30/3/2014, [*] Alexander
Mezyaev, Strategic
Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido no “Fricote da Nêga”, na Vila
Vudu — Seguinte: a
imbecilidade da ideia dos EUA na ONU, de “declarar” alguma ilegalidade no
referendo pelo qual a Crimeia decidiu separar-se da Ucrânia é equivalente a
Portugal pôr-se a “declarar” que a independência do Brasil em 1822 seria
ilegal, “porque” feri(ria) a integridade territorial de Portugal. Será que, assim bem explicadinho, o vagabundíssimo
“jornalismo” brasileiro, afinal, entende do que se trata?!
Plenário da Assembleia Geral da ONU |
Dia 27 de
março, a Assembleia Geral da ONU aprovou resolução intitulada “Integridade
territorial da Ucrânia” [orig. “Territorial Integrity of Ukraine”,
A/RES/68/262), com 100 votos a favor [1]; 11 contra (Rússia, Armênia,
Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Coreia do Norte, Nicarágua, Sudão, Síria,
Venezuela e Zimbabue); e 58 abstenções (24 estados-membros ou estavam ausentes
ou presentes, mas não votaram). Os votos dos países membros do Conselho de
Segurança ficaram assim distribuídos: Rússia votou contra; Argentina, China e
Ruanda abstiveram-se; e os demais membros do CS votaram a favor.
O que diz o
documento da Assembleia Geral da ONU? Afirma o compromisso da ONU com a
soberania, a independência política, a unidade e a integridade territorial da
Ucrânia, dentro de suas fronteiras internacionalmente reconhecidas, e “declara”
inválido o referendo do dia 16/3 realizado na Crimeia autônoma. Há dois
momentos a observar aqui:
– primeiro,
a Carta das Nações Unidas proíbe que se levem a votação na Assembleia Geral
questões que estejam sob análise do Conselho de Segurança, enquanto estiverem
sendo analisadas ali. Mesmo assim e apesar da ilegalidade, a questão da Ucrânia
chegou à Assembleia Geral;
– segundo,
como determina a Carta das Nações Unidas, as resoluções aprovadas pela
Assembleia Geral não são cogentes [não têm de ser
obrigatoriamente obedecidas ou consideradas (NTs)].
Quanto aos
estados que aprovaram a Resolução, será que se ampararam em argumentos sólidos?
Pode-se entender que esses 100 estados estariam unidos numa mesma posição
política, discutida e sólida? A resposta é “Não”.
Reunião do Conselho de Segurança da ONU |
Já se
passou muito tempo desde que começou a campanha anti-Rússia relacionada à
Crimeia; os autores da resolução não conseguiram reunir argumentos convincentes
nos quais amparar sua iniciativa. Por isso acabaram tendo de recorrer à fórmula
da Resolução A/RES/68/262.
A noção de
que o referendo na Crimeia “desconsidera (ria) a lei internacional” não tem
qualquer fundamento. Os representantes da Moldávia, do Japão e outros estados
insistiram que o referendo estaria em conflito com a lei internacional, mas
nenhum deles conseguiu citar o exato artigo da lei que estaria sendo “desconsiderado”.
A memória fraca explica-se, porque simplesmente não há artigo algum que tenha
sido “desconsiderado” na realização do referendo. Que o mundo saiba, a lei
internacional absolutamente não proíbe referendos.
A verdade é
o contrário disso tudo: a Corte Internacional de Justiça determinou que uma
declaração unilateral de independência não desrespeita a lei internacional.
Nenhum dos
patrocinadores do golpe na Ucrânia, nem a maioria sempre servil ao ocidente na
Assembleia Geral da ONU esforçou-se muito para oferecer argumentos legalmente
aproveitáveis a favor de sua proposta de resolução, afinal aprovada. Tudo, ali,
resume-se a pura propaganda.
Deliberadamente,
os fatos foram distorcidos e a lei foi apresentada sob forma que não
corresponde ao que a lei realmente estabelece.
Por
exemplo, o termo “anexação” é várias vezes repetido, quando se sabe que a
Crimeia decidiu em referendo, por desejo manifesto do próprio povo crimeano, deixar
a Ucrânia e se incorporar a outro estado. Não houve jamais, portanto,
qualquer “anexação”.
Consideremos
agora a questão da “violação” da integridade territorial da Ucrânia. Como já
disse em outro artigo, o princípio da integridade territorial é mencionado na
Declaração de Princípios da Lei Internacional de 1970, no contexto de
intervenção por outro país. Absolutamente não se aplica a referendos internos
decididos por população que tem pleno direito a autodeterminação.
A Lei
Internacional declara que uma parte de qualquer estado tem pleno direito a
tornar-se independente ou de se converter em unidade federada de outro estado
que a população votante escolha.
Outdoor informando sobre o referendo na Crimeia |
É, por
exemplo, o que determina a “Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados entre
Estados e Organizações ou entre Organizações Internacionais” – e em outras leis
internacionais.
E quanto
aos muitos estados que apoiaram a resolução?
− Primeiro, há bons motivos para suspeitar que
muitos deles foram submetidos a pressões e, até, a chantagem.
− Segundo, muitos estados nada sabem da situação
real na Ucrânia; votaram baseados em informação distorcida. Não é raro que os “votantes”
nada saibam sobre o que acontece em campo, em país citado em votações na ONU.
Para ter certeza disso, basta passar os olhos nas transcrições verbatim das
sessões integrais de tudo que se diz nas sessões da Assembleia Geral, quando se
discutem conflitos regionais ou posições oficiais de estados que os votantes
consideram “distantes demais”, em termos geográficos ou políticos, de suas
realidades locais ou regionais. E há os estados que não têm nem querem ter nem
notícia do que realmente se passa na Ucrânia, porque votam em qualquer coisa
que contribua para “confirmar” o que mais interesse à propaganda que Washington
distribui para o mundo. Por exemplo, o representante da Nigéria justificou seu
voto a favor da Resolução, dizendo que seu único interesse era defender os
princípios da lei internacional e da Carta da ONU! Não fez sequer um mínimo
esforço, inicial, incipiente que fosse, para compreender melhor a questão que
realmente estava em jogo. E vários dos que votaram a favor da resolução votaram
“com restrições”. O representante do Chile, por exemplo, votou a favor da
resolução, mas declarou que seu governo considera inaceitáveis as sanções
contra a Rússia.
Embaixador da Rússia na ONU, Vitaly Churkin |
A situação
é completamente diferente, quando alguns países, por pequenos que sejam,
mostraram empenhado esforço em compreender o que é o quê, e tinham condições
que lhes permitiam não ter de ceder à chantagem. O representante de Saint
Vincent e Granadinas disse que o projeto de resolução que estava sendo votado
nada tinha a ver com princípios ou com a lei internacional. E que lamentava que
a Assembleia Geral se recusasse a buscar melhor informação sobre fatos
históricos e sobre a verdade sobre o novo regime fascista que se instalou, por
golpe, na Ucrânia.
A Rússia
rejeitou a resolução porque a considera “confrontacional” – disse o embaixador
Churkin da Rússia na ONU, antes de votar. Acrescentou que o texto da resolução
obra para “desmoralizar o referendo” e o direito à autodeterminação do povo da
Crimeia.
Disse que,
mesmo assim, havia “algumas coisas corretas” no documento: fala contra ações
unilaterais e contra retórica de provocação. Mas, disse o embaixador Churkin,
ninguém precisa de resolução da ONU para promover essas metas: bastaria que
todos começassem a agir no interesse do povo da Crimeia. A iniciativa para a
reintegração da Crimeia à Federação Russa partiu do povo da Crimeia, não de
Moscou – lembrou Churkin. A revogação do status de língua oficial do idioma
russo, e ameaças de enviar para a Crimeia milicianos armados pelos golpistas de
Kiev, geraram “massa crítica” que empurrou a península ao referendo e ao
resultado do referendo, disse o embaixador russo.
Quem se
dedique a examinar o procedimento naquela votação, é levado fatalmente à
seguinte conclusão:
– A
correlação entre os 100 votos a favor e os votos contra não reflete a
realidade. Ainda que a realidade fosse 100 a 69, nem assim o quadro seria acurado. Mas
o resultado real da votação foi 100 a 93.
169 países
votaram (100+11+58), dos 193 países membros da ONU. Esses votos de votantes que
não apareceram têm de ser somados aos votos de países que não apoiam a
resolução, não, com certeza, aos votos dos que votaram “sim”. São 24 estados
ausentes da votação; e esses 24 votos têm de ser somados aos 58 que se abstiveram
oficialmente de votar.
Pode-se
facilmente concluir que o mais claro e visível resultado da votação é que a
diplomacia ocidental fracassou. 100 estados apoiaram a “teoria da integridade
territorial da Ucrânia” [ou da “integridade
territorial de Portugal, em 1822, contra a independência do Brasil”... (NTs)]; 93
reagiram contra. Esse afinal, foi o resultado real da “ação” do ocidente, na
ONU, dessa vez.
[*] Alexander Mezyaev nasceu em
Moscou 18/1/1971. De 1989
a 1991 serviu no exército soviético. Em
1997 graduou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal Kazan.
Especialidade
“Direito Internacional". Desde 1997, trabalha na Universidade
de Gestão "TISBI".
Em 2001, defendeu tese de
doutorado sobre especialidades: “Direito Internacional no Direito Europeu” – “A
Pena de Morte e o Direito Internacional Contemporâneo”.
Participou da equipe de defesa do
ex-presidente da Iugoslávia, Slobodan Milosevic, perante o Tribunal Penal
Internacional para a ex-Iugoslávia (2003-2006). Atualmente está participando da
defesa de outros réus desse processo, o Professor Vojislav Seselj e o general
Ratko Mladic. Membro da Associação Internacional
de Advogados de Defesa atuando noTribunal Penal Internacional (ADC-TPIJ).
É Vice Redactor-Chefe de “Kazan Jornal do Direito
Internacional” (desde 2007). Esteve
envolvido em projetos de pesquisa da Universidade de Leuven, na Bélgica (1997),
da Universidade de Fribourg, Suíça (em 2000 e 2007), o Instituto de Direito
Comparado, Lausanne, Suíça (2001), Instituto Internacional de Direito Público e
Privado, Instituto TMC Asser, Haia, Holanda (2003), do Instituto Max Planck de
Direito Comparado e Direito Internacional Público, Heidelberg, Alemanha (2007).
Membro da Associação de Direito Internacional (Membro
do Comitê de Direitos Humanos Direito Internacional); Associação Russa de
Direito Internacional; Associação de Política Externa da Federação Russa;
Associação Russa de Estudos Internacionais, Associação Russa de Estudos
Africanos.
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