quarta-feira, 12 de março de 2014

Não fossem os franceses, todos no Hezbollah seriam sírios, lutando lado a lado com seu próprio governo, no seu próprio país


2/3/2014, [*] Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

As fronteiras do Oriente Médio em 1916 quando a França e a Inglaterra "repartiram" o território. (Clique na imagem para aumentar)
As fronteiras estão-se tornando bem esquisitas no Oriente Médio. Sempre foram, é claro. Desde que Mark Sykes e François Georges Picot – esse último, cônsul da França em Beirute, por falar dele; e seu consulado custou a muitos bravos libaneses a própria vida, pelo desleixo com que ele lacrava as cartas antiotomanas deles por trás do muro da embaixada – dividiram Líbano, Síria, Iraque, Palestina, etc., muitos árabes (ou os netos deles) acabaram tendo de viver como refugiados detestados, poucas milhas distantes de seus lares originais, amaldiçoados e maltratados e às vezes mortos por outros muitos árabes que acabaram por ser – em alguns casos, para sua própria surpresa – ou libaneses ou sírios.

Então se chega à questão de um estado chamado Israel que existe numa terra que era chamada Palestina, 22% da qual – e porcentagem que encolhe dia a dia – supõe-se que se chame “Palestina”. É, talvez seja.

O que me leva ao de que se trata. Porque semana passada, o ministro de Assuntos Estratégicos – será que alguma outra nação na Terra tem ministério disso?, pergunto aos meus botões – de Israel, avisou o Líbano de que deve tratar de impedir que o Hezbollah (armado pelo Irã, apoiado pela Síria, vocês conhecem os clichês, batidos e verdadeiros) ataque Israel, como retaliação pelo ataque de Israel a um comboio de armas – ataque que, como acontece muitas vezes, Israel sequer admitiu ter executado.


Vejamos do que realmente se trata. E começo com uma esquisitíssima citação, que recolhi da agência Reuters de notícias:

Na 6ª-feira (28/2/2014), Israel avisou o Líbano de que impeça retaliação [sic] pelo Hezbollah, por causa de um suposto [sic] ataque israelense na fronteira síria.

O quê?! Os editores da Reuters viram-se às voltas com um problema factual, é claro. Os israelenses não admitiram que bombardearam o comboio dentro do Líbano, portanto a agência teve de dourar a pílula – porque Israel não admitiu o ataque e, sem a confirmação por Israel, ninguém pode afirmar fato algum no Oriente Médio. Mas, ao mesmo tempo, a Reuters não podia deixar de noticiar o ataque aéreo que centenas de libaneses no Vale do Bekaa viram com os próprios olhos. Por isso escreveram “suposto ataque”. Curiosamente, nem o Hezbollah noticiou o ataque, para começar.

Treinamento soldados israelenses no norte da base de El Yakim de Israel em 21/2/2014). A aldeia libanesa simulada foi criada para se preparar para a guerra contra o Hezbollah. Israel elevou seu nível de alerta na fronteira com o Líbano.
Sem problemas, suponho, se o ataque aéreo tivesse acontecido dentro das fronteiras sírias – como outros três, nenhum dos quais confirmado pelos israelenses.

Mas voltemos a Yuval Steinitz – o supracitado ministro israelense – que disse que “é autoevidente que nós consideramos o Líbano responsável por qualquer ataque a Israel que parta de território libanês”. Sempre segundo a mesma matéria da Reuters, Israel ameaçou destruir “milhares” de prédios residenciais que, diz Israel, o Hezbollah usa como bases. É ainda mais esquisito.

Por muitos anos – e já testemunhei cinco dessas guerras, embora Israel diga que só combateu três delas – vi milhares e milhares de prédios “residenciais” reduzidos a cacos por Israel e que não eram bases do Hezbollah. Então, o sr. Steinitz estará sendo mais contido que seus predecessores? Estará ele dizendo que Israel pode atacar só os prédios residenciais que o Hezbollah está usando – e não outros prédios residenciais que haja na mesma área? E isso, claro, só se o Hezbollah retaliar depois de um ataque aéreo que talvez – talvez sim, talvez não – tenha acontecido?

E só para encerrar, também dos enlouquecidos editores da Reuters, a agência tem mais uma linha sensacional que tenho de partilhar com vocês. “Israel está tecnicamente em guerra contra o Líbano e a Síria”. Uau! Essa acabou comigo.

Assim sendo, voltemos às fronteiras. Há muitas décadas, havia várias vilas no Líbano que os franceses deram aos britânicos – quando os britânicos mandavam na “Palestina” e os franceses controlavam o Líbano e a Síria (o Líbano sendo parte da Síria até que os franceses o amputaram, como aliado útil para anos futuros).

Foto tirada da vila libanesa de Adaysseh mostra soldados de Israel patrulhando a fronteira Israel-Líbano, dia 20/1/2014 (Getty Images)
Muitos libaneses, nascidos no Império Otomano, acordaram um belo dia e descobriram que já não eram libaneses – mas palestinos. E quando os israelenses chegaram à Galileia e empreenderam o serviço de limpeza étnica (sobre isso, vejam o trabalho do excelente historiador israelense Ilan Pappe, dentre outros), alguns desses ex-libaneses – já então palestinos – foram assassinados. Os demais foram expulsos de Israel (ex-Palestina), mandados para o Líbano – onde muitos deles haviam nascido – como refugiados palestinos. Há poucos anos realmente receberam passaportes libaneses – e assim ficaram sabendo que deixavam de ser palestinos.

Não pode haver muitos deles ainda vivos, mas – se tivessem dirigido algumas milhas rumo norte, a partir de suas atuais casas no Líbano, semana passada – poderiam ter testemunhado o ataque aéreo contra o Líbano que só “supostamente” aconteceu. Assim, veriam com os próprios olhos um ataque executado pelo país que os expulsou da “Palestina” para o país onde realmente nasceram. Veriam pois um ataque aéreo que talvez não tenha acontecido (“suposto ataque”), porque o país no qual eles não nasceram não declarou que realmente atacou o país do qual eles são agora (outra vez) cidadãos.

E você, leitor, que pensava que o Oriente Médio era lugar difícil de entender... Experimente viver aqui.

Mapa atual do Oriente Médio 
OK, voltemos para a Síria, por um momento. Como vocês sabem, há guerra aqui há mais de dois anos. O Hezbollah está combatendo ao lado do governo de Bashar al-Assad – ofensa terrível aos olhos dos governos ocidentais que permitiram à França amputar o Líbano, da Síria, depois da Iª Guerra Mundial.

Se os franceses não tivessem feito isso, é claro que no Hezbollah seriam todos sírios lutando lado a lado com seu próprio governo, no seu próprio país, e o Hezbollah não nos ofenderia tanto, por cruzar a fronteira que os ocidentais criaram contra a vontade dos avós do Hezbollah. Nesse caso, os israelenses não teriam de “avisar” o Líbano sobre retaliações pelo Hezbollah contra ataque aéreo que talvez – talvez sim, talvez não – os israelenses executaram contra o Líbano, mas ataque que – se o ocidente não tivesse inventado o Líbano – seria o quarto ataque de mesmo tipo por Israel contra a Síria... Sempre supondo que Israel “declare” que, antes de tudo começar, Israel atacou a Síria (“primeiro ataque”).

Daqui em diante é com vocês, pessoal! (...)
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[*] Robert Fisk é filho de um ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial, Robert Fisk estudou jornalismo na Inglaterra e Irlanda. Trabahou como correspondente internacional na Irlanda - cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal. Em 1976, foi convidado por seu editor no The Times para substituir o correspondente do jornal no Oriente Médio. Fisk trabalhou para The Times até 1988, quando se mudou para The Independent - após uma discussão com seus editores sobre modificações feitas em seus artigos, sem seu consentimento.
Fisk cobriu a guerra civil do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979; a guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982), a guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por Saddam Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda (em 1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão). 
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro britânico mais premiado. Recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio à Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000.

2 comentários:

  1. puxa, castor filho, até que enfim um artigo do robert fisk. que bom!
    abçs

    carlos-fort-ce

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  2. Ótimo artigo, é bom comparar os mapas dos impérios otomanos e outros do Oriente de 1800 a 1900, para ver que é verdade. O Ocidente é que plantou a discórdia entre irmãos.
    Parabéns ao Castor.
    Porém acredito que em algumas postagens(inclusive do Paulo Moreira Leite), percebe-se um claro enfrentamento contra os militares. Não seria a hora CERTA de faze-los ver que o que é bom para o BRASIL, nem sempre é bom para os capitalistas selvagens americanos/ingleses/franceses/espanhóis/alemães e outros??? Os militares não devem ter cargo político, eles tem que defender o BRASIL. Por isso acredito que o orçamento militar deve crescer daqui para a frente.

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