7/12/2013, [*] Samir Amin
(recebido por e-mail do
autor, pela Rede Tlaxcala)
Traduzido e enviado pelo pessoal da Vila Vudu
O movimento ao
socialismo
As reflexões que seguem dizem respeito
a um desafio permanente e fundamental que todos os movimentos populares em luta
contra o capitalismo enfrentaram e enfrentam. Por lutas contra o capitalismo
entendo sejam (a) as lutas dos
movimentos que assumam o objetivo radical de abolir esse sistema baseado na propriedade
privada dos meios de produção modernos (o capital), para substituí-lo por
sistema baseado na propriedade social dos trabalhadores; e (b) as lutas dos movimentos que, sem ir até lá, mobilizam-se para
realmente transformar, e em medida significativa, as relações entre o trabalho
(“empregado do capital”) e o capital (“que emprega trabalhadores”). Esses
movimentos (a) e (b) podem contribuir, em graus
diferentes, para pôr o capitalismo outra vez em causa; como podem também só
criar a ilusão de que agem naquela direção, quando, de fato, só constrangem o
capital a se transformar para absorver, caso a caso, as reivindicações do
trabalho. Sabendo que a fronteira entre a eficácia e a impotência das
estratégias adotadas nem sempre é fácil de demarcar, como tampouco é fácil o
choque entre as visadas estratégicas e as contingências táticas.
Considerados em conjunto, bom número
desses movimentos podem ser qualificados como “movimento ao socialismo”. Tomo
emprestada a locução ao vocabulário posto em uso ao longo das últimas décadas
por alguns partidos da América do Sul (Chile, Bolívia e outros). Esses partidos
renunciaram ao objetivo tradicional dos partidos comunistas (“exercer o poder
para construir o socialismo”), para substituí-lo por outro – de aparência mais
modesta – de construir pacientemente as condições sociais e políticas que
permitem avançar rumo ao socialismo. A diferença está em que a construção do
socialismo pregada pelos partidos comunistas a ela dedicados partia de uma
definição de socialismo previamente conhecida, inspirada pela experiência
soviética, que se pode resumir em dois termos: nacionalizações e planejamento
de Estado. Os partidos que se definem pelo “movimento ao socialismo” deixam
aberta a identificação final dos meios para socializar a gestão de uma economia
moderna.
Certo número de organizações e
partidos – mas não todos – que reivindicam para eles o socialismo, ou ainda o
comunismo, declaram-se herdeiros de Marx e mesmo, às vezes, de um marxismo
histórico como formulado pelas tradições do sovietismo e/ou do maoísmo.
De fato, o triunfo do capitalismo a
partir da revolução industrial e sua globalização pela expansão imperialista
criaram simultaneamente as condições para a emergência de um projeto de
civilização universal superior, o do socialismo/comunismo. Várias fontes
convergiram nessa invenção; e Lênin, depois de Engels, ofereceu-lhe uma
classificação bem conhecida da variante marxista: a economia clássica inglesa,
o socialismo utópico francês, a filosofia hegeliana alemã. Apresentação que
simplifica a realidade e ignora várias outras contribuições de antes e depois
de Marx.
Sem dúvida, a contribuição de Marx à
formulação do projeto socialista/comunista constitui a cisão decisiva na
elaboração do projeto. O pensamento de Marx constrói-se, de fato, a partir de
uma análise científica rigorosa do capitalismo considerado em todas as facetas
de sua realidade histórica, o que não havia nas formulações socialistas
anteriores e mesmo posteriores, que ignoraram Marx. A formulação da lei do
valor própria do capitalismo, a identificação das tendências longas da
acumulação do capital, a identificação das contradições, a análise das relações
entre as lutas de classes e os conflitos internacionais, por um lado; e das
transformações das modalidades da gestão da acumulação e da política, por outro
lado; e a análise das expressões alienadas das consciências sociais definem
juntas o pensamento de Marx que inaugura o desdobramento[m1] de marxismos
históricos, em particular os da 2ª e da 3ª Internacionais, do sovietismo e do
maoísmo.
Revolução Francesa - A queda da Bastilha |
A posição central da
Revolução Francesa na formação do mundo moderno
A Revolução Francesa ocupa, na minha
leitura da construção moderna, uma posição central. Porque ela define um
sistema de valores (liberdade, igualdade, fraternidade – hoje se diria
solidariedade) que enraíza a modernidade em sua contradição fundamental; porque
esses valores são, definitivamente, bem mais os valores de uma civilização
socialista superior a ser inventada, que valores que o capitalismo possa honrar
com plena e autêntica realização. Nesse sentido, a Revolução Francesa é mais
que uma “revolução burguesa” (como o foi, por exemplo, a de 1688 na
Inglaterra); ela anuncia, com a Convenção da Montanha – a necessidade de ir
além.
Os valores do capitalismo – os que são
úteis para o desdobramento do capitalismo – são os que inspiraram a
não-revolução americana: liberdade e propriedade. Juntas, elas definem a
liberdade de empresa, a liberdade de empreender, seja a pequena empresa
agrícola familiar, como foi o caso nas colônias da Nova Inglaterra, seja a
fazenda escravista nas colônias do sul, ou seja, mais tarde, a grande empresa
industrial, depois os monopólios financeirizados. Juntos, esses dois valores
associados excluem qualquer aspiração à igualdade que vá além da igualdade que
haja no direito igual para todos: “igualdade de oportunidades”, dirá o discurso
ideológico que ignora as desigualdades iniciais que separam as classes de
proprietários, do proletariado vendedor de força de trabalho.
Liberdade e propriedade dão, juntas,
uma legitimidade aparente à desigualdade: a desigualdade será o produto do
talento e do trabalho do indivíduo. Elas ignoram as virtudes da solidariedade,
para só reconhecerem as de seu antípoda: a competição entre indivíduos e
empresas.
Liberdade e igualdade são valores
conflitantes por natureza, e só se tornariam complementares se se suprimisse a
propriedade burguesa, entendida como propriedade de uma minoria. A Revolução
Francesa, mesmo em seu momento de radicalismo “montanhês”, não vai até lá: ela
continua a proteger a propriedade sacralizada, que concebe como generalizável,
sob a forma de pequena propriedade agrícola e artesanal familiar. Ela não tem
os meios que lhe permitiriam conter o movimento do capitalismo que reconhecerá
a concentração progressiva e inevitável da propriedade moderna – a concentração
do capital.
A ideia do socialismo/comunismo,
entendida como etapa da civilização superior à ideia do capitalismo,
constitui-se precisamente na tomada gradual de consciência do que está
implicado na prática sincera da divisa “liberdade, igualdade, solidariedade”:
substituir a propriedade coletiva da minoria dos burgueses, pela propriedade
coletiva dos trabalhadores.
As diferenças... As semelhanças... |
As diferentes linhagens na formação do
pensamento e da ação socialistas
Confrontar as relações sociais do
capitalismo e a exploração dos trabalhadores a elas associados está na origem
dos movimentos de lutas populares modernas. Esses movimentos podem ter sido em
certos casos, na origem, espontâneos; em outros casos, foram impulsionados com
diferentes graus de sucesso por grupos que se dedicaram a mobilizar e a
organizar, para esse fim, os trabalhadores.
Esses movimentos em questão aparecem
muito cedo na nova Europa, entrada na revolução industrial, em particular na
Inglaterra, na França e na Bélgica, um pouco mais tarde na Alemanha e noutros
pontos na Europa, como nos EUA, na Nova Inglaterra. Desenrolam-se ao longo de
todo o século 19, para tomar vários rumos (qualificados de “revolucionários” e
de “reformistas” no século 20).
Outros movimentos surgem nas
sociedades do capitalismo periférico, quer dizer, em países integrados ao
sistema globalizado do capitalismo em muitas regiões submetidas às exigências
da acumulação, dos centros dominantes. Em seu desdobramento mundial, o
capitalismo histórico é polarizador, no sentido de que centros dominantes e
periféricos dominados são construídos simultaneamente numa relação de
assimetria sempre reproduzida e aprofundada pela lógica do sistema. Capitalismo
e imperialismo constituem o verso e o reverso indissociáveis da mesma
realidade.
Nessas condições, os movimentos em
luta contra o sistema instalado são largamente anti-imperialistas, no sentido
de que as forças sociais que estão na origem deles propõem-se como objetivo,
não construir uma sociedade pós-capitalista, mas, sim, “copiar para resgatar [m2]” as sociedades capitalistas
opulentas dos centros. Todavia, porque a burguesia desses países é modelada
desde o nascimento pela relação de dependência (e por isso qualificada como
“compradora” por natureza, para empregar o termo com que, na origem, foi
designada pelo comunismo chinês), ela não tem meios para reconstruir-se como
burguesia nacional capaz de uma autêntica revolução burguesa (“antifeudal”,
para empregar o termo em uso no comunismo da 3ª Internacional). Daí que o
combate contra o imperialismo, conduzido como grande aliança social
anti-imperialista e antifeudal dirigida por um partido que reivindica para ele
a perspectiva socialista/comunista, torne-se potencialmente anticapitalista.
Esses movimentos de emancipação
nacional e popular põem-se o objetivo de atravessar a etapa da revolução
anti-imperialista/antifeudal/popular (e não burguesa)/democrática. Inscrevem-se
então no movimento ao socialismo.
Temos, pois, de examinar de mais perto
duas famílias de movimentos ao socialismo: os que emergem e desenrolam-se nos
centros imperialistas; e os que se desenrolam nas periferias dominadas. Essas
duas famílias de movimentos jamais se beneficiam da garantia de que serão
vistas como famílias de movimentos ao socialismo, mas alguns movimentos podem,
potencialmente, vir a sê-lo. Quais são as condições e quais os critérios que
nos permitem classificar como tal alguns movimentos?
Uma linhagem do pensamento socialista (Ken Loach) |
Linhagens de movimentos ao socialismo nos centros do
sistema capitalista mundial
A tomada de consciência de que o
capitalismo deve ser abolido e substituído por uma organização socialista da
sociedade opera seus primeiros avanços na França, mais que noutros pontos da
Europa do século 19 ou nos EUA. O vetor dessa progressão é fornecido pelos
herdeiros do jacobinismo, atores maiores em 1848 depois na Comuna de 1871, cuja
teoria foi produzida por Blanqui, a qual se inspirou no sindicalismo
revolucionário francês. A cooperativa de produção e a autogestão fornecem o
quadro institucional e jurídico dessas primeiras formulações da socialização da
propriedade.
O “socialismo francês” – podemos
chamá-lo assim – distingue-se do outro cuja emergência será inspirada por Marx,
por seu caráter idealista. De fato, suas origens devem ser buscadas na herança
da Filosofia das Luzes do século 18, à qual dá a mais radical interpretação
social do sentido dos valores éticos de justiça, cidadania, igualdade,
liberdade, solidariedade. Mas persiste sem tomar conhecimento do exame
científico dos processos que regem a produção e a reprodução da acumulação –
que Marx será o primeiro e único a analisar para compreender as razões e a
natureza da aspiração ao socialismo.
Compreende-se assim que Marx, depois
os marxismos históricos da 2ª e da 3ª Internacionais, tenha sido críticos da
teoria e da prática desse “socialismo francês”. Crítica do blanquismo que
substitui a estratégia da luta de longa duração do proletariado que se organiza
ele próprio, pela estratégia do complô e do golpe de estado; crítica não menos
violenta da filosofia de Proudhon; crítica da concepção “elitista” da
organização do sindicalismo revolucionário. Adiante, voltaremos sobre essa
questão do “sindicalismo revolucionário” (à francesa), cujos traços estão ainda
vivos na França contemporânea, e que o distingue do “sindicalismo de massa” (ou
de “consenso”) de outros países europeus.
Marx ouviu bem outras linhagens, além
da francesa, que contribuíram para a formação do (ou dos) movimento ao
socialismo, efetivo ou ilusório, na Europa, portanto, da linhagem inglesa em
particular. Mas não as examinarei aqui.
Essas fontes convergirão para a
construção da Associação Internacional dos Trabalhadores (Association
Internationale des Travailleurs, AIT), a Primeira Internacional,
criada quando Marx ainda vivia e com sua ativa participação.
Sobre ela, Marx escreveu em 1866 (Résolution
du premier Congrès de l’Association Internationale des Travailleurs [Resolução
do 1º Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores]):
A obra da AIT é generalizar e unificar os movimentos espontâneos da classe
operária, mas não prescrever-lhe ou impor algum sistema doutrinal seja qual
for.
A AIT associa organizações – embriões
de partidos e de sindicatos, associações diversas – que reivindiquem para elas
“sistemas doutrinais” diferentes: o de Marx, mas também os de Bakunin e de
Proudhon. Marx combate, no seio da AIT, um combate ideológico e político contra
as doutrinas que para ele não têm fundamento científico e, por isso mesmo, são
fonte de ilusão e ineficácia para o movimento operário. Mas, na frase citada
acima, Marx expõe o princípio fundamental ao qual me alinho: aceitar,
reconhecer a diversidade, agir para reforçar a unidade nas lutas.
Ora, o que se desenvolverá na Europa
ao longo do último terço do século 19, depois da morte de Marx, mas com Engels
ainda vivo, é exatamente uma evolução dos movimentos europeus ao socialismo que
surgirão desse princípio.
A 2ª Internacional é marcada pelo
encontro de “partidos” que se haviam tornado – em termos relativos – “grandes
partidos operários”, praticamente um por país. Essa evolução será concomitante
à formação de grandes sindicatos, incomparavelmente maiores que os da Europa de
Marx. A cada país “seu” partido. São diferentes, de um país a outro. Mas todos
partilham o ideal de serem “o partido operário único” em seu país. A formação
deles, como tal, baseia-se de fato na fusão de movimentos que, na origem,
cumpriam diferentes obediências. O Partido Operário Social Democrata Alemão
associa lassalistas e marxistas; o Partido Socialista Francês, jaurès-sistas (herdeiros da tradição do
“socialismo francês"), guesdistas (marxistas) e blanquistas. O Partido
Britânico confunde-se com os sindicatos federados no Labour Party [Partido
Trabalhista]. Essa evolução, na época, pareceu positiva e sólida, a muitos. A
história mostrará que é mais frágil do que se supunha.
Mas “a unidade” formalmente realizada
do plano organizacional irá, dali em diante, ser concebida não como
complementar da diversidade – cuja existência é negada – mas como em conflito
com ela.
A unidade aparente do partido operário
parece consolidada pela emergência do sindicalismo, ele também unificado. O
“sindicalismo de massa” encontra via livre: todos os assalariados de um ramo de
atividades industriais e comerciais têm de ser sindicalizados (é o objetivo que
se autoimpõem) e tem de pertencer ao mesmo sindicato único. O modelo por
excelência desse sindicalismo será dado, um pouco mais tarde, pelos países
escandinavos. Mas a França continua a ser a exceção a essa tendência geral. Na
tradição do sindicalismo revolucionário, o Sindicato só recruta a vanguarda
politizada e dedica a adestrar as massas de assalariados, a organizar as lutas
delas, e/ou a apoiar os movimentos espontâneos. O Sindicato faz-se de
quase-partido, aliado ou concorrente dos partidos operários. O sindicalismo de
massa não favorece a politização de suas tropas, mas, ao contrário, facilita
sua obediência passiva, sua despolitização. O Sindicato de massas alinha-se
pelo menor denominador comum: a reivindicação estritamente econômica, vez ou
outra o apoio eleitoral ao seu aliado, o partido socialdemocrata.
A guerra de 1914 fará eclodir à luz do
dia a impotência dos partidos e sindicatos da 2ª Internacional. A “traição” de
Kautsky surpreendeu o próprio Lênin. Contudo, a deriva “revisionista” iniciada
por Bernstein – e o sucesso que teve – faria compreender que os partidos e
sindicatos não mais constituíam qualquer “movimento ao socialismo”. A razão
maior dessa deriva não estava porém na “traição dos chefes”, nem na corrupção
da magra faixa de aristocracia operária e do carreirismo dos burocratas da
organização. Sua origem estava num fato objetivo: a opulência da sociedade
fundada sobre a pilhagem imperialista. A deriva persistirá no período do
entre-guerras (1920-1939) e mesmo depois da segunda guerra mundial, durante os
“30 Gloriosos” (1945-1975). Os partidos e os sindicatos “reformistas” – que
renunciaram a repor em questão o capitalismo – manteriam a confiança da maioria
dos trabalhadores, relegando os comunistas leninistas ao status de minorias.
Claro que há nuanças em tudo isso, e o
autor dessas linhas crê ter consciência delas, desde o início. Em alguns
momentos do entre-guerras, ante a ameaça fascista e nazi, as lutas para
salvaguardar a democracia (burguesa) convergem com as lutas por melhores
condições para os trabalhadores. As Frentes Populares podem então fazer
renascer a esperança de que o movimento seja reconvertido ao socialismo. No
pós-guerra, a soma da colaboração de classes das burguesias do continente
europeu e a Alemanha nazista rampante, o papel decisivo das classes operárias
nos movimentos de resistência, o prestígio do Exército Vermelho que derrotou os
nazistas, tudo isso torna outra vez possível que renasça uma esperança de
movimento ao socialismo, sobretudo na França e na Itália. As conquistas das
classes operárias, na Grã-Bretanha e na Europa ocidental, mesmo nos EUA – a
seguridade social, as políticas de pleno emprego, o aumento dos salários
paralelo aos ganhos anuais da produtividade média do trabalho social – nada
disso pode ser visto, em nenhum caso, com desprezo. Tudo isso transformou – e
para melhor – as condições de dezenas de milhões de trabalhadores. Tudo isso
transformou – e para melhor – a figura das sociedades envolvidas.
Mas ao mesmo tempo é forçoso constatar
que esses ganhos dos trabalhadores foram possibilitados – pelo capital – pela
pilhagem imperialista reforçada. Durante todos os “30 Gloriosos”, a energia (o
petróleo) tornou-se praticamente gratuita.
Não há pois oposição séria, nos
centros imperialistas, que se oponha à vitória do capital, em contraofensiva, a
partir de 1975, pondo fim aos “30 Gloriosos” e às conquistas operárias e,
simultaneamente, à progressão da deriva dos partidos e sindicatos da ex-2ª
Internacional, alinhando-se pois no social-liberalismo. Chegamos assim ao fim
da progressão: à sociedade de “consenso”, entendido como a aceitação do
“capitalismo eterno”, da despolitização, da substituição do trabalhador-cidadão
pelo espectador e pelo consumidor.
Essa vitória do capital e o
desaparecimento nos centros imperialistas que tenham a ver, de qualquer
movimento ao socialismo, não foram contudo assim tão firmes como se acreditou
ou se fez-crer. A renovação das lutas contra as devastações sociais associadas
ao diktat do capital vitorioso anuncia a possibilidade de uma
renovação do movimento ao socialismo. Adiante, voltaremos a isso.
Lênin discursa em Moscou em 1915 |
As linhagens leninistas do movimento ao socialismo
A primeira revolução vitoriosa feita
em nome do socialismo é a da Rússia, país semiperiférico. E não por acaso. O
Partido Operário Social Democrata Russo, criado no fim do século 19, acredita
pertencer à família europeia da época e Kautsky é seu mentor. De fato, o POSDR
não pertence à Europa; e anuncia a transferência do centro de gravidade dos
movimentos ao socialismo, dos centros imperialistas para os centros
periféricos. Essa transferência vai modelar todo o século 20. Não é pois por
acaso que a tendência radical (os bolcheviques) vença na Rússia a tendência da
conciliação (os mencheviques) que ela empurra para a defensiva, quando, em
todos os países europeus, vê-se acontecer o inverso.
Não obstante, Lênin permanece ligado
aos conceitos da 2ª Internacional no que tenha a ver com a relação entre a
unidade necessária e a diversidade das correntes do movimento ao socialismo. E,
em duas questões importantes, até lhes acentua os traços. Primeiramente,
considera que só há lugar para um único partido da classe operária – “uma
classe/um partido”. Todos os outros partidos que a 3ª Internacional reconhecerá
não participam do movimento ao socialismo. São traidores; nada além disso; é
preciso ganhar as massas que eles enganam. Pode-se fazê-lo, ele acreditou, até
a derrota – a qual, contudo, já estava anunciada – da revolução alemã de
1918-1919. Em segundo lugar, não se admite a independência sindical. Porque os
sindicatos, diz ele, entregues a eles mesmos, não conseguem ultrapassar a
consciência reformista, da reivindicação. É preciso pois integrar os sindicatos
no sistema do movimento ao socialismo, submetendo-os ao status de correia de
transmissão da estratégia revolucionária do Partido revolucionário.
Contudo, a história real das lutas
sociais na própria Europa desmentiria a conceitualização da 2ª Internacional e
a conceitualização de Lênin, sobre o papel dos sindicatos. Os “grandes
sindicatos de massa” (como na Alemanha), baseados no consenso e aliados fiéis
dos “grandes partidos” da esquerda eleitoral (como o SPD na Alemanha)
não foram obstáculo ao desdobramento da ofensiva do capital dos monopólios
financeirizados. Ao contrário: ajudaram-nos a alcançar seus objetivos. Por
outro lado, o que resta da tradição do sindicalismo revolucionário na França
(chamado de “elitista” e de minoritário), porque deixa boa margem de autonomia
às iniciativas da base, mostra-se mais eficaz na resistência à ofensiva do
capital. O que o patronato francês deplora, enquanto não se cansa de elogiar o
“modelo alemão”.
O leninismo, assim definido, inspirará
as linhagens dominantes do movimento ao socialismo do século 20; enquanto as
linhagens europeias, como já observei acima, deslizarão cada vez mais
abertamente para posições oportunistas, no melhor dos casos só de
reivindicação, inscrevendo-se nas relações capitalistas fundamentais; e assim,
sairão do que se pode considerar como o movimento ao socialismo.
Lênin, pessoa, é responsável pelo
“leninismo” de seus sucessores, na União Soviética e no mundo? Sim e não. Sim,
no sentido da adesão de todos os sucessores, Stálin inclusive, aos dogmas do
leninismo sobre a gestão da relação unidade/diversidade. Não, com certeza, na
medida em que Lênin só viveu os primeiros anos da Revolução russa e não pode
ser responsabilizado pessoalmente pelo que veio depois.
Essa sequência tem, contudo, um
aspecto positivo que tem importância decisiva para o futuro do movimento
mundial ao socialismo. O leninismo rompe com o dogma eurocêntrico segundo o
qual a revolução socialista só estará na ordem do dia nos países capitalistas
avançados – de fato, imperialistas. Ele faz o ato de transferir o centro de
gravidade do combate pelo socialismo, dos centros para as periferias. [O
Congresso dos Povos do Leste, em] Baku (1920) anunciou exatamente isso, diante
de Lênin [m3]: que a 3ª
Internacional estaria presente no mundo inteiro, enquanto a 2ª só existia na
Europa.
No que tenha a ver com a sociedade
soviética, o movimento ao socialismo dirigido pelo bolchevismo leninista foi
forçado, pelas condições objetivas do país (o atraso; o caráter de capitalismo
semiperiférico), a reduzir a “construção do socialismo” (seu objetivo
proclamado) à construção de um socialismo de Estado.
Insisto aqui sobre a diferença entre
socialismo de estado e capitalismo de estado. O capitalismo de estado (como o
da França de De Gaulle) continua a ser um sistema a serviço do capital dos
monopólios (mesmo quando faz concessões importantes em benefício dos
trabalhadores); o socialismo de estado comporta dois traços de natureza muito
diferente:
(I)
a obrigação de mostrar-se como equivalente do poder dos trabalhadores,
pelo menos para o desdobramento de políticas sociais ousadas que lhe dão a
legitimidade que tem; e
(II)
a postura independente nas relações com o sistema capitalista mundial.
Esse socialismo de Estado, que define
o stalinismo e assim autoriza a classificar o stalinismo como um leninismo,
levava nele a possibilidade de evoluir gradualmente à esquerda, isso é, de dar
à socialização da gestão econômica formas progressivamente mais avançadas, mais
conformes aos valores do socialismo, pela participação efetiva dos
trabalhadores no exercício do poder. Mas levava nele igualmente o risco de
estagnação, para finalmente tombar à direita, por uma restauração capitalista.
O que se passou na Europa Oriental e na União Soviética com Ieltsin e
Gorbatchev. Trotski teria feito melhor? Duvido muito. E essa é a razão pela
qual a 4ª Internacional (de fato, uma 3ª Internacional bis) jamais foi mais que
a tribuna para oradores que reproduziram ad nauseam os princípios do
leninismo, sem jamais ir além deles.
Os sistemas stalinistas e
pós-stalinistas jamais conseguiram sequer começar a ultrapassar o estágio de
socialismo de Estado (estatização e planejamento). Mas o início dessa
ultrapassagem aconteceu, por obra da Iugoslávia de Tito. Não é acaso que essa
tentativa tenha sido posta em ostracismo por Moscou. Porque, no plano de suas
intervenções em escala mundial, o comunismo da 3ª Internacional (depois
do Kominform) foi gradualmente submetendo todas as estratégias dos
movimentos ao socialismo aos imperativos das táticas do Estado Soviético,
exclusivamente preocupado com as exigências da resistência contra o cerco
capitalista.
A teoria da “via não capitalista”
imposta aos parceiros dos países não alinhados na época de [Conferência de]
Bandung – sobretudo ao Egito do nasserismo anti-imperialista radicalizado, que
critiquei desde que foi formulada (só posso, aqui, remeter a meus outros
escritos sobre o assunto) – inscrevia-se nesse abandono da perspectiva
estratégica, em benefício unicamente de uma tática.
Caberia ao comunismo chinês e a Mao
conceber o movimento ao socialismo nas periferias do capitalismo mundial de
maneira diferente, não em ruptura contra a herança do leninismo, mas por
ultrapassá-la. Esse é o tema de uma outra linhagem do movimento ao socialismo,
que abordaremos na sequência.
Distribuição do capitalismo Mundial |
As linhagens do movimento ao socialismo nas periferias do
capitalismo mundial
Começo por considerar a experiência da
China.
A Comuna de Paris (março-maio 1871) e
a Revolução (digo deliberadamente “revolução”, não “revolta”) dos Taipings
(1851-1864) anunciam a entrada da humanidade na fase contemporânea de sua
história. Põem fim às ilusões sobre o caráter progressista do capitalismo e
anunciam o outono.
Duas revoluções gigantescas, pelo
alcance de longo prazo. Uma (a Comuna de Paris) desenrola-se num centro
capitalista desenvolvido; a segunda, à época, em termos de desenvolvimento
econômico, depois da Inglaterra; a outra (a revolução dos Taipings) irrompe
numa região que acabava apenas de ser integrada, na qualidade de periferia
dominada, no capitalismo imperialista globalizado.
A Revolução dos Taipings derruba a
autocracia imperial despótica da China dos Qing, abole o regime de exploração
dos camponeses pela classe dirigente desse modo social de produção que
classifiquei como “tributário” (que os comunistas chineses classificam como
“feudal” – e a questão semântica é secundária). Mas, ao mesmo tempo, a
Revolução dos Taipings recusa as formas do capitalismo infiltradas nas falhas
do sistema tributário; ela aboliu o comércio privado. E rejeita com o mesmo
vigor a dominação estrangeira pelo capital imperialista. E o fez muito cedo,
porque a partir das primeiras agressões do imperialismo – a guerra do ópio de
1840 – apenas dez anos antes, que se destinava a reduzir a China ao status de periferia dominada na
globalização capitalista imperialista. Antes do próprio tempo, os Taipings
aboliram a poligamia, o concubinato e a prostituição.
A Revolução dos Taipings – chamados
também de “os filhos do céu” – lança as bases do socialismo/etapa mais avançada
da civilização humana, ao formular a primeira estratégia revolucionária dos
povos das periferias do capitalismo imperialista global. A Revolução dos
Taipings é a ancestral da “revolução popular antifeudal – anti-imperialista”
(para usar a linguagem posterior dos comunistas chineses). Ela anuncia o
despertar dos povos do Sul (da Ásia, da África e da América Latina) que
modelará o século 20. Ela inspira Mao. Ela indica a via da revolução para todos
os povos das periferias do moderno sistema mundial capitalista, a via que lhe
permitirá engajar-se na longa transição socialista.
A Comuna de Paris não é capítulo da
história da França, nem os Taipings, da história da China. São duas revoluções
de alçada universal. A Comuna de Paris dá a substância ao internacionalismo
“proletário” da 1ª Internacional (a Associação Internacional dos
Trabalhadores), clama para que se substituam os nacionalismos chovinistas, o
cosmopolitismo do capital, pelas identidades comunitária do passado. O
universalismo do apelo dos Taipings encontra seu símbolo na figura do Cristo,
adoção simbólica, pode-se dizer “curiosa”, estranha à história chinesa. Como um
ser humano batido pelos adversários – o poder – poderia ser um “Deus”
pressuposto invencível? Para os Taipings, esse Cristo não é o mesmo do
cristianismo de submissão que os missionários tentam introduzir na China, mas é
caso exemplar de o que deve ser o combatente que luta pela libertação dos seres
humanos: corajoso até a morte e cuja morte faz prova de que o segredo do sucesso
é a solidariedade na luta.
A Comuna de Paris e a Revolução dos
Taipings demonstram que o capitalismo não é mais que um parêntese na história,
como já escrevi. Parêntese de curta duração. O capitalismo apenas cumpriu a função
– honrosa – de ter criado – por um breve tempo histórico – as condições que
tornam sua superação/abolição necessária para permitir a construção de um
estágio mais avançado da civilização humana. A Comuna de Paris e a Revolução
dos Taipings abrem por isso o capítulo da história contemporânea – que se vai
desenvolver no século 20 e entrará pelo século 21. Elas abrem capítulos
sucessivos das primaveras dos povos, paralelas ao outono do capitalismo.
Na outra extremidade do continente, a
China apresentava também caracteres especiais favoráveis a uma precoce
maturação política. A China havia começado muito cedo a ultrapassar o modo
social/econômico tributário (aqui numa forma sólida, “avançada”), antes mesmo
que a Europa. Estava cinco séculos à frente, na invenção de sua modernidade
(abandonar uma religião de salvação individual – o budismo –, em benefício de
uma espécie de laicidade a-religiosa avant la lettre, o desenvolvimento
ousado de relações comerciais centradas no mercado interno). Aqui, remeto o leitor
ao que já escrevi sobre essas questões. A China igualmente resistiu por muito
tempo ao assalto do capitalismo imperialista europeu (contrastando, nesse
ponto, com a Índia e o Império Otomano). Só em 1840 os canhões britânicos
forçaram as portas do Império celeste. A conjunção dessa agressão e dos avanços
prévios do capitalismo chinês teve aqui, portanto, prodigiosos efeitos
aceleradores: as desigualdades no acesso à terra (aos quais a lógica do sistema
tributário opunha resistência em declínio) foram aceleradas, e a “traição” da
classe dirigente (o Imperador e a aristocracia fundiária) impôs-se rapidamente
aos esforços anteriores de resistência “nacional”. Compreende-se então a
precocidade da Revolução dos Taipings e seu caráter “antifeudal/anti-imperialista”.
Duas grandes revoluções, portanto, mas
duas revoluções operando sobre dois terrenos complementares do capitalismo
imperialista globalizado – no centro e na periferia – nos dois “elos fracos”
desse sistema global.
Marx e o (ou os) marxismo histórico
estiveram à altura das exigências dessa realidade do capitalismo globalizado e,
assim, das exigências para formular estratégias eficazes para “mudar o mundo”,
quer dizer, abolir o capitalismo? Sim e não. Marx cedeu à tentação de ver na
expansão mundial do capitalismo uma força que devia homogeneizar as condições
econômicas e sociais, reduzindo os trabalhadores de todo o mundo ao mesmo
estatuto de assalariados explorados da mesma maneira e com a mesma intensidade
pelo capital. Sobre essa base justificava a colonização, que finalmente
implicaria progresso. Não faltam citações de escritos de Marx em apoio a essa
interpretação, pondo em destaque as “consequências” progressistas da
colonização, ainda que involuntárias, quer dizer, apesar de suas práticas odiosas
(que Marx denunciou), na Índia, na Argélia, na África do Sul, na Eritreia, como
na anexação do Texas e da Califórnia pelos “yankees” (“trabalhadores”,
em oposição aos mexicanos “preguiçosos”). Marx condena, nessa lógica, os
Taipings (sobre os quais, de fato, ignora absolutamente tudo!). E contudo,
Marx, se tratava de país do qual não ignorasse tudo, esboçava visão
completamente diferente da expansão capitalista. Marx não vê coisa alguma de
positivo na colonização da Irlanda pela Inglaterra; ao contrário, denuncia sem
reservas os efeitos destrutivos sobre a própria classe operária inglesa.
Tratando da Rússia que lhe era menos
desconhecida que a China – Marx tem a intuição de que se trata de um “elo
fraco” da cadeia capitalista mundial (para empregar o termo que Lênin usará), e
que uma revolução anticapitalista que abra a via de uma avançada socialista é
aí, por isso, possível. Há evidências disso na correspondência de Marx com Vera
Zassoulitch. Uma revolução de forte dimensão camponesa, fundada sobre a
resistência das comunidades camponesas (organizadas no “mir”), se elas
libertam-se da exploração feudal pela abolição real da servidão, mas mesmo
assim continuam ameaçadas de serem expropriadas em favor, simultaneamente, de
novos camponeses ricos e de novos latifundiários (os antigos “feudais”), parece
a Marx que é possível que ela abra e que seja até capaz de abrir uma via original
para a avançada socialista.
Lênin e, pois, o marxismo histórico
“leninista”, dá um grande passo adiante: Lênin denuncia “o imperialismo”. Pouco
importa que, provavelmente por respeito por Marx, ele o qualifique como um novo
estágio, recente, do capitalismo. E extrai a dupla consequência que se impõe: a
“revolução” não está mais na ordem do dia “no Ocidente”; ao contrário, a “revolução”
entra na ordem do dia no “Oriente”.
Lênin não extrai imediatamente essa
consequência: ele hesita. Espera sempre, dentre outras esperanças, que a
revolução acontecida no “elo fraco do sistema” (a Rússia) arrastará a revolução
dos trabalhadores nos centros desenvolvidos (a Alemanha é o primeiro lugar).
Ele continua a ler a primeira grande crise sistêmica do capitalismo (iniciada
nos anos 1870 e que levou à 1ª Guerra Mundial) como se fosse simultaneamente “a
última” do capitalismo moribundo. Mas afinal Lênin, sim, extrai a conclusão dos
fatos: ele se enganara, a revolução na Europa (na Alemanha) acabou; a (ou as)
revolução que desponta(m) aponta(m) para o leste, para o oriente (na China, no
Irã, no Império Otomano, nas colônias e semicolônias).
Lênin contudo não associa a nova
leitura que faz do marxismo, ao aprofundamento de uma revolução sobre o lugar
da Rússia no sistema capitalista mundial – lugar periférico (ou
semiperiférico). Vê nesse traço – a “Rússia semiasiática” – mais um obstáculo,
que uma vantagem. Lênin não vê tampouco que a questão camponesa é central na
nova “revolução” que chega à ordem do dia. Avalia, acertada ou erradamente, que
as possibilidades do “mir” foram aniquiladas pelo desenvolvimento do
capitalismo na Rússia (título de uma de suas obras da juventude). E extrai
disso a consequência: a revolução russa dará terra aos camponeses, mas para
fazer deles, proprietários.
Caberá pois a Mao, herdeiro dos
Taipings – extrair até o fundo as lições dessa história
Mao formula a estratégia e os
objetivos da longa transição ao socialismo iniciada numa revolução
anti-imperialista/“antifeudal” conduzida sob as condições que havia nas
sociedades periféricas do sistema mundial. A definição das tarefas dessa
revolução “antifeudal” manifesta o desprezo absoluto, por Mao, da ilusão
passadista sob qualquer de suas formas.
A revolução dos povos da periferia
inscreve-se necessariamente na perspectiva universalista do socialismo.
O comunismo chinês de Mao vai, pois,
pôr em ação uma estratégia coerente do movimento ao socialismo para a China,
cujas lições têm alcance importante para todos os povos das periferias (Ásia,
África, América Latina). Aqui se encontra a questão fundamental: a da relação
entre unidade e diversidade.
A revolução anti-imperialista/antifeudal/popular
e democrática (e não burguesa democrática) associa classes e forças sociais,
ideológicas e culturais diversas. Não pode ser uma “revolução do proletariado”.
Além disso, essa “revolução do proletariado” tem sido, até aqui, embrionária e
fraca em todas as sociedades das modernas periferias. Deve ser, sim, revolução
da maioria dos camponeses, oprimidos e explorados. Deve ser revolução dos
segmentos importantes das classes médias educadas que se manifestam na
intelligentsia revolucionária. Ela pode neutralizar (sem suprimir) a
intervenção política da burguesia local, que se dedica a frear o movimento ao
socialismo. Ela pode, mesmo, favorecer o deslizamento da burguesia em questão,
de seu comportamento comprador natural, para tomadas de posição nacionais.
Resta que as condições objetivas da
China só permitiam que se criasse um socialismo de estado naquela etapa. O que
foi feito. Mas esse socialismo de estado, no início à imagem do modelo
soviético, rapidamente distanciou-se dele, em pontos diversos e importantes.
Dentre outros, nas questões indissociáveis da gestão do mundo rural e da
democratização da socialização da vida econômica e política.
A manutenção e o reforço da unidade do
povo selada durante a guerra de libertação implicava, segundo Mao, uma gestão
das relações cidade-campo que dava pleno espaço à igualdade das condições dos
trabalhadores (“camponeses e operários”) e inicialmente rejeita a opção da
“acumulação primitiva socialista” que deixava sobre as costas do campesinato
todo o peso do desenvolvimento e da modernização industrial. Feita essa
escolha, as condições estavam reunidas para avançar numa democratização
possível da sociedade. A fórmula maoísta para isso foi a da “linha de massa”.
Envio o leitor, no que se relacione à evolução do sistema chinês do movimento
ao socialismo, avanços e recuos (pós-maoístas), alternativas de diferente
futuro que ela abre (transformação do socialismo de estado em capitalismo de
estado), a meus escritos recentes sobre a questão.
A lição importante que extraio dessa
leitura da evolução da China (de 1950
a hoje) é que até aqui o tratamento da relação entre
unidade (da nação, do povo) e a diversidade (dos elementos sociais que compõem
aquela nação) foi suficientemente correto, para dar ao sistema de poder de
Pequim uma legitimidade certa e assim garantir a estabilidade social. O sucesso
da emergência da China, sem par, quando se a compara com outros países do sul
contemporâneo (Índia e Brasil, por exemplo), é produto dessa melhor gestão (ou
menos má, pelo menos) da relação unidade/diversidade.
Outros exemplos de movimento ao
socialismo em países da periferia venceram com sucesso algumas belas etapas,
dentre outros motivos porque souberam gerir corretamente a relação
unidade/diversidade, e assim facilitaram a evolução da luta anti-imperialismo
de origem, em direção à implantação de políticas que, saídas do quadro das
lógicas do capitalismo, inscrevem-se na longa rota ao socialismo. Penso é claro
no Vietnã e em Cuba.
Pode-se também fazer referência aos
avanços obtidos na América do Sul ao longo das décadas passadas, na Venezuela,
no Brasil, na Bolívia e no Equador. A partir de revoltas potentes das classes
populares, esses movimentos venceram eleições (caso excepcional em nossa época)
e ultrapassaram uma primeira etapa. Mas, para ir além e tornarem-se autênticos
movimentos ao socialismo que se veja em fatos, e não só na manifestação dos que
o desejam, eles precisam ainda encontrar respostas mais eficazes ante o desafio
da contradição unidade/diversidade.
Mas não se podem ignorar os exemplos
de fracassos imensos de grandes movimentos populares que derrubaram ditaduras
sangrentas ao longo das últimas décadas, mas não conseguiram impor-se como
movimentos ao socialismo. Penso aqui nos movimentos que derrubaram as ditaduras
de Moussa Traoré no Mali; de Marcos nas Filipinas e de Suharto na Indonésia.
Nenhum desses movimentos conseguiu formular e impor um programa que se baseasse
na unidade na diversidade. Também essa gestão dessa contradição, inexistente
ou, mesmo, deplorável, caracteriza os movimentos no mundo árabe a partir de
2011 (Egito, Tunísia, Síria). Não há pois movimento ao socialismo em todos
esses países, apesar de que estejam ali reunidas as condições objetivas para
sua possível emergência.
Mais atrás no tempo, a época da
[Conferência de] Bandung (1955-1975/1980) é tempo de avanço vitorioso dos
movimentos de libertação nacional na Ásia e na África. Todos esses movimentos,
pelas razões de fundo que invoco em minha análise, trazem neles a possibilidade
de vir a ser movimentos ao socialismo. Mas o que houve na realidade de seu
desenvolvimento, de suas vitórias e de seus desdobramentos?
Essa resposta tem de ser nuançada.
Sim, em certos momentos do desdobramento de movimentos populares mais avançados
que outros, o movimento ao socialismo desenha-se como uma possibilidade. Foi o
caso, por exemplo no Iêmen do Sul “comunista” (de fato, nacional popular
avançado) ou, esboçado, no Sudão. Em bom número de experiências africanas, os
poderes de Estado assumidos pelos partidos que haviam organizado e dirigido a
libertação nacional se autoproclamaram socialistas, às vezes, até, marxistas
leninistas, muitas vezes reivindicando para eles uma tradição mais imaginária
que real e dita socialista. E essa postura não era demagógica; traduzia as
ambições de grupos dirigentes progressistas e de seus reais apoios populares.
Contudo, todos esses regimes
insistiram na “unidade do povo” (sob seus dirigentes!) e frequentemente negaram
a importância, i.e., a realidade da diversidade dos interesses sociais em
competição dentro da grande aliança nacional, ou diversidades de outros tipos
entre os componentes da nação (étnicas, religiosas, linguísticas). Essa gestão
medíocre, no mínimo, da contradição fundamental do movimento ao socialismo está
na origem da incapacidade de aqueles regimes seguirem em frente em ritmo
sustentado; da rápida erosão que sofreram, depois de alcançados os limites do
que podiam fazer, da legitimidade que tivesses e, assim, de seu deslizar de volta,
em direção à dobra gerada pelo imperialismo contemporâneo e seus associados, a
burguesia “compradorizada” ou, no pior dos casos, ao estado “comprador”.
Sem exame concreto, país a país, não é
possível dizer mais. Propus análises concretas dessa emergência ‘aleijada’ do
movimento ao socialismo para alguns países africanos, asiáticos e do mundo
árabe, com atenção especial, é claro, ao Egito nasserista.
Nessa história movimentada os partidos
que reivindicam para eles o marxismo-leninismo – quando havia – não conseguiram
empurrar a evolução a favor do movimento ao socialismo. Há várias razões para
essa fraqueza daqueles partidos; mas sem dúvida a adesão ao campo do comunismo
internacional dirigido por Moscou foi inúmeras vezes o fator decisivo para
aniquilar as esperanças depositadas neles. Seu alinhamento à tese da “via não
capitalista” pregada por Moscou é o exemplo mais dramático: esses partidos
tornar-se-iam “a ala esquerda” de um poder que deslizava para a direita. No
caso da Índia, o esfacelamento do antigo Partido Comunista da Índia, que se
alinhou, de facto, sob o Partido do
Congresso, e a Constituição do PC-Marxista (inspirado no maoísmo) não
produziram o salto qualitativo que teria sido necessário para fazer do segundo
a réplica do que o Partido Comunista Chinês havia sido. Razões numerosas e
diferentes explicam esse fracasso: o caráter sagrado do sistema de castas e
seus efeitos de alienação no desdobramento das lutas de classes; a diversidade
das nações que constituem a União Indiana. O PC-M que chegou ao governo (pela
via eleitoral) em Bengala ocidental e em Kerala tem certamente a seu favor a
realização de avanços sociais não desprezíveis. Mas não conseguiu inverter o
equilíbrio das forças na escala da União Indiana em favor de um movimento ao socialismo.
Foi assim gradualmente “absorvido” pelo sistema, incapaz de ir além dos limites
do que podia fazer nos dois estados em que operava. Uma radicalização do
comunismo maoísta indiano delineou-se então, com a constituição do PC-ML e a
guerra dos camponeses/dalits que ele iniciou. Mas é forçoso reconhecer
que fracassou, e, na sequência, o partido fragmentou-se. Mas, deve-se observar,
a mesma linha de ação deu alguns resultados no Nepal e desenhou, em linha
pontilhada, um movimento ao socialismo possível.
Chamei a família desses avanços do
“primeiro despertar do Sul” (as décadas de Bandung), de regimes
“nacionais-populares”, no seio dos quais o movimento ao socialismo só se
inscreveu em linhas pontilhadas, prejudicado em seu desenvolvimento possível
pela tendência, das classes políticas dirigentes, a manter o próprio poder
exclusivo, mesmo que ao preço de um retorno ao berço comprador.
A China caminha para uma nova forma de gestão do socialismo |
O desafio para o movimento ao
socialismo: A socialização da gestão de uma economia moderna
A questão central posta pelos avanços
revolucionários e/ou reformistas autênticos que reivindicam para si socialismo,
comunismo, marxismo, marxismo-leninismo, maoísmo foi e é a da socialização da
gestão de uma economia “moderna”, cujas bases foram construídas pelo
desenvolvimento do capitalismo histórico seja nos centros dominantes seja nas
periferias dominadas. Nos centros, a deriva do socialismo reformista e em
seguida o abandono da referência a Marx levaram logicamente a renunciar à
pergunta pelo “pós-capitalismo”. Nas periferias, ao contrário, que foram teatro
de revoluções conduzida na perspectiva de construir o socialismo, a questão da
socialização da gestão da vida econômica permaneceu no coração dos debates e
dos conflitos que se travaram dentro das vanguardas revolucionárias e dos
poderes do estado.
As condições objetivas específicas da
revolução nas periferias do capitalismo globalizado pesaram muitíssimo, é
claro, na balança: era preciso “resgatar” (desenvolver as forças produtivas e,
para fazê-lo, era preciso “copiar” e reproduzir formas capitalistas de
organização da produção) e “fazer diferente” (construir o socialismo). A
resposta a essa questão foi dada pela construção de “socialismos de estado” ou
de “capitalismos de Estado”, com fronteiras sempre fluidas e moventes entre as
duas modalidades. Resta disso que nos desenvolvimentos teóricos, tanto quanto
nos programas dos partidos que se declaram socialistas, os avanços na
socialização da gestão da economia e os avanços na democratização da gestão
política da sociedade sempre foram pensados como indissociáveis.
A afirmação desse princípio central na
formulação do projeto do socialismo/comunismo do futuro deve ser lembrada, uma
vez que precisamente os socialismos/capitalismo de estado das experiências
soviética, chinesa e outras dissociaram enormemente, em sua prática, essas duas
dimensões do mesmo desafio.
No fim do capitalismo renascem os povos |
Outono do capitalismo, primavera dos
povos?
Embora suscetíveis de constituir o
verso e o reverso da mesma moeda, o outono do capitalismo e a primavera dos
povos são diferentes.
A emergência da nova forma do
capitalismo – a do capitalismo dos monopólios – a partir do fim do século 19
inicia o fim desse sistema – desse parêntese na história, como já disse. O
“turno” que o capitalismo tinha a cumprir, período curto (só o século 19) –
durante o qual cumpriu funções progressistas – acabou. Entendo por isso que,
se, no século 19, as dimensões “criativas” da acumulação capitalista (a
aceleração fantástica do progresso tecnológico, em comparação a épocas
anteriores de toda a história da humanidade; a emancipação do indivíduo – ainda
que reduzida a emancipação só dos privilegiados, limitada e deformada para os
demais) apoiavam-se sobre as dimensões negativas daquela mesma acumulação (em
primeiro lugar os efeitos de destruição de sociedades periféricas integradas na
expansão imperialista indissociável do capitalismo histórico, com a emergência
do capitalismo dos monopólios a relação entre essas duas dimensões foi
invertida, em detrimento das primeiras).
É nesse quadro da perspectiva da longa
duração que analisei as duas longas crises sistemáticas do capitalismo
“obsoleto” (“senil”): a primeira longa crise que desenvolve de 1871-73 até
1945-55; a segunda, sempre em andamento, inicia-se um século mais tarde, a
partir de 1971-73. Nessa análise, destaco o meio central que o capital
mobilizou para superar sua crise permanente: a construção e o crescimento
vertiginoso de um terceiro setor (para complementar os dois setores – de
produção de bens de produção e de produção de bens de consumo dos quais Marx
tratou –, de absorção da mais-valia associada à renda dos monopólios
simultaneamente renda imperialista (remeto o leitor àqueles textos).
Lênin começou a tomada em consideração
dessa mudança qualitativa da natureza do capitalismo. Pecou apenas por
optimismo, ao crer que essa primeira crise sistemática do capitalismo seria a
última. Subestimou os efeitos perversos e corruptores do desenvolvimento
imperialista nas sociedades do centro do sistema. Mao, extraindo as
consequências da exata avaliação desses efeitos, optou pela paciência: a rota
do socialismo será necessariamente muito longa e semeada de percalços.
O século 20 foi, sim, um tempo do
“despertar do Sul”, mais exatamente dos povos, das nações e dos estados das
periferias do sistema: falava da Rússia (“semiperiferia”) para englobar China,
Ásia, África e América Latina. O século 20 é, nesse sentido, tempo da primeira
primavera desses povos. Listei uma série de eventos maiores que, desde o início
do século, anunciam essas primaveras – as revoluções russas (1905-1917),
chinesas (1911 e a continuação), mexicana (1910-20) e outras. Substituí nesse
quadro o período de Bandung pela Ásia e a África contemporâneas (1955-1980),
que coroa, mas simultaneamente conclui esse grande momento da história
universal. De certa maneira portanto pode-se ler essa resposta dos povos
dominados pelo desenvolvimento imperialista como o prosseguimento da tarefa
iniciada pela revolução dos Taipings e sua generalização para os três continentes.
Em contraste, a Comuna de Paris não
teve sucessores no Ocidente desenvolvido. Apesar de suas corajosas tentativas,
os comunistas da 3ª Internacional não conseguiram construir um bloco histórico
alternativo ao bloco alinhado sobre a direção da sociedade pelos monopólios
imperialistas. Aqui jaz o verdadeiro drama do século 20, não nas insuficiências
do despertar das periferias, mas no nenhum despertar nos centros. As
insuficiências – depois derivas fatais – das nações das periferias teriam sido
superadas provavelmente, se os povos dos centros tivessem rompido com seu
alinhamento pró-imperialista.
As primaveras dos povos que se
desenrolaram durante o século 20 esgotaram seus efeitos. De deriva em deriva,
terminaram por afundar-se e cair à direita face à contraofensiva do capital.
Esse afundamento exprime-se pela série de contrarrevoluções triunfantes dos
anos 1990. As possibilidades que existiam seja de evolução à esquerda desses
sistemas inflados, em crise; ou de sua estabilização em trono de fórmulas de
centro-esquerda que preservam o futuro, foram quebradas pela tríplice conjunção
em que se associam:
(I)
insuficiências
do protesto popular, limitado à reivindicação da democracia dissociada da questão
social e da geopolítica;
(II)
as
respostas dos poderes, exclusivamente repressivas;
(III)
as
intervenção do Ocidente imperialista. Qualificar nessas condições as
“revoluções” da União Soviética e dos países do leste europeu (1989-91) de
“primavera dos povos” é farsa. Construídos sobre ilusões gigantescas sobre a
realidade capitalista, esses movimento deram em nada que se possa considerar
positivo. Os povos envolvidos ainda esperam sua primavera, que talvez venha.
Ao longo de todo o século 20, e até
hoje, o outono do capitalismo e a primavera dos povos (eles próprios já
reduzidos aos povos das periferias) foram dissociados. O outono do capitalismo,
assim, constituiu o elemento motor principal da evolução. Pôs a evolução nos
trilhos rumo à barbárie sempre crescente, única resposta lógica que está em
acordo com as exigências da manutenção da dominação do capital. Daí a barbárie
imperialista redobrada pela entrada em ação do controle militar sobre o planeta
pelas forças armadas dos EUA e de seus aliados subalternos europeus (a OTAN),
em benefício exclusivo dos monopólios do imperialismo coletivo da ‘tríade’
(EUA, Europa, Japão). Mas, também em resposta a essa trinca, o deslizamento das
respostas de suas vítimas – os povos do Sul –, na direção de ilusões
passadistas, que também são portadoras de barbárie.
Esse risco – que é a realidade dominante
hoje – permanecerá total, dado que os avanços em direção à conjunção entre o
outono do capitalismo e a primavera dos povos – de todos os povos, das
periferias, mas também dos centros – não foram suficientemente decisivos para
abrir a perspectiva socialista universalista. Será então o século 21 um ‘remake’
do século 20, associando tentativas de libertação dos povos do Sul, à
manutenção do alinhamento pró-imperialista dos povos do Norte?
A unidade na diversidade |
Construir a unidade
no reconhecimento da diversidade
Não há avançada revolucionária
possível do movimento ao socialismo, sem que se construa a unidade estratégica
de ação que associe a massa crítica necessária de diferentes forças sociais em
conflito com o sistema do capitalismo dominante. Ainda falta identificar a natureza
da diversidade social de que aqui se trata. As diferenças que contam e as que
contam menos. As fontes e as formas da diversidade – elas próprias inumeráveis.
Descrição dessas formas cobriria páginas e páginas de quadros estatísticos: há
homens e mulheres; jovens e idosos; nacionais e imigrados; em muitos países,
seres humanos com uma ou outra cor de pele, que professam uma ou outra
religião, que falam uma ou outra língua; os proprietários e os não
proprietários; trabalhadores qualificados e os demais, etc..
Uma análise de classe não
simplificadora permite ir mais longe na análise dos problemas. Há, claro,
fundamentalmente, no capitalismo, o contraste entre os burgueses (proprietários
dos meios de produção e/ou gestionários dessa propriedade) e os proletários
(que nada têm para vender, além da própria força de trabalho). Mas esse
contraste expressa-se mediante uma grande diversidade de situações sociais
concretas. Há assalariados (que vendem força de trabalho) que se beneficiam de
certo grau de estabilidade que lhes dá sua qualificação privilegiada; e há os
que são condenados à eterna instabilidade. Há os capitalistas – proprietários –
empresários, pequenos, médios ou grandes; e há os gerentes do grande capital
dos monopólios financeirizados, etc..
Essa grande diferenciação das classes
fundamentais também é extremamente variada, conforme a sociedade considerada
seja de país capitalista/imperialista dominante, ou de país do capitalismo
periférico dominado. A situação social de um proletário num país opulento é
diferente da de seu alter ego de uma sociedade pobre. A massa rural e
camponesa, reduzida hoje à insignificância numérica nos centros, permanece
fortemente presente nas periferias, etc..
Há certamente uma pesada tendência
lógica da acumulação do capital (concentração da propriedade e/ou centralização
do controle) a simplificar a estruturação social, mas algumas ideias
concernentes à simplificação da estruturação social que o capitalismo
produziria são falsas:
(I)
a
ideia de que o contraste burguesia/proletariado aniquilaria a presença de
outras forças sociais que se expressam no campo político;
(II)
a
ideia de que a burguesia por um lado, e o proletariado por outro lado,
converter-se-iam em blocos homogêneos pouco diferenciados;
(III)
a
ideia de que a expansão globalizada do capitalismo aproximaria as formas das
estruturações sociais avançadas, das forma dos países atrasados que sejam
engajados no caminho do “resgate” (como se diz: “em vias de desenvolvimento”).
Tomemos o exemplo da expansão do
capitalismo industrial na Europa do século 19. Em nenhum país desse continente
a burguesia, classe dominante nova, eliminou as classes de aristocratas do
Antigo Regime. Por toda parte a burguesia aprovou compromissos políticos com
aqueles aristocratas, que conservaram o controle de segmentos importantes do
poder (como o corpo de oficiais militares). E se a guerra de 1914 é guerra
interimperialistas, ela é também guerra entre as cabeças coroadas de toda a
Europa (a França é a única República em guerra, à espera dos EUA).
A burguesia não é classe que reúna
todos os proprietários formais dos meios de produção. Essa propriedade pode,
com a invenção da sociedade por ações, ser disseminada, mesmo que o controle
sobre essa propriedade não o seja. A burguesia não é classe homogênea
simplesmente organizada sobre o modelo da pirâmide da riqueza de pequenos,
médios e grandes capitalistas. Ela integra camadas médias (pelo volume de
rendas, formalmente, rendas do trabalho assalariado) associadas à gestão
econômica e política (burguesa) da sociedade. A burguesia é também diferenciada
segundo se situe em setores da atividade e/ou regiões em crescimento ou em
declínio, etc..
A burguesia nas periferias não é
simplesmente nascida tardiamente, mas em via de expansão sobre o modelo da burguesia
dos centros. Tampouco é partilhada em dois segmentos, um comprador (o
mau burguês), o outro nacional (os bons burgueses). Emergente no quadro da
expansão mundial do imperialismo, a burguesia em seu conjunto é comprador por
natureza. Mas ela pode adotar o comportamento de uma burguesia nacional, se as
circunstâncias lhe oferecem margem possível de manobra. Insisti na importância
dessa leitura maoísta sobre a natureza das burguesias periféricas.
A estrutura das classes populares nos
países periféricos é também muito diferente da que se vê nos centros. Os
campesinatos do sul são eles também diferenciados de vários modos, de um país a
outro, com estruturações herdadas em parte de diferentes passados
pré-capitalistas os quais, por sua vez, foram remodelados pelos específicos
modos da integração/submissão ao capitalismo moderno. Os processos de
pauperização produzidos pela acumulação capitalista mundial criaram aqui, nas
periferias, uma massa crescente de precários que só sobrevivem por atividades
do “informal”.
Pesadas tendências operaram ao longo
das três últimas décadas no quadro do desenvolvimento do capitalismo dos
monopólios globalizados, financeirizados e generalizados (remeto o leitor aos
meus escritos em que elaboro sobre essa transformação qualitativa do
capitalismo) – sob o nome, enganador, de “neoliberalismo”. Essas pesadas
tendências produziram:
(I)
uma
proletarização generalizada (a população de trabalhadores, pelo menos nos
centros, passou a ser constituída, em mais de 80%, de assalariados vendedores
de força de trabalho) mas extremamente segmentada;
(II)
por
toda parte, nos centros e nas periferias, a implantação de formas de submissão
de atividades aparentemente independentes dos monopólios (em particular dos
campesinatos das periferias, mas também de suas indústrias) e da redução desses
trabalhadores ao estatuto de subcontratados (de fato ou de direito), o que
permite a formação de uma fração crescente da mais valia da renda dos
monopólios;
(III)
a
substituição de formas históricas de organização do capitalismo encarnado nas
burguesias concretas, por uma nova forma de dominação do capital abstrato (“encarnado
pelo mercado e, em particular, o “mercado financeiro”). A burguesia é, assim,
classe constituída de assalariados – muito bem remunerados! – empregados pela
oligarquia financeira (os 1% de Occupy Wall Street e os Indignados da
Espanha).
O desdobramento dessa nova estrutura
do capitalismo dos monopólios generalizados não produziu (nem pode produzir)
estabilização social relativa, mas, ao contrário, uma degradação social
portadora das revoltas populares. Ela não produziu (nem pode produzir) qualquer
estabilização relativa das novas relações centros/periferias, mas, ao
contrário, produziu o agravamento das contradições e dos conflitos entre eles.
Os centros imperialistas históricos (a trinca EUA/Europa/Japão) não podem mais
manter sua dominação, senão mediante o controle limitar do planeta. Em face
desse desdobramento geoestratégico de Washington e de seus aliados subalternos,
alguns estados e povos do Sul (os “emergentes”) resistem pela afirmação – em
graus diversos – de “projetos soberanos”, fonte de conflitos crescentes
Norte-Sul. Em outros países da periferia, o sistema de dominação do capitalismo
dos monopólios globalizados opera mediante sua aliança com os poderes do estado
comprador sem legitimidade nacional e popular. É um segundo motivo das
revoltas dos povos.
O capitalismo dos monopólios
generalizados implode ante nossos olhos nas formas variadas lembradas aqui.
Decorre daí que um período novo de situações revolucionárias abre-se frente a
nós. Como agir, nessas circunstâncias, para fazer do possível, uma realidade:
como obter avanços do movimento ao socialismo? A resposta exige que retomemos a
reflexão sobre a relação unidade estratégica de ação/diversidade dos elementos
sociais e políticos que compõem o movimento dos povos.
No passado, as situações
revolucionárias permitiram avanços revolucionários (rumo ao socialismo) cada
vez que se deram respostas concretas a essa contradição dialética unidade/diversidade.
Falo aqui de contradição dialética.
Porque, de fato, a solução dela não passa pela negação de um dos termos, mas
pela transformação do contraste entre ambas, em complementaridade ativa. A
visão metafísica da contradição é incapaz de compreender a natureza desse
desafio e o meio de responder a ele. Ora, essa visão foi muitas vezes, e ainda
é, dominante, porque suas respostas são fáceis e, na aparência imediata, podem
parecer as únicas possíveis.
Por exemplo: afirma-se a absoluta
prioridade de “a unidade” (do povo) e negam-se os efeitos reais da diversidade
que torna impossível ou nefasta a operação daquela “unidade”. Ou, ao contrário,
nega-se a necessidade incontornável da unidade (a identificação de objetivos
estratégicos de etapas comuns e da organização de frente unida que assume a
responsabilidade de realizar aqueles objetivos) e afirma-se que as diversas
lutas (das frações diversas do povo em revolta) produzirão, por elas mesmas, a
solução do problema. Elude-se assim a questão (incontornável) do poder. Essa
resposta metafísica à contradição ainda domina a cena contemporânea por toda
parte, no Norte e ao Sul. Ela reduz os movimentos em luta a manter-se em
posições defensivas, deixando a iniciativa ao adversário – o capital dos monopólios
e seus instrumentos políticos de Estado no Norte e no Sul. Essa é pois
estratégia impotente para fazer avançar o movimento ao socialismo.
Como já disse em escritos anteriores,
respostas dialéticas foram algumas vezes postas em operação, com sucesso. Na
Rússia em 1917, Lênin colheu o momento de dar toda sua potência à unidade,
propondo objetivos estratégicos comuns, aos componentes diversos do povo em
revolta: paz e terra. A terra para os camponeses soldados funda uma aliança que
permite ao novo Partido bolchevique sair de seu isolamento. Porque esse partido
jamais tivera real penetração no campesinato. Na China, Mao refunda desde os
anos 1930 o Partido Comunista sobre a base de uma aliança sólida e durável com
o campesinato pobre e explorado. É o segredo do triunfo de 1949. O que adveio
na sequência, sobre a gestão da relação unidade/diversidade (quer dizer, a
questão das alianças constitutivas do bloco histórico do movimento ao
socialismo) é outro problema, do qual não trato aqui.
Nos dois casos, a resposta ao desafio
foi concreta. Partiu de uma análise concreta, que se revelou justa, do que as
diversidades são, quais são decisivas (no sentido de que levá-las em contra
permite fazer funcionar a alavanca do avanço revolucionário) e quais não são
decisivas. Não há receita geral útil nesse domínio, que possa ser usada em
substituição à análise concreta. As diversidades decisivas hoje não podem ser
as mesmas na França e nos EUA, na China e na Índia, no Congo e no Peru.
Tudo que se possa dizer de “geral” aqui,
creio já o ter formulado nas minhas proposições sobre a “audácia” necessária
que, só ela, pode permitir às esquerdas radicais de nossa época que elas
responder corretamente ao desafio. Remeto o leitor àqueles escritos. Resumo
aqui, nos parágrafos a seguir o sentido daquelas proposições:
(I)
Nos
centros imperialistas, a esquerda radical deve opor-se á expropriação pura e
simples dos monopólios, pela nacionalização/estatização (primeira etapa),
acompanhada de planos sobre a organização de avanços na direção da socialização
democrática progressiva da gestão daqueles planos. Trata-se então de
identificar as diversidades decisivas que devem ser associadas pela construção
de uma unidade de ação fundada na identificação de objetivos comuns de cada
etapa.
(II)
Nas
periferias, a esquerda radical deve ser capaz de identificar os componentes
diversas de um bloco social hegemônico alternativo àquele sobre o qual se apoia
o bloco comprador no poder. Só poderá chegar a esse resultado se se
torna capaz de identificar: (1) objetivos
estratégicos comuns de cada etapa aos (2)
segmentos decisivos do bloco anti-comprador.
Só quando essas condições forem
satisfeitas, poder-se-á ver o movimento ao socialismo afirmar-se por avanços na
transformação real, mais progressiva, das sociedades contemporâneas.
O comunismo, etapa
superior da civilização humana
A ação libertadora revolucionária |
Para uma segunda onda da emergência dos estados, das nações e dos povos
das periferias.
O movimento ao socialismo tem a
ambição de refundar a sociedade humana sobre bases diferentes das que
caracterizam fundamentalmente o capitalismo. Esse futuro é concebido como a
realização de uma etapa superior da civilização humana universal, não como
modelo simplesmente “justo”, a saber, mais “eficaz”, da civilização que nós
conhecemos (a civilização “moderna” do capitalismo).
Ora, preparar o futuro, mesmo
distante, começa hoje. É bom saber o que se quer. Que modelo de sociedade?
Fundada sobre quais princípios: a concorrência destruidora entre os indivíduos,
ou a afirmação das vantagens da solidariedade?; a liberdade que dá legitimidade
à desigualdade, ou a liberdade associada à igualdade?; a exploração de recursos
do planeta sem qualquer preocupação com o futuro, ou a plena atenção à medida
exata das exigências da reprodução da condições de vida do planeta?
O socialismo será democrático ou não
será socialismo. Temos de compreender a democratização da sociedade como um
processo sem fim, que não podemos reduzir à fórmula da democracia eleitoral
pluripartidária representativa. Os veículos da imprensa-empresa ocidental
dominante propõem para os países o Sul “a democracia em primeiro lugar”,
entendendo por essa expressão a realização de eleições pluripartidárias
imediatas; e um grande número de organizações da sociedade civil no Sul
reuniram-se em torno dessa proposição. Contudo, repetidas experiências mostram
que se trata, aí, de miserável farsa que os imperialistas e seus aliados locais
reacionários sabem manipular a favor deles, sem dificuldade. Nos centros, a
democracia eleitoral representativa sempre foi meio eficaz para manter o
fracasso das ameaças de radicalização das lutas sociais. As lutas de classes,
que se desenvolvem sobre o fundo de extrema diversidade das condições sociais
de segmentação das classes trabalhadoras, articuladas nessas condições de
regramento dos conflitos políticos pela eleição, sempre foram eficazes para
manter em estado de fracasso a radicalização dos movimentos populares.
O eleitoralismo (o cretinismo
parlamentar, dizia Lênin) reforça os efeitos negativos da segmentação das
classes populares e aniquila a eficácia das estratégias de construção da sua
unidade. A opinião pública ocidental não vê, infelizmente, alternativa para
esse sistema de gestão da política, ao qual até os comunistas se alinharam.
Mas, com a constituição do capitalismo dos monopólios generalizados, a farsa
eleitoral explode à luz do dia, apagando o velho contraste direita/esquerda.
O movimento ao socialismo tem o dever
de abrir campos novos à invenção de procedimentos mais avançados, de gestão da democracia
política.
O socialismo será verde (“solar”) ou
não será socialismo, escreveu Elmar Altvater. Acrescento que o capitalismo
verde é sempre utopia, impossível, porque o respeito às exigências de uma
ecologia política digna do nome é incompatível com o respeito às leis
fundamentais que regem a acumulação capitalista. Também aqui, o movimento ao
socialismo tem o dever de abrir novos campos à invenção de procedimentos de
gestão econômica que integrem o longo prazo, que associam a socialização democrática
das relações sociais às exigências da reprodução dos espaços de vida sobre o
planeta, a qual, por sua vez, condiciona a transmissão, de uma geração a outra,
da herança desses bens comuns.
O movimento ao socialismo não pode
sequer limitar-se, nas respostas a essas questões, a expressão de votos
piedosos, propor um remake dos socialismos utópicos do século 19. Para
evita-lo, deve responder às seguintes questões:
(I)
quais
são hoje nossos conhecimentos científicos em matéria de antropologia e
sociologia que repõem em questão as “utopias” formuladas no passado?
(II)
quais
são nossos conhecimentos científicos novos que tratam das condições de reprodução
da vida sobre o planeta?
(III)
pode-se
integrar esses conhecimentos num pensamento marxista aberto?
Nesse quadro geral, deve-se garantir
todo o espaço necessário aos projetos da emergência dos estados e povos da
Ásia, da África e da América Latina. A primeira onda dessas emergências, que se
desdobrou com sucesso entre os anos 1950 e 1980, já passou. A página virada permitiu
às potências imperialistas retomar a iniciativa e impor o “diktat” (não
o, como se diz, pretenso “consenso”) de Washington. Por sua vez, esse projeto
de globalização selvagem está em vias de implodir, oferecendo aos povos das
periferias a possibilidade de engajar-se numa segunda onda de libertação e de
progresso. Quais podem ser os objetivos dessa segunda onda? Diferentes visões
políticas e culturais (reacionárias, ilusórias, progressistas) enfrentam-se
aqui; e é preciso, pois, estudar suas possibilidades.
Sair do quadro da mundialização presente
O movimento ao socialismo não conta
com nenhum espaço que permita que comece a desdobrar-se sobre o terreno da
realidade no quando do modelo da globalização presente. Deve, pois, escrever em
seu programa objetivos estratégicos imediatos e mais distantes, que lhe
permitam sair desse quadro. Pelo padrão, não se sairá do modelo de “lumpen
desenvolvimento”, fundado sobre o destrato e a pilhagem dos recursos, produtor
de uma pauperização insondável, que é a de todos os países que aceitam a
submissão às exigências do desdobramento da globalização liberal.
O problema é mundial; a solução deve
ser mundial. A primeira proposição é verdadeira; a segunda não é conclusão
necessária. Uma transformação da globalização por cima, pelas negociações
internacionais, no quadro da ONU, por exemplo, não tem absolutamente nenhuma
chance de levar a qualquer progresso. Prova disso é a longa série de
conferências internacionais da ONU das quais jamais saiu ideia alguma (o que
sempre seria previsível). O sistema mundial jamais foi transformado de cima
para baixo, mas sempre a começar por baixo, quer dizer, a partir de mudanças da
linha de desenvolvimento possibilitadas, de início, nas escalas locais (quer
dizer, nacionais, no quadro dos estados/nações que são locus de
lutas políticas decisivas). Agora se podem reunir as condições para
eventualmente se abrirem as possibilidades de transformação das relações
globalizadas. É preciso sempre desconstruir, para poder reconstruir de outro
modo. O exemplo da Europa aí está, como prova. A construção europeia jamais
poderá ser transformada de cima para baixo, por Bruxelas. Só a desobediência de
um estado europeu, seguido logo por outro, permitiria considerar alguma real
possibilidade de reconstruir alguma “outra Europa”.
A estratégia de iniciar as
transformações pela ação nos planos nacionais pode ser expressa pela seguinte
frase: recusar o ajuste unilateral às exigências do desenvolvimento da
globalização presente; substituir esse ajuste unilateral pela prioridade para
implantação de “projetos soberanos”, forçar o sistema mundial a ajustar-se,
ele, às exigências do desenvolvimento desses projetos nacionais.
Soberania alimentar e agricultura familiar |
Mas o que entendemos por “projetos soberanos”?
Pôr em ação projetos soberanos abre, sob
determinadas condições, um espaço para avanços do movimento ao socialismo.
Claro: é preciso discutir a própria
noção de “projeto soberano”. Dado o nível de penetração dos investimentos
transnacionais em todos os domínios e em todos os países, não há como fugir da
pergunta: a que tipo de soberania nos referimos?
O conflito mundial pelo acesso aos
recursos naturais é um dos mais determinantes da dinâmica do capitalismo
contemporâneo. Trata-se de uma questão particular, cujo exame não de ser
misturado a outras considerações gerais. A dependência dos EUA para inúmeros
recursos e a demanda crescente da China são desafios para a América do Sul,
África e Oriente Médio, particularmente bem dotados em recurso e modelados pela
história da pilhagem desses recursos. É possível desenvolver políticas
nacionais e regionais nesses domínios que inaugurem uma gestão planetária
racional e equitativa, da qual todos os povos seriam beneficiários? É possível
desenvolver relações novas entre a China e os países do Sul dos quais se fala
aqui, que se inscrevam nessa perspectiva? Associando o acesso da China àqueles
recursos ao apoio à industrialização de cada país (o que os supostos “doadores”
da OCDE recusam)?
O quadro de desenvolvimento de um
projeto soberano eficaz não se reduz ao campo da ação internacional. Uma
política nacional independente permanece frágil e vulnerável se não receber
apoio nacional e popular real, o que exige que se assente sobre políticas
econômicas e sociais que permitam que as classes populares sejam as
beneficiárias do “desenvolvimento”. Esse é o preço da estabilidade social,
condição do sucesso do projeto soberano face às políticas de desestabilização
dos imperialistas. Será preciso pois examinar a natureza das relações entre os
diferentes projetos soberanos existentes ou possíveis e as bases sociais do
sistema de poder: projeto nacional, democrático e popular, ou projeto (ilusório?)
de capitalismo nacional?
Pode-se agora, então, avaliar os
“projetos soberanos” que estão sendo postos em prática hoje pelos países
“emergentes”:
(I)
A
China é o único país verdadeiramente engajado na via de um projeto soberano; só
há ela. Esse projeto é coerente: articula a implementação planejada de um
sistema industrial moderno e completo, autocentrado, além de simultaneamente
agressivamente aberto para a exportação, a um modo de desenvolvimento da
agricultura fundado sobre a modernização da pequena exploração sem pequena
propriedade (garantindo assim o acesso de todos à terra). Mas qual é a natureza
do objetivo de soberania buscada? Trata-se de uma soberania burguesa nacional
(cujo sucesso permanece fundado, na minha opinião, em ilusões), ou de um
projeto de soberania nacional/popular? Trata-se de um capitalismo de Estado
fundado sobre a ilusão de um papel dirigente de uma nova burguesia nacional (de
Estado, em parte)? Ou de um capitalismo de Estado com dimensão social,
evoluindo para um “socialismo de Estado” possível, etapa, ele também, na longa
rota até o socialismo? Os fatos ainda não responderam essa pergunta. Remeto o
leitor aos meus escritos sobre as alternativas de futuro que se oferecem à
China contemporânea.
(II)
A
Rússia está de volta à cena política internacional, onde se afirma como o
adversário de Washington. Está engajada na via de um projeto soberano? Sim, talvez,
nas intenções do poder, de reconstruir um capitalismo de Estado independente
dos diktats dos monopólios globalizados. Mas a gestão
econômica do país permanece liberal, controlada pela oligarquia dos monopólios
privados instalados por Ieltsin, sobre o modelo ocidental. Essa política
permanece privada de qualquer dimensão social que permitiria arregimentar o
povo russo.
(III)
Há
elementos de política soberana na Índia, notadamente políticas industriais dos
monopólios industriais privados nacionais, sustentados pelo Estado. Mas nada
além disso; as políticas econômicas gerais continuam as ser as do liberalismo,
acelerando dramaticamente a pauperização da maioria dos camponeses.
(IV)
(IV))
Assim também, há elementos de política soberana no Brasil, conduzido pelo grande
capital privado brasileiro industrial e financeiro, e pela grande propriedade
agrícola capitalista. Mas aqui, como na Índia, as políticas econômicas gerais
permanecem liberais, sem trazer qualquer solução aos problemas da pobreza num
país já 90% urbanizado, exceto que a miséria é atenuada por meios de
assistência redistributiva. No Brasil como na Índia, as hesitações do poder,
que não vai ‘além’, favorecem a ambiguidade dos comportamentos do grande
capital, tentado pela busca de compromissos com o capital internacional. As
fabulosas riquezas naturais do Brasil, e sua exploração em condições
deploráveis (a destruição da Amazônia) reforçam ainda a busca de inserção, pelo
país, no sistema de globalização que há.
(V)
Não
há projeto soberano na África do Sul, cujo sistema econômico permanece sob
controle do império anglo-norte-americano. Quais são então as condições para a
emergência de um projeto soberano nesse país? E essa emergência implicaria
quais novas relações com a África?
(VI)
Países
não continentais podem desenvolver projetos soberanos? Dentro de quais limites?
Que formas de aproximações regionais poderiam facilitar-lhes o avanço?
Por onde começar?
Proporia, para os projetos soberanos
cujo movimento ao socialismo deveria promover-lhe a implantação, começar o
serviço pela identificação de ações prioritárias a serem empreendidas no plano
econômico e no plano político.
– No nível econômico:
Sugeriria começar o serviço por sair
da globalização financeira. Atenção: trata-se só da faceta financeira da globalização,
não da globalização em todas suas dimensões, notadamente comerciais.
Parte-se da hipótese de que aí está o
elo mais frágil do sistema neoliberal globalizado que há. Nesse espírito,
examinaremos:
(I)
a
questão do dólar-moeda-universal; de seu futuro, considerado o crescimento da
dívida externa dos EUA;
(II)
as
questões relativas às perspectivas de adoção do princípio da “convertibilidade
total” do yuan, do rublo e da rúpia (ver meu artigo sobre o debate em torno do Yuan);
(III)
a
questão de “sair da convertibilidade” de algumas moedas de países emergentes
(Brasil, África do Sul);
(IV)
as
medidas que os países frágeis poderiam tomar no domínio da gestão da moeda nacional
(África, em especial)
Houve iniciativas, de alcance ainda
modesto; podem-se mencionar aqui a constituição da Conferência [Organização de
Cooperação] de Xangai; os acordos China/ASEAN, a ALBA, o Banco do Sul, o
projeto [da moeda] “Sucre”, o Banco dos BRICS.
– No nível político:
Sugeriria que a prioridade seja
implantar estratégicas capazes de pôr em xeque a geopolítica e a geoestratégia
desenvolvidas pelos EUA e seus aliados subalternos da tríade.
Nosso ponto de partida é o seguinte: a
busca da dominação mundial, pelos monopólios das potências imperialistas
históricas (EUA, Europa, Japão) está ameaçada pelos crescentes conflitos entre
(I)
de
um lado os objetivos da tríade (manter sua dominação) e
(II)
de
outro lado as aspirações dos países emergentes e dos seus povos em revolta,
vítimas do “neoliberalismo”. Nessas condições, os EUA e seus aliados subalternos
(associados no “imperialismo coletivo da tríade”) escolheram a fuga para
adiante, com recurso à violência e às intervenções militares. Evidências disso
são: (a) o desenvolvimento e o
reforço das bases militares dos EUA (Africom e outros); (b) as intervenções militares no Oriente Médio (Iraque, Síria, no
futuro o Irã?); (c) as medidas para
cercar militarmente a China; as provocações que o Japão tem feiro, as
manipulações relacionadas aos conflitos China/Índia e China/Sudeste da Ásia.
Mas parece que, enquanto a violência
das intervenções das potências imperialistas continua inscrita na ordem do dia
dos fatos, elas respondem cada dia com mais dificuldade às exigências de alguma
estratégia coerente, condição de qualquer eventual sucesso. Os EUA estão à
deriva? O declínio dessa potência é passageiro ou decisivo? As respostas de
Washington, decididas, parece, ao sabor do dia a dia, nem por isso são menos
perigosamente criminosas.
Em face desses grandes desafios, que
estratégias de alianças políticas internacionais (ou militares) poderiam fazer
recuar o projeto dos EUA, de controle militar de todo o planeta?
A importância dos avanços possíveis
nesse terreno é evidente. Não por acaso, os BRICS, e depois deles bom número de
países do Sul, uns envolvidos em graus diversos na via de projetos soberanos,
outros ainda enredados nas dificuldades do lumpen desenvolvimento, manifestam
cada dia mais claramente sua recusa a apoiar as aventuras militares dos EUA e
ousam tomar iniciativas que contrariam Washington (como usar o direito de veto,
como fizeram Rússia e China [no Conselho de Segurança da ONU]). É preciso
avançar mais, de modo mais sistemático e mais amplo, nessas direções.
_________________________________________
REFERÊNCIAS GERAIS
A
análise centrada no desafio que é a diversidade dos componentes do
movimento ao socialismo, para construir a unidade de ação, serve-se de
vários de meus escritos recentes. Desses empréstimos, os principais
tratam das seguintes questões:
(1) O
capitalismo dos monopólios generalizados, financeirizados e
globalizados; a proletarização generalizada e segmentada; o capital
abstrato;
(2) A
implosão do sistema; o controle militar do planeta, pelas potências
imperialistas; o lumpen desenvolvimento; a emergência de China, Rússia,
Índia;
(3) A
trajetória histórica do capitalismo; as longas crises associadas ao
declínio do capitalismo; a globalização da lei do valor: a primeira onda
de revoluções socialistas e a emergência do Sul no século 20, avanços e
recuos (Iêmen do Sul, Afeganistão, Irã, etc.);
(4) O capitalismo verde; o socialismo verde;
(5) A crítica da ajuda internacional.
Remeto o leitor interessado nesses temas, aos seguintes livros e artigos:
Le virus libéral ; le Temps des Cerises 2003
Au-delà du capitalisme sénile : PUF 2005, chap IV et V
Pour un monde multipolaire ; Syllepse 2005, chap 2,4 et 5
Sur la crise, sortir de la crise du capitalisme ou sortir du capitalisme en Crise?; T. des C., 2009, chap 1,2 et 4
La loi de la valeur mondialisée ; T. des C. 2011, chap 4
L’implosion du capitalisme contemporain ; Delga 2012, chap 1 et 2
L’histoire globale ; Les Indes Savantes 2013, chap 6,7 et 8
Three Essays on Marx’s Value Theory ; Monthly Review Press 2013
Artigos e contribuições em obras coletivas:
Samir Amin entrevistado por Ali Amady Dieng; Development and Change, Vol 38, N°6, 2007.
Market economy or oligopoly Finance capital; Monthly Review, 2008.
Nepal, A Revolutionnary Advance, Monthly Review, Feb. 2009.
Seize The Crisis; Monthly Review, Vol 61, N°7, 2009.
Capitalism and the Ecological Footprint, Monthly Review, Vol 61, N°6, 2009.
Historical Capitalism in Decline, The Tricontinental Mission of Marxism, Monthly Review, Vol 62, N°9, 2011.
Modernity and Religions interpretations. In Lansana Keita, Philosophy and African Development, CODESRIA, 2011.
Y a-t-il une solution aux problèmes de la Somalie? Recherches Internationales, N° 89, 2011
Capital transnational ou impérialisme collectif, Recherches Internationales, N° 89, 2011.
Egypte, Changement, demandez le programme; Afrique-Asie, Déc. 2012.
Preface, in Hocine Belalloufi, La démocratie en Algérie, Réforme ou Révolution ? APIC, Alger 2012.
Samir Amin ou Wallerstein’s, The Modern World System, Monthly Review, Vol 63, N° 8, 2012.
The Surplus in Monopoly Capital and the Imperialist Rent, Monthly Review, Vol 64, N° 3, 2012.
China 2013; Monthly Review, Vol 64, N°10, 2013.
Class Suicide, The Post burguesia and the challenge of development; in, Firoze Manji, Claim no Easy Victory, CODESRIA 2013.
What “radical” means in the XXIst Century; Review of Radical Political Economy, Vol 45, N° 3, 2013.
Egypt, July 2013; interview publié en chinois; version française et anglaise sur le Blog et Facebook Samir Amin; 2013.
Egypt, August 2013; Blog et Facebook Samir Amin, 2013.
Servi-me
com proveito dos estudos de François Houtart (os bens comuns, o “buen
vivir”); de Rémy Herrera (Cuba); de Gilbert Achcar (Le peuple veut), de Yash Tandon (En finir avec la dépendance de l’aide,
2013), de Elmar Altvater (“Solar socialismo”, documento distribuído
pelo autor, em 2006, publicado em alemão), coleção de comunicações
apresentadas no Colloque d’Alger,
setembro de 2013, em particular das comunicações de Paulo Nakatani
(Brasil), de Ayjaz Ahmad (Índia). A síntese desses debates foi publicada
em Afrique Asie, dezembro de 2013.
Sobre
a questão da convertibilidade do Yuan, meus comentários foram
publicados em chinês, retomados em francês (sob o título “Le Yuan
chinois”), em meu blog e no Facebook, 2013.
Faço
apenas uma alusão à questão dos conhecimentos científicos novos que nos
poderiam interpelar, e remeto aos escritos de Patrick Tort e Anton
Pannekoek (o darwinismo social), e de Michael Lowy.
________________
[*] Samir
Amin é diretor
do Fórum do Terceiro Mundo, associação internacional de intelectuais da África,
Ásia e América Latina, com sede em Dakar, Senegal, que visa a fortalecer os
esforços intelectuais e os laços entre os países do Terceiro Mundo.
Ante o que chama de “a farsa
democrática”, Samir Amin levanta uma questão essencial:
“Assim sendo... Renunciar às
eleições? Não. Mas como associar novas formas de democratização, ricas,
inventivas, que dêem às eleições outro uso, diferente do uso que as forças
conservadoras previram para elas?”
Para Samir Amin, aí está o desafio que temos de enfrentar.
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