terça-feira, 1 de abril de 2014

ONU e a questão da Ucrânia: Assembleia Geral versus Conselho de Segurança

30/3/2014, [*] Alexander Mezyaev, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Entreouvido no “Fricote da Nêga”, na Vila Vudu — Seguinte: a imbecilidade da ideia dos EUA na ONU, de “declarar” alguma ilegalidade no referendo pelo qual a Crimeia decidiu separar-se da Ucrânia é equivalente a Portugal pôr-se a “declarar” que a independência do Brasil em 1822 seria ilegal, “porque” feri(ria) a integridade territorial de Portugal. Será que, assim bem explicadinho, o vagabundíssimo “jornalismo” brasileiro, afinal, entende do que se trata?!

Plenário da Assembleia Geral da ONU
Dia 27 de março, a Assembleia Geral da ONU  aprovou resolução intitulada “Integridade territorial da Ucrânia” [orig. “Territorial Integrity of Ukraine”, A/RES/68/262), com 100 votos a favor [1]; 11 contra (Rússia, Armênia, Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Coreia do Norte, Nicarágua, Sudão, Síria, Venezuela e Zimbabue); e 58 abstenções (24 estados-membros ou estavam ausentes ou presentes, mas não votaram). Os votos dos países membros do Conselho de Segurança ficaram assim distribuídos: Rússia votou contra; Argentina, China e Ruanda abstiveram-se; e os demais membros do CS votaram a favor.

O que diz o documento da Assembleia Geral da ONU? Afirma o compromisso da ONU com a soberania, a independência política, a unidade e a integridade territorial da Ucrânia, dentro de suas fronteiras internacionalmente reconhecidas, e “declara” inválido o referendo do dia 16/3 realizado na Crimeia autônoma. Há dois momentos a observar aqui:

primeiro, a Carta das Nações Unidas proíbe que se levem a votação na Assembleia Geral questões que estejam sob análise do Conselho de Segurança, enquanto estiverem sendo analisadas ali. Mesmo assim e apesar da ilegalidade, a questão da Ucrânia chegou à Assembleia Geral;

segundo, como determina a Carta das Nações Unidas, as resoluções aprovadas pela Assembleia Geral não são cogentes [não têm de ser obrigatoriamente obedecidas ou consideradas (NTs)].

Quanto aos estados que aprovaram a Resolução, será que se ampararam em argumentos sólidos? Pode-se entender que esses 100 estados estariam unidos numa mesma posição política, discutida e sólida? A resposta é “Não”.

Reunião do Conselho de Segurança da ONU
Já se passou muito tempo desde que começou a campanha anti-Rússia relacionada à Crimeia; os autores da resolução não conseguiram reunir argumentos convincentes nos quais amparar sua iniciativa. Por isso acabaram tendo de recorrer à fórmula da Resolução A/RES/68/262.

A noção de que o referendo na Crimeia “desconsidera (ria) a lei internacional” não tem qualquer fundamento. Os representantes da Moldávia, do Japão e outros estados insistiram que o referendo estaria em conflito com a lei internacional, mas nenhum deles conseguiu citar o exato artigo da lei que estaria sendo “desconsiderado”. A memória fraca explica-se, porque simplesmente não há artigo algum que tenha sido “desconsiderado” na realização do referendo. Que o mundo saiba, a lei internacional absolutamente não proíbe referendos.

A verdade é o contrário disso tudo: a Corte Internacional de Justiça determinou que uma declaração unilateral de independência não desrespeita a lei internacional.

Nenhum dos patrocinadores do golpe na Ucrânia, nem a maioria sempre servil ao ocidente na Assembleia Geral da ONU esforçou-se muito para oferecer argumentos legalmente aproveitáveis a favor de sua proposta de resolução, afinal aprovada. Tudo, ali, resume-se a pura propaganda.

Deliberadamente, os fatos foram distorcidos e a lei foi apresentada sob forma que não corresponde ao que a lei realmente estabelece.

Por exemplo, o termo “anexação” é várias vezes repetido, quando se sabe que a Crimeia decidiu em referendo, por desejo manifesto do próprio povo crimeano, deixar a Ucrânia e se incorporar a outro estado. Não houve jamais, portanto, qualquer “anexação”.

Consideremos agora a questão da “violação” da integridade territorial da Ucrânia. Como já disse em outro artigo, o princípio da integridade territorial é mencionado na Declaração de Princípios da Lei Internacional de 1970, no contexto de intervenção por outro país. Absolutamente não se aplica a referendos internos decididos por população que tem pleno direito a autodeterminação.

A Lei Internacional declara que uma parte de qualquer estado tem pleno direito a tornar-se independente ou de se converter em unidade federada de outro estado que a população votante escolha.

Outdoor informando sobre o referendo na Crimeia
É, por exemplo, o que determina a “Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados entre Estados e Organizações ou entre Organizações Internacionais” – e em outras leis internacionais.

E quanto aos muitos estados que apoiaram a resolução?

− Primeiro, há bons motivos para suspeitar que muitos deles foram submetidos a pressões e, até, a chantagem.

− Segundo, muitos estados nada sabem da situação real na Ucrânia; votaram baseados em informação distorcida. Não é raro que os “votantes” nada saibam sobre o que acontece em campo, em país citado em votações na ONU. Para ter certeza disso, basta passar os olhos nas transcrições verbatim das sessões integrais de tudo que se diz nas sessões da Assembleia Geral, quando se discutem conflitos regionais ou posições oficiais de estados que os votantes consideram “distantes demais”, em termos geográficos ou políticos, de suas realidades locais ou regionais. E há os estados que não têm nem querem ter nem notícia do que realmente se passa na Ucrânia, porque votam em qualquer coisa que contribua para “confirmar” o que mais interesse à propaganda que Washington distribui para o mundo. Por exemplo, o representante da Nigéria justificou seu voto a favor da Resolução, dizendo que seu único interesse era defender os princípios da lei internacional e da Carta da ONU! Não fez sequer um mínimo esforço, inicial, incipiente que fosse, para compreender melhor a questão que realmente estava em jogo. E vários dos que votaram a favor da resolução votaram “com restrições”. O representante do Chile, por exemplo, votou a favor da resolução, mas declarou que seu governo considera inaceitáveis as sanções contra a Rússia.

Embaixador da Rússia na ONU, Vitaly Churkin
A situação é completamente diferente, quando alguns países, por pequenos que sejam, mostraram empenhado esforço em compreender o que é o quê, e tinham condições que lhes permitiam não ter de ceder à chantagem. O representante de Saint Vincent e Granadinas disse que o projeto de resolução que estava sendo votado nada tinha a ver com princípios ou com a lei internacional. E que lamentava que a Assembleia Geral se recusasse a buscar melhor informação sobre fatos históricos e sobre a verdade sobre o novo regime fascista que se instalou, por golpe, na Ucrânia.

A Rússia rejeitou a resolução porque a considera “confrontacional” – disse o embaixador Churkin da Rússia na ONU, antes de votar. Acrescentou que o texto da resolução obra para “desmoralizar o referendo” e o direito à autodeterminação do povo da Crimeia.

Disse que, mesmo assim, havia “algumas coisas corretas” no documento: fala contra ações unilaterais e contra retórica de provocação. Mas, disse o embaixador Churkin, ninguém precisa de resolução da ONU para promover essas metas: bastaria que todos começassem a agir no interesse do povo da Crimeia. A iniciativa para a reintegração da Crimeia à Federação Russa partiu do povo da Crimeia, não de Moscou – lembrou Churkin. A revogação do status de língua oficial do idioma russo, e ameaças de enviar para a Crimeia milicianos armados pelos golpistas de Kiev, geraram “massa crítica” que empurrou a península ao referendo e ao resultado do referendo, disse o embaixador russo.

Quem se dedique a examinar o procedimento naquela votação, é levado fatalmente à seguinte conclusão:

– A correlação entre os 100 votos a favor e os votos contra não reflete a realidade. Ainda que a realidade fosse 100 a 69, nem assim o quadro seria acurado. Mas o resultado real da votação foi 100 a 93.

169 países votaram (100+11+58), dos 193 países membros da ONU. Esses votos de votantes que não apareceram têm de ser somados aos votos de países que não apoiam a resolução, não, com certeza, aos votos dos que votaram “sim”. São 24 estados ausentes da votação; e esses 24 votos têm de ser somados aos 58 que se abstiveram oficialmente de votar.

Pode-se facilmente concluir que o mais claro e visível resultado da votação é que a diplomacia ocidental fracassou. 100 estados apoiaram a “teoria da integridade territorial da Ucrânia” [ou da “integridade territorial de Portugal, em 1822, contra a independência do Brasil”... (NTs)]; 93 reagiram contra. Esse afinal, foi o resultado real da “ação” do ocidente, na ONU, dessa vez.




[*] Alexander Mezyaev nasceu em Moscou 18/1/1971. De 1989 a 1991 serviu no exército soviético. Em 1997 graduou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal Kazan. Especialidade “Direito Internacional". Desde 1997, trabalha na Universidade de Gestão "TISBI".
Em 2001, defendeu tese de doutorado sobre especialidades: “Direito Internacional no Direito Europeu” – “A Pena de Morte e o Direito Internacional Contemporâneo”.
Participou da equipe de defesa do ex-presidente da Iugoslávia, Slobodan Milosevic, perante o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (2003-2006). Atualmente está participando da defesa de outros réus desse processo, o Professor Vojislav Seselj e o general Ratko Mladic. Membro da Associação Internacional de Advogados de Defesa atuando noTribunal Penal Internacional (ADC-TPIJ). É Vice Redactor-Chefe de “Kazan Jornal do Direito Internacional” (desde 2007). Esteve envolvido em projetos de pesquisa da Universidade de Leuven, na Bélgica (1997), da Universidade de Fribourg, Suíça (em 2000 e 2007), o Instituto de Direito Comparado, Lausanne, Suíça (2001), Instituto Internacional de Direito Público e Privado, Instituto TMC Asser, Haia, Holanda (2003), do Instituto Max Planck de Direito Comparado e Direito Internacional Público, Heidelberg, Alemanha (2007). Membro da Associação de Direito Internacional (Membro do Comitê de Direitos Humanos Direito Internacional); Associação Russa de Direito Internacional; Associação de Política Externa da Federação Russa; Associação Russa de Estudos Internacionais, Associação Russa de Estudos Africanos.

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