Anarchist
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Berkman [1870-1936] (c.1933-1935)
Traduzido pelo
pessoal da Vila Vudu
Revolução Francesa - Queda da Bastilha, 14/7/1789 |
Você algum dia perguntou-se como é
possível que os governos e o capitalismo continuem a existir, apesar de todo o
mal e as dificuldades que causam no mundo?
Se se perguntou, deve ter-se
respondido que é porque as pessoas apoiam essas instituições, o povo as apóia,
e as apóiam porque acreditam nelas.
Esse é o xis do problema: as
sociedades contemporâneas repousam sobre a crença, em todas as pessoas, de que
os governos e o capitalismo são bons e úteis. E essa crença é fundada na ideia
da autoridade e da propriedade privada. São ideias que conservam o que há. O
governo e o capitalismo são formas pelas quais as ideias populares se
expressam. As ideias são os alicerces; as instituições são a casa construída
sobre eles.
Uma nova ordem social tem de ter
outros alicerces, novas ideias na base. Por mais que se mude a forma de uma
instituição, o caráter e o significado dela permanecerão os mesmos que haja nos
alicerces sobre os quais a instituição foi construída. Se você observar de
perto a vida, logo perceberá que sim, que isso é verdade. Há todos os tipos e
formas de governo no mundo, mas a real natureza do governo é sempre a mesma,
seja onde for; e seus efeitos também são os mesmos: governo sempre significa
autoridade e obediência.
Mas, o que faz existirem os governos?
Os exércitos e navios? Sim, mas só aparentemente. O que sustenta os exércitos e
os navios? É sempre, e só, a crença do povo, das massas, de que o governo seja
necessário; é a ideia aceita generalizadamente de que o governo seja
necessário. Esse é o alicerce real, sólido, do governo. Afaste essa ideia, e
nenhum governo sobreviverá sequer um dia a mais.
O mesmo se aplica à propriedade
privada. A ideia de que a propriedade privada seja correta e necessária é o
alicerce que a suporta e lhe dá firmeza e estabilidade. Nenhuma instituição
existe hoje, que não seja fundada na crença popular de que ela seja boa e
benéfica.
Examinemos alguns exemplos, para
ilustrar. Os EUA, para começar. Pergunte-se a você mesmo por que a propaganda
revolucionária tem efeito tão pequeno, tão ralo, nesse país, apesar de 50 anos
[hoje, são mais de 100! (NTs)] de empenhado trabalho dos Socialistas, dos IWW [1] e dos anarquistas. O trabalhador
norte-americano não é mais explorado que qualquer outro, em outros países? A
corrupção não é pior aqui, sempre rampante, que em outras terras? A classe
capitalista nos EUA não é a mais arbitrária e despótica do mundo? Sim, é
verdade: o trabalhador nos EUA vive em melhores condições materiais que na
Europa, mas não é, ao mesmo tempo, tratado com muito mais brutalidade e
terrorismo, no momento em que dá sinais de insatisfação? Pois mesmo assim o
trabalhador norte-americano permanece leal ao governo e é o primeiro da
defendê-lo de qualquer crítica. E é também o mais devotado defensor das
“grandes e nobres instituições da maior nação da Terra”. Por quê? Porque ele
crê que as instituições sejam instituições dele,
que ele, como cidadão soberano e livre, as comandaria e governaria; e que ele
poderá mudá-las, se quiser. E é nessa fé na ordem existente que está a maior
garantia da própria ordem existente, contra a revolução. É fé estúpida e sem
qualquer fundamento ou comprovação, e algum dia virá abaixo; e, com ela, virão
abaixo o capitalismo e o despotismo norte-americanos. Mas, enquanto essa fé
persistir entre todos, a plutocracia norte-americana está a salvo contra
qualquer revolução.
Na medida em que a mente dos homens
se abre e desenvolve-se, conforme os homens avançam para ideias novas e perdem
a fé nas crenças de antes, as instituições começam a mudar, até que acabam. O
povo ascende à compreensão de que suas velhas crenças eram falsas, que nada
tinham de verdade, que não passavam de preconceito e de superstição.
Assim acontece que muitas ideias, por
muito tempo prestigiadas e consideradas verdadeiras e boas, passam a ser vistas
como erradas e más. Aconteceu com a ideia do direito divino dos reis, da
escravidão, da obrigação dos servos. Tempo houve em que todo o mundo via essas
ideias como certas, justas e imutáveis. À medida que aquelas superstições e
ideias falsas passaram a ser combatidas por pensadores avançados, foram sendo
desacreditadas e perderam o poder que tinham sobre as pessoas. Até que,
finalmente, as instituições que haviam incorporado aquelas ideias foram
abolidas.
Os ricos e pedantes dirão que aquelas
ideias “perderam a serventia” e, por isso, “morreram”. Mas... como “perderam” a
“serventia”? Para quem, algum dia, aquelas instituições tiveram alguma
serventia? E como... “morreram”? Morreram como?!
Já se sabe que só foram úteis para a
classe dos patrões, e que foram varridas do mundo por levantes populares e
revoluções.
Por que instituições velhas e
estéreis não “desaparecem” nem morrem de modo pacífico?
Rebelião da Comuna de Paris, foto tomada em 29/5/1871 |
Por duas razões: primeiro, porque há
pessoas que pensam mais depressa que outras. Assim acontece que uma minoria,
num dado local, avança nas próprias ideias mais rapidamente que os demais. Quanto
mais essa minoria vai-se imbuindo das ideias novas, quanto mais se convence da
verdade delas, e mais fortes os homens e mulheres se sentem, mais depressa
querem ver realizadas as ideias novas; e isso quase sempre antes que a maioria
tenha conseguido ver a nova luz. Assim, a minoria tem de lutar contra a maioria
que ainda se agarra às condições e às ideias velhas.
Em segundo lugar, por causa da
resistência dos que têm o poder. Não faz diferença alguma que seja a igreja, o
rei, o czar, um governo democrático ou uma ditadura, república ou autocracia –
quem tem autoridade lutará desesperadamente para mantê-la pelo tempo mais longo
e agarrando-se a qualquer farrapo de possibilidade de sucesso. E quanto maior o
apoio que possam obter da maioria que pensa devagar, mais força os poderosos
têm para lutar. Por isso as revoltas e revoluções são movimentos de fúria.
O desespero das massas, o ódio que
sentem pelos responsáveis por sua miséria, e a determinação dos senhores da
vida e da morte, de se manterem aferrados aos seus privilégios e poder,
combinam-se para produzir a violência dos levantes e rebeliões populares.
Mas rebelião cega, sem objetivo e
meta definidos, não é revolução. Revolução é a rebelião que se torna consciente
dos próprios objetivos. A revolução é social, quando luta por uma mudança nos
fundamentos. Dado que o fundamento, o alicerce da vida é a economia, a
revolução social tem de significar a reorganização da vida industrial,
econômica do país e, consequentemente, também de toda a estrutura da sociedade.
Já vimos que a estrutura social
repousa sobre ideias, o que implica que mudar a estrutura pressupõe ideias
mudadas. Em outras palavras: as ideias sociais têm de mudar, antes que possa
ser construída uma nova estrutura social.
A revolução social, portanto, não é
acidental, nem algum tipo de evento inesperado, repentino. Nada há de
inesperado ou repentino na revolução social, porque as ideias não mudam da
noite para o dia. Elas crescem devagar, gradualmente, lentamente, como uma
planta ou uma flor. Daí que a revolução social é um resultado, um passo, um
desenvolvimento, o que implica que ela é evolucional. Desenvolve-se até um
ponto em que números consideráveis de pessoas já abraçaram as novas ideias e
estão decididas a pô-las em
prática. Quando tentam fazê-lo e encontram oposição, então a
evolução social lenta, silenciosa e pacífica torna-se rápida, militante e
violenta. A evolução torna-se revolução.
Tenham sempre em mente, portanto, que
evolução e revolução não são coisas separadas e diferentes. Menos ainda são
opostas, como alguns creem, erradamente. A revolução é apenas o ponto de
ebulição de uma evolução.
Batalha Naval no rio Yangtze rebelião do clã Taiping para se libertar do reinado Qing na China |
Porque a revolução é uma evolução que
chega ao seu ponto de ebulição, ninguém pode “fazer” uma verdadeira revolução,
assim como ninguém pode “fazer” ferver, sem mais nem menos, a água para o chá.
O que faz ferver a água é o fogo que haja por baixo da chaleira: a rapidez com
que a água alcança o ponto de ebulição depende da força da chama, do fogo.
As condições econômicas e políticas
de um país são o fogo aceso por baixo do caldeirão evolucional. Quanto maior a
opressão, maior a insatisfação do povo e mais forte a chama. Assim se explica
por que os fogos da revolução social varreram a Rússia, o mais atrasado e
tirânico dos países, mas não varreram os EUA, onde o desenvolvimento industrial
quase alcançou o ponto máximo – e, isso apesar de todas as eruditas
demonstrações que Karl Marx fez, do contrário.
Vê-se então que as revoluções, embora
não possam ser “feitas”, podem ser aceleradas por alguns fatores, dentre os
quais: pressão de cima para baixo (por intensa opressão política e econômica) e
pressão de baixo para cima (por ilustração e educação sempre maiores, mais
livres, mais amplas, e pela agitação e propaganda). Agitação e propaganda disseminam
ideias; apressam a evolução e, assim, o advento da revolução.
Mas a pressão de cima para baixo,
embora a acelere, pode também causar o fracasso da revolução, porque pode
acontecer de a revolução irromper antes de o processo evolucional estar suficientemente
avançado.
Se chega prematuramente, a revolução
aborta em mera rebelião, quer dizer, em movimento sem objetivo e meta claros e
conscientes. No melhor dos casos, uma rebelião pode até trazer algum alívio
temporário; mas as reais causas da luta permanecem intactas e continuam a
operar para o mesmo efeito, para causar mais insatisfação e mais rebelião.
Se se resume tudo que aí vai escrito
sobre revolução, chega-se à conclusão que:
1)
revolução social é revolução que muda completamente os alicerces da sociedade,
seu caráter econômico e social;
2) é
preciso que a mudança aconteça antes nas ideias e opiniões das pessoas, na
cabeça das pessoas;
3)
opressão e miséria podem apressar a revolução, mas podem também levar a
revolução a fracassar, porque, se não houver preparação e amadurecimento
evolucional, nenhuma revolução será jamais bem-sucedida; e
4) só
haverá revolução pelos fundamentos, revolução social e bem-sucedida, se a
revolução for a expressão de uma mudança básica de ideias e opiniões.
Daí se segue, obviamente, que a
revolução social tem de ser preparada. “Preparada” no sentido de que é preciso
encaminhar o processo evolucional, ilustrar e educar as pessoas sobre os males
e defeitos e vícios da sociedade atual, e persuadir as pessoas de que uma vida
social baseada na liberdade é desejável e possível, justa e perfeitamente
alcançável; “preparada”, sobretudo, no sentido de levar as pessoas a saberem
com clareza exatamente o que lhes falta e o que realmente desejam, e como fazer
para obtê-lo.
Essa preparação não é apenas passo
preliminar absolutamente necessário. Aí está o princípio da segurança da
revolução, a única garantia possível de que a revolução cumpra seus objetivos.
Foi destino de muitas revoluções –
resultado da falta de preparação – desviar-se de seu principal objetivo, serem
mal usadas e conduzidas para becos sem saída. A Rússia é o mais recente bom
exemplo disso. A Revolução de Fevereiro, que buscava varrer a autocracia foi
inteiramente bem-sucedida. O povo sabia exatamente o que queria, a saber, a
abolição do czarismo. Todas as maquinações dos políticos, toda a oratória e
esquemas dos Lvovs e Milukovs – os líderes “liberais” daqueles dias – não
bastaram para salvar o regime dos Romanovs ante o desejo lúcido e consciente do
povo. Foi essa compreensão, esse entendimento claro dos próprios objetivos que
fez da Revolução de Fevereiro um completo sucesso, e, vejam vocês, praticamente
sem derramamento de sangue.
Além disso, nenhuma apelo, nenhuma
ameaça que o Governo Provisório inventasse conseguiu abalar a determinação do
povo, que queria o fim da guerra. Os exércitos deixavam os fronts e assim decidiam a questão, por sua ação direta. O desejo de
um povo consciente dos próprios objetivos sempre vence.
Foi também o desejo do povo, o desejo
determinado, resoluto, de apropriar-se da terra, que garantiu aos camponeses a
terra de que precisavam. E também na cidade, os trabalhadores, como já tantas
vezes se narrou, apossaram-se eles mesmos das fábricas e do maquinário de
produção.
Até aí, a Revolução Russa foi sucesso
completo. Mas no momento em que faltou às massas a clara consciência de um
objetivo definido, a derrota começou. É sempre no momento em que políticos e
partidos políticos aparecem, para explorar a revolução a favor dos objetivos
deles ou para fazer “experimentos” de suas teorias, à custa da revolução.
Aconteceu na Rússia, como em muitas revoluções anteriores. O povo combateu o
bom combate – os partidos políticos engalfinharam-se na disputa do espólio, em
detrimento da revolução e para a ruína do povo.
Guarda Vermelha revolucionária desfila vitoriosa em Moscou/1920 |
Foi o que aconteceu na Rússia. O
camponês, que garantira para si a terra, não tinha as ferramentas e o
maquinário de que precisava. O operário, que garantira para si as máquinas e as
fábricas, não sabia operá-las para produzir. Em outras palavras, não tinha a
experiência necessária para organizar a produção, nem sabia gerenciar a
distribuição das coisas que produziam.
Por seus esforços próprios – o
trabalhador, o camponês e os soldados - haviam dado cabo do czarismo,
paralisaram o governo, pararam a guerra, aboliram a propriedade privada da
terra e das máquinas. Para isso haviam sido preparados por anos de educação e
agitação. Mas para nada mais, além disso. E porque não haviam sido preparados
para fazer mais, onde acabou seu conhecimento e faltou objetivo definido, ali
entraram os partidos políticos para “assumir”, para tirar os assuntos das mãos
dos que haviam feito toda a revolução até ali. A política substituiu a
reconstrução econômica. E soou o sino da morte da revolução social; porque as
pessoas vivem de pão e de economia, não vivem de política.
Comida e máquinas não são criadas por
decretos de partidos ou governos. Nenhum decreto legislativo lavra a terra; as
leis não fazem girar as rodas da indústria. A insatisfação, a carência, a fome
logo vieram, nas pegadas da ditadura e da coerção pelo governo. Mais uma vez,
como sempre, a política e a autoridade provaram ser o pântano no qual se
apagaram os fogos revolucionários.
É hora de aprendermos essa lição
vital: em todos os casos, só a compreensão clara, pelas pessoas, dos
verdadeiros objetivos e metas da revolução, leva ao sucesso revolucionário.
Fazer acontecer o próprio desejo consciente, educado, civilizado, ilustrado e
bem compreendido, e fazê-lo acontecer pelo próprio empenho revolucionário, é o
que assegura para os revolucionários o desenvolvimento adequado de uma nova
vida. Por outro lado, sem essa compreensão e sem essa preparação, a derrota é
certa, seja nas mãos da reação, seja nos “experimentos” teóricos dos ditos
amigos dos partidos políticos. É hora, pois, de preparar a revolução.
____________________
Nota dos tradutores
[1] Industrial
Workers of the World [Trabalhadores
Industriais do Mundo] (IWW, ou os
Wobblies), sindicato anarquista criado nos EUA no início do
século 20, do qual Berkman foi membro ativista destacado e continua atuante.
______________
[*] Alexander
Berkman foi um
escritor e ativista anarquista nascido na Rússia, figura de destaque do
movimento anarquista nos Estados Unidos no início do século XX. Nascido na
cidade de Vilnius no Império Russo imigrou para os Estados Unidos em 1888. Nasceu em 21 de
novembro de 1870, faleceu em 28 de junho de 1936, Nice, França
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