quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Putin prefere a paz, por piores que sejam as condições

4/2/2015, [*] Israel Shamir, The Vineyard of the Saker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Para Putin, a Ucrânia é importante, mas não é item sine qua non, não é o único problema do universo. Nisso, Putin e Obama até se parecem. Mas com uma grande diferença: os russos querem a Ucrânia em paz; os EUA querem o país em guerra.

The Saker
Em fevereiro ainda falta muito tempo até a primavera, lamentou o poeta Joseph Brodsky. De fato, ainda neva pesadamente em Moscou e em Kiev, e nas intermináveis estepes das terras das fronteiras russo-ucranianas, mas ali a neve está tinta de sangue. Soldados detestam combater no inverno, quando a vida já é tão difícil, naquelas latitudes, mas ainda há combates no Donbass devastado pela guerra, e os EUA preparam-se para escalar, fornecendo armamentos sofisticados ao governo de Kiev.

Cansados do sítio e dos bombardeios intermitentes, milicianos da resistência anti-Kiev esqueceram a neve e retomaram o aeroporto de Donetsk. Retomar esse aeroporto, com seus túneis do tempo de Stálin, símbolo do sólido trabalho de defesa dos soviéticos, foi enorme desafio para uma milícia subequipada. As edificações de vários pisos subterrâneos foram erguidas para suportar ataque nuclear; pois mesmo assim, depois de meses de luta, os milicianos da resistência anti-Kiev expulsaram o inimigo e retomaram o aeroporto.

Numa ofensiva ainda maior, os milicianos da resistência anti-Kiev cercaram as tropas de Kiev no bolsão de Debaltsevo, e Kiev já tenta um cessar-fogo. A resistência anti-Kiev ainda espera conseguir expulsar completamente o inimigo, de terras do Donbass; no momento, controlam apenas um terço do Donbass; mas o presidente russo só pensa em breques: prefere a pior paz, à melhor guerra.

Para Putin, a Ucrânia é importante, mas não é item sine qua non, não é o único problema do universo. Nisso, Putin e Obama até se parecem. Mas com uma grande diferença: os russos querem a Ucrânia em paz; os EUA querem o país em guerra.

Vladimir Putin
A Rússia preferiria ver a Ucrânia unida, federalizada, em paz e próspera. A alternativa de dividir o Donbass não é muito tentadora: o Donbass é muito fortemente ligado ao resto da Ucrânia, e não é fácil romper aqueles laços. A guerra já mandou embora do Donbass e da Ucrânia, para a Rússia, milhões de refugiados, o que já sobrecarrega os sistemas sociais russos. Putin simplesmente não pode dar as costas ao Donbass – nem o povo russo permitiria, ainda que ele tentasse. Homem cauteloso, Putin não quer envolver-se em guerra sem fim à vista. Assim sendo, ele tem de navegar na direção de algum tipo de paz.

Tive um encontro com fonte russa muito bem informada, de alto escalão, que partilhou comigo – e partilho aqui com vocês – alguns dos pensamentos “internos”, sob a condição de que seu nome não fosse divulgado.

Por mais que o ocidente tenha absoluta certeza de que Putin sonha com recriar a União Soviética, verdade é que o presidente russo fez e faz tudo que encontra ao seu alcance para salvar a Ucrânia da desintegração, disse minha fonte. Eis o que a Rússia, realmente, já fez para devolver a paz à Ucrânia:

●– a Rússia apoiou o acordo negociado pelo ocidente dia 21/2/2014, mas apesar de já haver o acordo, os EUA, no dia seguinte (22/2/2014), ordenaram o golpe ou “negociaram um mecanismo para uma transição de poder”, nas palavras de Obama;

Barack Obama
●– depois do golpe, o sudeste da Ucrânia não se submeteu ao novo regime de Kiev e rebelou-se. Moscou ainda chegou a pedir à resistência anti-Kiev no Donbass que não levasse adiante o referendo de maio (o referendo foi mantido, contra o apelo de Putin);

●– Moscou reconheceu os resultados de eleições fraudadas, em maio, realizadas pelo regime golpista de Kiev depois do golpe; e reconheceu Poroshenko como presidente de toda a Ucrânia – embora não tivesse havido eleição no sudeste do país e os partidos de oposição a Kiev estivessem proscritos.

●– Moscou não reconheceu os resultados das eleições de novembro no Donbass, para indignação de muitos nacionalistas russos.

Todos esses passos foram muito impopulares na sociedade russa, mas Putin insistiu neles para promover uma solução pacífica para a Ucrânia. Alguns líderes guerrilheiros no Donbass foram convencidos a retirar-se. Em vão: todos os movimentos de Putin foram ignorados pelos EUA e pela União Europeia, que encorajaram cada vez mais o “partido da guerra” em Kiev.

Para os EUA, Kiev sempre agia corretamente, fizessem o que fizessem. Com a federalização é possível a paz na Ucrânia, disse minha fonte

Eis porque dois dos mais importantes parâmetros dos acordos de Minsk (entre Kiev e Donetsk) foram itens dos quais ninguém antes ouvira falar: reformas constitucionais e reformas socioeconômicas. A Rússia quer assegurar a integridade territorial da Ucrânia (sem a Crimeia), mas essa integridade só pode ser alcançada mediante a federalização do país, com as regiões beneficiadas por considerável grau de autonomia. O oeste e o leste do país falam línguas diferentes, cultuam diferentes heróis, têm diferentes aspirações. Só podem ser mantidas juntas, se a Ucrânia for estado federal, como os EUA, a Suíça ou a Índia.

Putin cumprimenta Poroshenko diante
de euroburocratas em Minsk
Em Minsk, os lados concordaram em estabelecer uma comissão para as reformas constitucionais, mas o governo de Kiev renegou tudo. Em vez do que fora acordado, criaram uma pequena comissão no Parlamento, praticamente secreta. Tão pequena e tão secreta que o movimento foi condenado pela “Comissão Veneza”, um corpo que dá aconselhamento ao Parlamento Europeu, sobre questões constitucionais. O povo de Donetsk também não aceitou aquele arranjo, em tudo diferente do que fora estabelecido em Minsk.

Sobre integração, ficara decidido em Minsk que o Donbass seria reintegrado à Ucrânia. Foi grave desapontamento para o Donbass (que preferiria ser integrado à Rússia), mas aceitaram –, e foi quando Kiev tentou sitiar o Donbass, fechou bancos, parou de comprar carvão do Donbass, deixou de pagar aposentadorias e pensões. As tropas de Kiev passaram a bombardear diariamente a cidade de Donetsk, de um milhão de habitantes (em tempos de paz). Em vez da anistia para os rebeldes da resistência anti-Kiev, como ficara decidido em Minsk, o que se viu foram mais e mais soldados de Kiev deslocados para o leste.

Os russos não desistiram dos acordos de Minsk. Aqueles acordos podem trazer paz, mas, para isso, têm de ser aplicados. É possível que o presidente Poroshenko de Kiev se interessasse por aplicá-los, mas o partido da guerra em Kiev, que é telecomandado pelo ocidente, derrubaria o governo de Poroshenko se visse nele qualquer sinal de interesse pela paz. Paradoxalmente, o único meio para obrigá-lo a fazer a paz, é a guerra. E a Rússia muito apreciaria ver o ocidente pressionando os governos-clientes em Kiev.

A resistência anti-Kiev e seus apoiadores russos usaram a guerra para forçar o ocidente a assinar os acordos de Minsk: a ofensiva dos rebeldes em Mariupol no Mar Negro foi muitíssimo bem-sucedida; e Poroshenko preferiu ir a Minsk, para manter Mariupol. Depois daquilo, Kiev e Donetsk tiveram uns poucos cessar-fogo, trocaram prisioneiros de guerra, mas Kiev recusa-se a implantar as demandas constitucionais e socioeconômicas do acordo de Minsk.

Não há sentido algum no cessar-fogo, se Kiev o usa para se reorganizar e atacar novamente. O cessar-fogo teria de levar a uma reforma constitucional, diz minha fonte; a uma reforma negociada em diálogo aberto e transparente entre as regiões e Kiev. Sem uma reforma, o Donbass (também chamado Novorrússia) irá à guerra. Assim sendo, a operação Debaltsevo pode ser considerada um meio para forçar Poroshenko a render-se à paz.

Forças da Junta de Kiev em azul
Forças da Novorrússia em vermelho

(clique na imagem para visualizar)
Segundo minha fonte, a Rússia não pretende envolver-se nem na guerra nem em negociações de paz. Os russos fazem absoluta questão de manterem-se à distância – enquanto os EUA fazem a mesma absoluta questão de apresentar a Rússia como “o outro lado” do conflito.

Simultaneamente, as relações russo-norte-americanas foram empurradas 40 anos para trás, de volta à emenda Jackson-Vanik de 1974, pela lei “Liberdade para a Ucrânia” [“Support Act” de 2014]. O Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, considerou essa lei um desenvolvimento infeliz, mas apenas temporário. Os russos não partilham desse otimismo: para ele, aquela lei deu legalidade às sanções anti-Rússia.

Os EUA tentam envolver outros estados na sua guerra contra a Rússia, com algum sucesso. Efeito de uma dessas ações de “sedução”, a chancelerina alemã Kanzlerin Angela Merkel eliminou todas as organizações, estruturas e laços construídos ao longo de vários anos, entre Alemanha e Rússia. Cada visita de Joe Biden provoca mais uma conflagração.

Os russos continuam muito gravemente incomodados com a história do ataque que derrubou o Boeing da Malaysia Airlines. Em todas as reuniões de alto nível com norte-americanos, os russos falam do surto histérico de acusações de que o avião teria sido derrubado pela resistência anti-Kiev usando mísseis russos. Já se passaram seis meses da tragédia, mas os EUA não apresentam uma única prova de qualquer envolvimento russo ou da resistência anti-Kiev. Não mostram fotos de seus satélites, nem gravações feitas nos seus sistemas de vigilância aérea que cobre toda a Europa Oriental. Minha fonte disse que os funcionários norte-americanos de mais alto escalão já não insistem na versão de “ataque russo”, mas arrogantemente se recusam a apresentar pedido formal de desculpas pelas acusações anteriores completamente sem qualquer fundamento. Pessoalmente, repetem “sorry”, “sorry”.

Cabine do MH17 da Malaysian Airlines metralhada pela Força Aérea da Junta de Kiev
Mesmo assim, os EUA não querem deixar a bola parar. Insistem que não se interessam por uma “rendição” russa, que qualquer confronto lhes parece inoportuno e caro demais, mas os EUA querem que a Rússia os apoie na negociação sobre o programa nuclear iraniano; sobre o destino final do arsenal químico sírio, no problema da Palestina. Os russos respondem que já ouviram essa conversa, idêntica, durante todo o ataque à Líbia (quando os EUA mentiram e os engambelaram). E que absolutamente não acreditam em nada que os norte-americanos digam.

Há diferenças importantes de opinião entre Rússia e EUA em praticamente todos os campos. Há um traço comum a todas as questões: da Síria ao Donbass, os russos do presidente Putin trabalham a favor da paz.

No momento, os russos convidaram figuras da oposição síria e representantes do governo sírio para conversações em Moscou. Vieram, conversaram, partiram, e voltarão a encontrar-se. Podem até encontrar uma via de acordo e paz... mas os norte-americanos dizem que não, de modo algum, que ninguém jamais se reconciliará com a presidência de Bashar al-Assad, e que lutarão até a última gota de sangue sírio para derrubá-lo do poder.

Não é que os norte-americanos sejam animais viciados em sangue humano; é que a guerra faz sentido para eles. Cada guerra no planeta dá suporte ao dólar norte-americano e revigora o índice Dow Jones, porque o capital procura paraíso seguro e o encontra [ainda] nos EUA.

Desdolarização
Os norte-americanos nem pensam no destino dos sírios que fugiram para a Jordânia – ou dos ucranianos que fogem para a Rússia em números sempre crescente. Que vergonha para os EUA!

A Síria era país pacífico e próspero, o diamante do Oriente Médio, até ser arruinado pelos islamistas sustentados pelos norte-americanos. A Ucrânia foi a parte mais rica da URSS, até ser arruinada pela extrema direita neonazista e pelos oligarcas apoiados pelos norte-americanos.

Joseph Brodsky anteviu amargamente, em 1994, quando a Ucrânia declarou-se independente da Rússia, que os ucranianos desentendidos ainda declamariam versos da poesia russa, até no leito de morte. A profecia está bem perto de se cumprir.

[*] Israel Shamir é um escritor, jornalista e antissionista. De origem russo-judaica, ele nasceu em Novosibirsk, na Sibéria, emigrou para Israel em 1969. Lá, trabalhou como jornalista e tradutor. Seus artigos sobre a ocupação da Terra Santa pelo sionismo estão reunidos em um sítio eletrônico e em três livros: Galilee Flowers, Cabbala of  Power e Masters of  Discourse, também disponíveis em francês, espanhol, italiano, alemão e russo. Em 2004, envergonhado pelo domínio do sionismo, abandonou o judaísmo e abraçou a fé cristã ortodoxa, sendo batizado na Igreja Ortodoxa de Jerusalém e Terra Santa pelo arcebispo Theodosius Attalla Hanna. Shamir vive atualmente em Jaffa e viaja frequentemente a Moscou e Estocolmo. 

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