28/6/2014, [*] Conflicts
Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O Novo Califato e sua
intersecção com a Geopolítica do Oriente Médio
Iraque - Grupos étnicos-religiosos |
Como ler os eventos no Iraque? Agora
afinal temos alguns “pontos de ancoragem” de compreensão nos quais nos apoiar,
suficientemente “firmes” e que parecem lançar alguma luz sobre os eventos
recentes. Mas a verdade é que – mesmo para os que vivem cá na região – ainda há
mais perguntas, que respostas. E por que as coisas estão assim? Desconfiamos,
considerando a própria opacidade das motivações que movimentam os eventos (ruidoso
salto do DAASH ou ISIS para dentro do Iraque), estamos ante uma
complexa interpenetração de psicologia religiosa de raízes profundas (o que é
mais que mero sectarismo) com fatores
de geopolítica. Se se examina esse quadro exclusivamente
mediante a ótica de considerações geoestratégicas, há excesso de enigmas e
quebra-cabeças. Mas se se procura ler o mesmo quadro, no contexto de uma
psicologia religiosa (uma psicologia mediante a qual os mesmos eventos estão
recebendo significações a eles atribuídas por membros do DAASH e por os
muitos simpatizantes sunitas deles), então as duas esferas – a geoestratégica e
a psicológica – podem se encontrar e cruzam-se.
Que pontos de ancoragem “firmes” são
esses? O grupo DAASH “caminhou para dentro de Mosul” sem encontrar resistência
alguma. Ao contrário, a tomada da cidade foi
claramente facilitada com antecedência por grupos
da sociedade iraquiana (inicialmente não jihadistas), a saber:
ex-oficiais militares do exército desmobilizado de Sadam Hussein – alguns dos
quais eram, ou são, do Partido Ba’ath. A tomada sem derramamento de sangue de
uma cidade de 2 milhões de habitantes, por um grupo de 1.300 homens também
contou com certo grau de aquiescência de membros do atual exército do Iraque.
Em resumo, a tomada de Mosul foi
claramente preparada com antecedência; e não há dúvida de que foi fertilizada
com quantias substanciais de dinheiro (cuja fonte original permanece ignorada).
ISIS/ISIL/DAASH ocupa Mosul |
Em segundo lugar, o estabelecimento
desse “Califato” do DAASH recebeu apoio de muitos sunitas no Iraque e em
outros pontos, sunitas cuja história pregressa poderia levar a supor que eles
temeriam regime desse tipo. O que, afinal, ba’athistas seculares e ex-militares
com formação e treinamento profissionais poderiam ter em comum com a
intolerância violenta do DAASH e a insistência com que o grupo exige
submissão ampla e irrestrita ao seu domínio? Será que não sabem da amarga
experiência dos reformistas utópicos urbanos de Allepo, nas mãos dos vingativos
revolucionários jihadistas que chegaram?
Seja como for, há fato claro (embora
difícil de admitir): muitos sunitas iraquianos (e sunitas em geral) – grupo bem
mais amplo do que se poderia definir como “eleitorado” do DAASH – dizem
hoje que prefeririam viver a precariedade da vida sob a guilhotina e um regime
revolucionário “jacobino”, que sob o governo “xiita” de Maliki. Isso nos diz
algo bastante profundo sobre a psicologia daqueles sunitas. (Embora se deva
considerar também que muitos sunitas estão fugindo de lá; e que também há
sunitas que se opõem ao DAASH).
Em terceiro lugar, a “guerra-relâmpago”
[orig. blitzkrieg] contra o Iraque foi muito bem executada
(profissionalmente) em termos militares; e é politicamente muito astuta.
O DAASH conseguiu arrancar-se da
ignomínia da já inevitável derrota de sua missão “divina” na Síria – com todos
os sobretons da história antiga do Islã que aquela derrota – fatalmente
implicaria – e saiu-se vitorioso contra a fragilidade, de cristal, do Iraque. O
que era derrota iminente foi convertido em gesto
de audácia, o qual (até aqui) fez voar em cacos o
delicado cristal iraquiano – e expôs cruelmente todos os pontos fracos do
estado iraquiano.
A audácia do assalto, e o caminho aberto
para que os sunitas imaginem
o nascimento de uma esfera sunita (um “paraíso-seguro” num paraestado
[orig. statelet] que recobriria Síria e Iraque com certeza tocou numa
corda profunda da psique dos sunitas e do Golfo. Um ex-embaixador do Qatar nos
EUA alertou o governo Obama contra qualquer intervenção militar a favor de
Maliki: segundo ele, seria vista como “ato
de guerra” por toda a comunidade dos sunitas árabes. (Embora não esteja
sendo vista como tal pela psicologia sunita síria: encontramos sírios
que zombavam do segundo colapso militar dos iraquianos, comparando-o à
invencível resistência que os sírios impuseram ao ISIS).
Norte do Iraque - Petróleo & Gás |
É possível atribuir esse repentino
entusiasmo pelo DAASH simplesmente a um desejo dos ba’athistas de vingar-se? Não há dúvidas de que os
ba’athistas foram derrubados do poder, foram expurgados politicamente do
governo, foram expulsos do exército, foram atacados, primeiro pelos EUA e,
depois, pelas milícias do novo governo iraquiano; e também não há dúvidas de que
muitos em Mosul, Tikrit e Anbar cultivam profunda antipatia pelo Irã e pelo
novo governo, orientado a favor do Irã, em Bagdá – velhas antipatias que tem
raízes na Revolução Iraniana. Muitos sunitas iraquianos estão (com razão)
ofendidos e furiosos.
Mas só o ba’athismo per se não dá
conta de todo esse improvável pacto faustiano entre alguns ba’athistas e o DAASH.
O ba’athismo iraquiano foi profundamente esvaziado de conteúdo ideológico; e no
início da guerra de 2003 já se provou insuficiente como alguma espécie de
“identidade”. A identidade ba’athista tende sempre a dissolver-se em
circunstâncias em que as tensões sectárias aumentem; e tende a ganhar potência
máxima quando as tensões sectárias adormecem. Quando as tensões sectárias
aumentam, a realidade é que elas, com muita facilidade, superam outras
identidades. (Não implica dizer que tudo que está acontecendo no Iraque possa
ser reduzido a sectarismos. Há política e geoestratégia também envolvidas; mas
é a tensão sectária – não alguma ideologia – que está estimulando a atração que
está arrastando os ba’athistas na direção desses takfiris do ISIS).
Outro modo de olhar esses eventos é
imaginar como apareceriam se considerados sob uma ótica religioso-psicológica.
Essa, em todos os casos, pode ter sido a via pela qual os seduzidos pela
“guerra-relâmpago” do ISIS parecem estar percebendo a história toda que
veem desenrolar-se à sua frente. O chamado “Despertar” foi visto por muitos
sunitas como algum renascimento especificamente sunita.
Recrutamento xiita em Bagdá - Exames Médicos |
De início, o “Despertar” pareceu
oferecer vitórias indiscutivelmente claras. Prometia ser um triunfo da batalha
de Badr (quando uma pequena força de 313 seguidores do Profeta, em 624,
derrotou um exército de Meca, três vezes maior. Mas depois veio o revide (a
atual Síria), ou, para acompanhar a mesma alegoria, a batalha sunita do Uhud
(na qual os seguidores do Profeta foram derrotados, em 625, efeito de um
contingente chave ter desobedecido às instruções que recebera). Mas depois
desse fracasso, que pareceu pôr em risco todo o projeto muçulmano, as forças do
Profeta nunca mais perderam sequer uma batalha.
É possível que o DAASH veja a
derrota que sofreram na Síria por um prisma similar a esse: como vitória xiita
que ameaçaria todo o projeto sunita (sobretudo porque estados-modelo sunitas
ruíram nesse período). As primeiras vitórias surpreendentemente fáceis do DAASH
no Iraque, portanto, nesse modo de ver, podem ser tomadas como as trombetas que
anunciam a próxima derrota de Maliki e do Irã – assim como vieram as vitórias
do Profeta, depois do fracasso no Uhud.
Essa mitologia pode ter ecos profundos e
fortes nos Estados do Golfo, mas, mais prosaicamente, os sauditas podem bem
sentir (em sua batalha contemporânea de “Uhud” que, hoje, é a Síria),
que o Irã seguiu a “política do sangue” – como me disse um interlocutor que
conhece bem a Arábia Saudita: foi derramado sangue sunita na Síria; e, se se
trata de restaurar o “equilíbrio” na região, a política do sangue tem de ser
também equilibrada.
Se as únicas ferramentas com que os sunitas
podem contar são o ISIS e os restos do antigo exército de Sadam Hussein,
que seja. É possível que alguns, no Golfo, vejam
tudo isso como meio para trazer de volta um equilíbrio geoestratégico:
os protegidos do Irã pagaram com sangue (algumas das fragilidades do Irã foram
expostas no Iraque), e emerge algo que se pode ver como território sunita
(embora seja o “califato” do ISIS). Alguns líderes no Golfo podem, sim,
especular que aí há uma base para interpretar a aproximação dos EUA com o Irã;
e pode ser a base de um acordo político entre Arábia Saudita e Irã.
Jovens alistam-se aos milhares nas milícias xiitas |
Há algo de realista nisso? Provavelmente,
não: a atual ardente paixão dos sunitas do Iraque e do Golfo pelo ISIS pode
esfriar de repente, e provar-se volúvel (como se viu
acontecer na Síria, quando o ISIS foi
“testado” no poder). É improvável que o DAASH venha a “tomar”
militarmente o Iraque (só até aqui, suas incursões já uniram contra o inimigo,
facções de xiitas iranianos tradicionalmente adversárias), e o novo “califato”
encarará hostilidades vindas de todas as suas fronteiras: do exército sírio, na
porção síria do “califato”; dos curdos; do Irã, em Diyala; e da maioria dos
iraquianos.
Se o Irã fizer seu jogo
com máxima cautela – como está fazendo até aqui – mantendo unidas as
facções xiitas; cuidando para impedir que os sunitas iraquianos não satisfeitos
com o ataque pelo DAASH sejam jogados nos braços do ISIS por
efeito da super violência dos xiitas iraquianos; e se Teerã conseguir gerenciar
a desconfiança instintiva inata de Maliki, os iranianos muito provavelmente
conseguirão evitar o seu próprio “sangramento”, bem longe disso. Mas todos
esses planos e cálculos até aqui bem-sucedidos podem ruir por águas (areias)
abaixo, no caso de o ISIS atacar com sucesso os santuários [xiitas] em
Samarra, Kerballah ou Najaf. Nesse caso, deve-se esperar guerra sectária total,
com força máxima.
Claro que é fácil para observadores
externos culpar o
primeiro-ministro Maliki por todos os padecimentos do Iraque. Mas não foi
Maliki quem criou a região autônoma curda, ou quem armou a guerrilha curda Peshmerga;
nem foi Maliki quem desmantelou o exército de Sadam Hussein e iniciou a
des-ba’athificação ou quem promoveu o expurgo dos sunitas, do poder. É verdade
que o primeiro-ministro é neuroticamente desconfiado de conspirações urdidas
contra ele – patologia que esclerosou e esterilizou toda a política iraquiana.
Mas suas desconfianças e cautelas, por mais que sejam exageradas e
politicamente danosas, têm, indiscutivelmente, alguma base na realidade.
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[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão
mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente
Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes:
observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas
para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a
forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até
mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas,
desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas
resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para
abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
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