domingo, 3 de novembro de 2013

A IDEIA É A COISA

Anarchist Archives [*] Alexander Berkman [1870-1936] (c.1933-1935)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Revolução Francesa - Queda da Bastilha, 14/7/1789
Você algum dia perguntou-se como é possível que os governos e o capitalismo continuem a existir, apesar de todo o mal e as dificuldades que causam no mundo?

Se se perguntou, deve ter-se respondido que é porque as pessoas apoiam essas instituições, o povo as apóia, e as apóiam porque acreditam nelas.

Esse é o xis do problema: as sociedades contemporâneas repousam sobre a crença, em todas as pessoas, de que os governos e o capitalismo são bons e úteis. E essa crença é fundada na ideia da autoridade e da propriedade privada. São ideias que conservam o que há. O governo e o capitalismo são formas pelas quais as ideias populares se expressam. As ideias são os alicerces; as instituições são a casa construída sobre eles.

Uma nova ordem social tem de ter outros alicerces, novas ideias na base. Por mais que se mude a forma de uma instituição, o caráter e o significado dela permanecerão os mesmos que haja nos alicerces sobre os quais a instituição foi construída. Se você observar de perto a vida, logo perceberá que sim, que isso é verdade. Há todos os tipos e formas de governo no mundo, mas a real natureza do governo é sempre a mesma, seja onde for; e seus efeitos também são os mesmos: governo sempre significa autoridade e obediência.

Mas, o que faz existirem os governos? Os exércitos e navios? Sim, mas só aparentemente. O que sustenta os exércitos e os navios? É sempre, e só, a crença do povo, das massas, de que o governo seja necessário; é a ideia aceita generalizadamente de que o governo seja necessário. Esse é o alicerce real, sólido, do governo. Afaste essa ideia, e nenhum governo sobreviverá sequer um dia a mais.

O mesmo se aplica à propriedade privada. A ideia de que a propriedade privada seja correta e necessária é o alicerce que a suporta e lhe dá firmeza e estabilidade. Nenhuma instituição existe hoje, que não seja fundada na crença popular de que ela seja boa e benéfica.

Examinemos alguns exemplos, para ilustrar. Os EUA, para começar. Pergunte-se a você mesmo por que a propaganda revolucionária tem efeito tão pequeno, tão ralo, nesse país, apesar de 50 anos [hoje, são mais de 100! (NTs)] de empenhado trabalho dos Socialistas, dos IWW [1] e dos anarquistas. O trabalhador norte-americano não é mais explorado que qualquer outro, em outros países? A corrupção não é pior aqui, sempre rampante, que em outras terras? A classe capitalista nos EUA não é a mais arbitrária e despótica do mundo? Sim, é verdade: o trabalhador nos EUA vive em melhores condições materiais que na Europa, mas não é, ao mesmo tempo, tratado com muito mais brutalidade e terrorismo, no momento em que dá sinais de insatisfação? Pois mesmo assim o trabalhador norte-americano permanece leal ao governo e é o primeiro da defendê-lo de qualquer crítica. E é também o mais devotado defensor das “grandes e nobres instituições da maior nação da Terra”. Por quê? Porque ele crê que as instituições sejam instituições dele, que ele, como cidadão soberano e livre, as comandaria e governaria; e que ele poderá mudá-las, se quiser. E é nessa fé na ordem existente que está a maior garantia da própria ordem existente, contra a revolução. É fé estúpida e sem qualquer fundamento ou comprovação, e algum dia virá abaixo; e, com ela, virão abaixo o capitalismo e o despotismo norte-americanos. Mas, enquanto essa fé persistir entre todos, a plutocracia norte-americana está a salvo contra qualquer revolução.

Na medida em que a mente dos homens se abre e desenvolve-se, conforme os homens avançam para ideias novas e perdem a fé nas crenças de antes, as instituições começam a mudar, até que acabam. O povo ascende à compreensão de que suas velhas crenças eram falsas, que nada tinham de verdade, que não passavam de preconceito e de superstição.

Assim acontece que muitas ideias, por muito tempo prestigiadas e consideradas verdadeiras e boas, passam a ser vistas como erradas e más. Aconteceu com a ideia do direito divino dos reis, da escravidão, da obrigação dos servos. Tempo houve em que todo o mundo via essas ideias como certas, justas e imutáveis. À medida que aquelas superstições e ideias falsas passaram a ser combatidas por pensadores avançados, foram sendo desacreditadas e perderam o poder que tinham sobre as pessoas. Até que, finalmente, as instituições que haviam incorporado aquelas ideias foram abolidas.

Os ricos e pedantes dirão que aquelas ideias “perderam a serventia” e, por isso, “morreram”. Mas... como “perderam” a “serventia”? Para quem, algum dia, aquelas instituições tiveram alguma serventia? E como... “morreram”? Morreram como?!

Já se sabe que só foram úteis para a classe dos patrões, e que foram varridas do mundo por levantes populares e revoluções.

Por que instituições velhas e estéreis não “desaparecem” nem morrem de modo pacífico?

Rebelião da Comuna de Paris, foto tomada em 29/5/1871
Por duas razões: primeiro, porque há pessoas que pensam mais depressa que outras. Assim acontece que uma minoria, num dado local, avança nas próprias ideias mais rapidamente que os demais. Quanto mais essa minoria vai-se imbuindo das ideias novas, quanto mais se convence da verdade delas, e mais fortes os homens e mulheres se sentem, mais depressa querem ver realizadas as ideias novas; e isso quase sempre antes que a maioria tenha conseguido ver a nova luz. Assim, a minoria tem de lutar contra a maioria que ainda se agarra às condições e às ideias velhas.

Em segundo lugar, por causa da resistência dos que têm o poder. Não faz diferença alguma que seja a igreja, o rei, o czar, um governo democrático ou uma ditadura, república ou autocracia – quem tem autoridade lutará desesperadamente para mantê-la pelo tempo mais longo e agarrando-se a qualquer farrapo de possibilidade de sucesso. E quanto maior o apoio que possam obter da maioria que pensa devagar, mais força os poderosos têm para lutar. Por isso as revoltas e revoluções são movimentos de fúria.

O desespero das massas, o ódio que sentem pelos responsáveis por sua miséria, e a determinação dos senhores da vida e da morte, de se manterem aferrados aos seus privilégios e poder, combinam-se para produzir a violência dos levantes e rebeliões populares.

Mas rebelião cega, sem objetivo e meta definidos, não é revolução. Revolução é a rebelião que se torna consciente dos próprios objetivos. A revolução é social, quando luta por uma mudança nos fundamentos. Dado que o fundamento, o alicerce da vida é a economia, a revolução social tem de significar a reorganização da vida industrial, econômica do país e, consequentemente, também de toda a estrutura da sociedade.

Já vimos que a estrutura social repousa sobre ideias, o que implica que mudar a estrutura pressupõe ideias mudadas. Em outras palavras: as ideias sociais têm de mudar, antes que possa ser construída uma nova estrutura social.

A revolução social, portanto, não é acidental, nem algum tipo de evento inesperado, repentino. Nada há de inesperado ou repentino na revolução social, porque as ideias não mudam da noite para o dia. Elas crescem devagar, gradualmente, lentamente, como uma planta ou uma flor. Daí que a revolução social é um resultado, um passo, um desenvolvimento, o que implica que ela é evolucional. Desenvolve-se até um ponto em que números consideráveis de pessoas já abraçaram as novas ideias e estão decididas a pô-las em prática. Quando tentam fazê-lo e encontram oposição, então a evolução social lenta, silenciosa e pacífica torna-se rápida, militante e violenta. A evolução torna-se revolução.

Tenham sempre em mente, portanto, que evolução e revolução não são coisas separadas e diferentes. Menos ainda são opostas, como alguns creem, erradamente. A revolução é apenas o ponto de ebulição de uma evolução.

Batalha Naval no rio Yangtze rebelião do clã Taiping para se libertar do reinado Qing na China
Porque a revolução é uma evolução que chega ao seu ponto de ebulição, ninguém pode “fazer” uma verdadeira revolução, assim como ninguém pode “fazer” ferver, sem mais nem menos, a água para o chá. O que faz ferver a água é o fogo que haja por baixo da chaleira: a rapidez com que a água alcança o ponto de ebulição depende da força da chama, do fogo.

As condições econômicas e políticas de um país são o fogo aceso por baixo do caldeirão evolucional. Quanto maior a opressão, maior a insatisfação do povo e mais forte a chama. Assim se explica por que os fogos da revolução social varreram a Rússia, o mais atrasado e tirânico dos países, mas não varreram os EUA, onde o desenvolvimento industrial quase alcançou o ponto máximo – e, isso apesar de todas as eruditas demonstrações que Karl Marx fez, do contrário.

Vê-se então que as revoluções, embora não possam ser “feitas”, podem ser aceleradas por alguns fatores, dentre os quais: pressão de cima para baixo (por intensa opressão política e econômica) e pressão de baixo para cima (por ilustração e educação sempre maiores, mais livres, mais amplas, e pela agitação e propaganda). Agitação e propaganda disseminam ideias; apressam a evolução e, assim, o advento da revolução.

Mas a pressão de cima para baixo, embora a acelere, pode também causar o fracasso da revolução, porque pode acontecer de a revolução irromper antes de o processo evolucional estar suficientemente avançado.

Se chega prematuramente, a revolução aborta em mera rebelião, quer dizer, em movimento sem objetivo e meta claros e conscientes. No melhor dos casos, uma rebelião pode até trazer algum alívio temporário; mas as reais causas da luta permanecem intactas e continuam a operar para o mesmo efeito, para causar mais insatisfação e mais rebelião.

Se se resume tudo que aí vai escrito sobre revolução, chega-se à conclusão que:

1) revolução social é revolução que muda completamente os alicerces da sociedade, seu caráter econômico e social;
2) é preciso que a mudança aconteça antes nas ideias e opiniões das pessoas, na cabeça das pessoas;
3) opressão e miséria podem apressar a revolução, mas podem também levar a revolução a fracassar, porque, se não houver preparação e amadurecimento evolucional, nenhuma revolução será jamais bem-sucedida; e
4) só haverá revolução pelos fundamentos, revolução social e bem-sucedida, se a revolução for a expressão de uma mudança básica de ideias e opiniões.

Daí se segue, obviamente, que a revolução social tem de ser preparada. “Preparada” no sentido de que é preciso encaminhar o processo evolucional, ilustrar e educar as pessoas sobre os males e defeitos e vícios da sociedade atual, e persuadir as pessoas de que uma vida social baseada na liberdade é desejável e possível, justa e perfeitamente alcançável; “preparada”, sobretudo, no sentido de levar as pessoas a saberem com clareza exatamente o que lhes falta e o que realmente desejam, e como fazer para obtê-lo.

Essa preparação não é apenas passo preliminar absolutamente necessário. Aí está o princípio da segurança da revolução, a única garantia possível de que a revolução cumpra seus objetivos.

Foi destino de muitas revoluções – resultado da falta de preparação – desviar-se de seu principal objetivo, serem mal usadas e conduzidas para becos sem saída. A Rússia é o mais recente bom exemplo disso. A Revolução de Fevereiro, que buscava varrer a autocracia foi inteiramente bem-sucedida. O povo sabia exatamente o que queria, a saber, a abolição do czarismo. Todas as maquinações dos políticos, toda a oratória e esquemas dos Lvovs e Milukovs – os líderes “liberais” daqueles dias – não bastaram para salvar o regime dos Romanovs ante o desejo lúcido e consciente do povo. Foi essa compreensão, esse entendimento claro dos próprios objetivos que fez da Revolução de Fevereiro um completo sucesso, e, vejam vocês, praticamente sem derramamento de sangue.

Além disso, nenhuma apelo, nenhuma ameaça que o Governo Provisório inventasse conseguiu abalar a determinação do povo, que queria o fim da guerra. Os exércitos deixavam os fronts e assim decidiam a questão, por sua ação direta. O desejo de um povo consciente dos próprios objetivos sempre vence.

Foi também o desejo do povo, o desejo determinado, resoluto, de apropriar-se da terra, que garantiu aos camponeses a terra de que precisavam. E também na cidade, os trabalhadores, como já tantas vezes se narrou, apossaram-se eles mesmos das fábricas e do maquinário de produção.

Até aí, a Revolução Russa foi sucesso completo. Mas no momento em que faltou às massas a clara consciência de um objetivo definido, a derrota começou. É sempre no momento em que políticos e partidos políticos aparecem, para explorar a revolução a favor dos objetivos deles ou para fazer “experimentos” de suas teorias, à custa da revolução. Aconteceu na Rússia, como em muitas revoluções anteriores. O povo combateu o bom combate – os partidos políticos engalfinharam-se na disputa do espólio, em detrimento da revolução e para a ruína do povo.

Guarda Vermelha revolucionária desfila vitoriosa em Moscou/1920
Foi o que aconteceu na Rússia. O camponês, que garantira para si a terra, não tinha as ferramentas e o maquinário de que precisava. O operário, que garantira para si as máquinas e as fábricas, não sabia operá-las para produzir. Em outras palavras, não tinha a experiência necessária para organizar a produção, nem sabia gerenciar a distribuição das coisas que produziam.

Por seus esforços próprios – o trabalhador, o camponês e os soldados - haviam dado cabo do czarismo, paralisaram o governo, pararam a guerra, aboliram a propriedade privada da terra e das máquinas. Para isso haviam sido preparados por anos de educação e agitação. Mas para nada mais, além disso. E porque não haviam sido preparados para fazer mais, onde acabou seu conhecimento e faltou objetivo definido, ali entraram os partidos políticos para “assumir”, para tirar os assuntos das mãos dos que haviam feito toda a revolução até ali. A política substituiu a reconstrução econômica. E soou o sino da morte da revolução social; porque as pessoas vivem de pão e de economia, não vivem de política.

Comida e máquinas não são criadas por decretos de partidos ou governos. Nenhum decreto legislativo lavra a terra; as leis não fazem girar as rodas da indústria. A insatisfação, a carência, a fome logo vieram, nas pegadas da ditadura e da coerção pelo governo. Mais uma vez, como sempre, a política e a autoridade provaram ser o pântano no qual se apagaram os fogos revolucionários.

É hora de aprendermos essa lição vital: em todos os casos, só a compreensão clara, pelas pessoas, dos verdadeiros objetivos e metas da revolução, leva ao sucesso revolucionário. Fazer acontecer o próprio desejo consciente, educado, civilizado, ilustrado e bem compreendido, e fazê-lo acontecer pelo próprio empenho revolucionário, é o que assegura para os revolucionários o desenvolvimento adequado de uma nova vida. Por outro lado, sem essa compreensão e sem essa preparação, a derrota é certa, seja nas mãos da reação, seja nos “experimentos” teóricos dos ditos amigos dos partidos políticos. É hora, pois, de preparar a revolução.
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Nota dos tradutores
[1] Industrial Workers of the World [Trabalhadores Industriais do Mundo] (IWW, ou os Wobblies), sindicato anarquista criado nos EUA no início do século 20, do qual Berkman foi membro ativista destacado e continua atuante. 
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[*] Alexander Berkman foi um escritor e ativista anarquista nascido na Rússia, figura de destaque do movimento anarquista nos Estados Unidos no início do século XX. Nascido na cidade de Vilnius no Império Russo imigrou para os Estados Unidos em 1888. Nasceu em 21 de novembro de 1870, faleceu em 28 de junho de 1936, Nice, França

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