,
Howard Hawks, 1932 e Scarface, Brian de Palma, 1983 e ambos
são citados no seriado .
[3]
Orig. The Golden Bough. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro: LTC, 1982.
ISBN 85-245-0041-7 (edição resumida).
[4]
LAWRENCE, D.H., Estudos sobre a Literatura Clássica Americana [1923], 1a.
edição em port., 2012, Rio de Janeiro:
Zahar.
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Pepe Escobar
(1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, EUA, Hong Kong e Paris, mas
publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no
Asia Times Online; é também analista e correspondente das redes Russia
Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera.
Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de
Tradutores da Vila Vudu, no
blog
redecastorphoto.
Livros
- Globalistan:
How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007
- Red
Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007
- Obama
Does Globalistan, Nimble Books, 2009
Comentário enviado por e-mail e postado por Castor
ResponderExcluirMuita saudade do Arnaldo Carrilho, que um dia disse EXATAMENTE isso
(pensei que ele tava inventando, ou descobrindo. Não: ele tava só ENSINANDO).
Agora qui entendi.)
“Democracia nos EUA jamais foi o mesmo que Liberdade na Europa. Na Europa, a Liberdade foi um forte sobressalto de vida. Mas nos EUA a Democracia sempre é algo anti-vida. Os grandes democratas, como Abraham Lincoln, sempre tiveram na voz uma nota de sacrifício, de autoassassinato. A Democracia nos EUA é sempre uma forma de autoassassinato. Ou de assassinar os outros”.
(D.H. Lawrence, Studies in Classic American Literature, cap. 5, sobre Fenimore Cooper, em http://www.toqonline.com/blog/d-h-lawrence-on-fenimore-coopers-leatherstocking-novels/).