2/3/2014, [*] Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
As fronteiras do Oriente Médio em 1916 quando a França e a Inglaterra "repartiram" o território. (Clique na imagem para aumentar) |
As fronteiras
estão-se tornando bem esquisitas no Oriente Médio. Sempre foram, é claro. Desde
que Mark Sykes e François Georges Picot – esse último, cônsul da França em
Beirute, por falar dele; e seu consulado custou a muitos bravos libaneses a
própria vida, pelo desleixo com que ele lacrava as cartas antiotomanas deles
por trás do muro da embaixada – dividiram Líbano, Síria, Iraque, Palestina,
etc., muitos árabes (ou os netos deles) acabaram tendo de viver como refugiados
detestados, poucas milhas distantes de seus lares originais, amaldiçoados e
maltratados e às vezes mortos por outros muitos árabes que acabaram por ser –
em alguns casos, para sua própria surpresa – ou libaneses ou sírios.
Então se
chega à questão de um estado chamado Israel que existe numa terra que era
chamada Palestina, 22% da qual – e porcentagem que encolhe dia a dia – supõe-se
que se chame “Palestina”. É, talvez seja.
O que me leva
ao de que se trata. Porque semana passada, o ministro de Assuntos Estratégicos
– será que alguma outra nação na Terra tem ministério disso?, pergunto aos meus
botões – de Israel, avisou o Líbano de que deve tratar de impedir que o
Hezbollah (armado pelo Irã, apoiado pela Síria, vocês conhecem os clichês,
batidos e verdadeiros) ataque Israel, como retaliação pelo ataque de Israel a
um comboio de armas – ataque que, como acontece muitas vezes, Israel sequer
admitiu ter executado.
Vejamos do
que realmente se trata. E começo com uma esquisitíssima citação, que recolhi da
agência Reuters de notícias:
Na 6ª-feira
(28/2/2014), Israel avisou o Líbano de que impeça retaliação [sic] pelo
Hezbollah, por causa de um suposto [sic] ataque israelense na fronteira
síria.
O quê?! Os
editores da Reuters viram-se às voltas com um problema factual, é claro. Os
israelenses não admitiram que bombardearam o comboio dentro do Líbano, portanto
a agência teve de dourar a pílula – porque Israel não admitiu o ataque e, sem a
confirmação por Israel, ninguém pode afirmar fato algum no Oriente Médio. Mas,
ao mesmo tempo, a Reuters não podia deixar de noticiar o ataque aéreo que
centenas de libaneses no Vale do Bekaa viram com os próprios olhos. Por isso
escreveram “suposto ataque”. Curiosamente, nem o Hezbollah noticiou o ataque,
para começar.
Sem
problemas, suponho, se o ataque aéreo tivesse acontecido dentro das fronteiras
sírias – como outros três, nenhum dos quais confirmado pelos israelenses.
Mas voltemos
a Yuval Steinitz – o supracitado ministro israelense – que disse que “é
autoevidente que nós consideramos o Líbano responsável por qualquer ataque a
Israel que parta de território libanês”. Sempre segundo a mesma matéria da
Reuters, Israel ameaçou destruir “milhares” de prédios residenciais que, diz
Israel, o Hezbollah usa como bases. É ainda mais esquisito.
Por muitos
anos – e já testemunhei cinco dessas guerras, embora Israel diga que só
combateu três delas – vi milhares e milhares de prédios “residenciais”
reduzidos a cacos por Israel e que não eram bases do Hezbollah. Então, o sr.
Steinitz estará sendo mais contido que seus predecessores? Estará ele dizendo
que Israel pode atacar só os prédios residenciais que o Hezbollah está usando –
e não outros prédios residenciais que haja na mesma área? E isso, claro, só se
o Hezbollah retaliar depois de um ataque aéreo que talvez – talvez sim, talvez
não – tenha acontecido?
E só para
encerrar, também dos enlouquecidos editores da Reuters, a agência tem mais uma
linha sensacional que tenho de partilhar com vocês. “Israel está tecnicamente
em guerra contra o Líbano e a Síria”. Uau! Essa acabou comigo.
Assim sendo,
voltemos às fronteiras. Há muitas décadas, havia várias vilas no Líbano que os
franceses deram aos britânicos – quando os britânicos mandavam na “Palestina” e
os franceses controlavam o Líbano e a Síria (o Líbano sendo parte da Síria até
que os franceses o amputaram, como aliado útil para anos futuros).
Foto tirada da vila libanesa de Adaysseh mostra soldados de Israel patrulhando a fronteira Israel-Líbano, dia 20/1/2014 (Getty Images) |
Muitos
libaneses, nascidos no Império Otomano, acordaram um belo dia e descobriram que
já não eram libaneses – mas palestinos. E quando os israelenses chegaram à
Galileia e empreenderam o serviço de limpeza étnica (sobre isso, vejam o
trabalho do excelente historiador israelense Ilan Pappe, dentre outros), alguns
desses ex-libaneses – já então palestinos – foram assassinados. Os demais foram
expulsos de Israel (ex-Palestina), mandados para o Líbano – onde muitos deles
haviam nascido – como refugiados palestinos. Há poucos anos realmente receberam
passaportes libaneses – e assim ficaram sabendo que deixavam de ser palestinos.
Não pode
haver muitos deles ainda vivos, mas – se tivessem dirigido algumas milhas rumo
norte, a partir de suas atuais casas no Líbano, semana passada – poderiam ter
testemunhado o ataque aéreo contra o Líbano que só “supostamente” aconteceu.
Assim, veriam com os próprios olhos um ataque executado pelo país que os
expulsou da “Palestina” para o país onde realmente nasceram. Veriam pois um
ataque aéreo que talvez não tenha acontecido (“suposto ataque”), porque o país
no qual eles não nasceram não declarou que realmente atacou o país do qual eles
são agora (outra vez) cidadãos.
E você,
leitor, que pensava que o Oriente Médio era lugar difícil de entender...
Experimente viver aqui.
Mapa atual do Oriente Médio |
OK, voltemos
para a Síria, por um momento. Como vocês sabem, há guerra aqui há mais de dois
anos. O Hezbollah está combatendo ao lado do governo de Bashar al-Assad –
ofensa terrível aos olhos dos governos ocidentais que permitiram à França
amputar o Líbano, da Síria, depois da Iª Guerra Mundial.
Se
os
franceses não tivessem feito isso, é claro que no Hezbollah seriam todos
sírios lutando lado a lado com seu próprio governo, no seu próprio
país, e o Hezbollah
não nos ofenderia tanto, por cruzar a fronteira que os ocidentais
criaram
contra a vontade dos avós do Hezbollah. Nesse caso, os israelenses não
teriam
de “avisar” o Líbano sobre retaliações pelo Hezbollah contra ataque
aéreo que
talvez – talvez sim, talvez não – os israelenses executaram contra o
Líbano,
mas ataque que – se o ocidente não tivesse inventado o Líbano – seria o
quarto ataque de mesmo tipo por Israel contra a Síria... Sempre supondo que
Israel “declare” que, antes de tudo começar, Israel atacou a Síria (“primeiro
ataque”).
Daqui em
diante é com vocês, pessoal! (...)
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[*] Robert Fisk é filho de um
ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial, Robert Fisk estudou jornalismo
na Inglaterra e Irlanda. Trabahou como correspondente internacional na Irlanda
- cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal. Em 1976, foi convidado por
seu editor no The Times para substituir o correspondente do jornal
no Oriente Médio. Fisk trabalhou para The Times até 1988, quando se
mudou para The Independent - após uma discussão
com seus editores sobre modificações feitas em seus artigos, sem seu
consentimento.
Fisk cobriu a guerra
civil do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979;
a guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982), a
guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a
Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também
pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa
palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos
maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para
divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos
de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por Saddam
Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as
atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque.
Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda (em
1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão).
Robert Fisk é o
correspondente estrangeiro britânico mais premiado. Recebeu o Prêmio
Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e
1996). Também ganhou o Prêmio à Imprensa da Anistia Internacional no Reino
Unido em 1998 e 2000.
puxa, castor filho, até que enfim um artigo do robert fisk. que bom!
ResponderExcluirabçs
carlos-fort-ce
Ótimo artigo, é bom comparar os mapas dos impérios otomanos e outros do Oriente de 1800 a 1900, para ver que é verdade. O Ocidente é que plantou a discórdia entre irmãos.
ResponderExcluirParabéns ao Castor.
Porém acredito que em algumas postagens(inclusive do Paulo Moreira Leite), percebe-se um claro enfrentamento contra os militares. Não seria a hora CERTA de faze-los ver que o que é bom para o BRASIL, nem sempre é bom para os capitalistas selvagens americanos/ingleses/franceses/espanhóis/alemães e outros??? Os militares não devem ter cargo político, eles tem que defender o BRASIL. Por isso acredito que o orçamento militar deve crescer daqui para a frente.