10/4/2015, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
“…a olhadela
Por cima dos
ombros, ao terror primitivo lançada.”
T.S.Eliot, Quatro quartetos, The Dry Salvages
(trad. Ivan Junqueira [1])
Guerra Fria 2.0 |
São tempos tristes – e perigosos. Somos impotentes ante as perenes agonias no Oriente Médio ou o passo a passo rumo à Guerra Fria 2.0; ante as incontáveis ramificações da Guerra Longa do Pentágono ou a pauperização das classes médias no mundo ocidental. Impossível não sentir que está em curso uma guerra civil global. Mas pelo menos, em algumas quebradas obscuras do OTANstão, há uns poucos, dos melhores e mais brilhantes, que, em silêncio, pensam.
Num pequeno livro Stasis. La Guerra Civile come Paradigma Politico – baseado em dois seminários em Princeton e disponível em italiano e francês, mas ainda não em inglês, o mestre filósofo Giorgio Agamben identifica a guerra civil como o sinal fundamental de politização no Ocidente. A questão chave é se essa proposição foi modificada pelo mergulho de nossa civilização na dimensão da guerra civil global.
Stasis é o nome que tinha a guerra civil que provocou dificuldades dentro da antiga polisgrega. Hannah Arendt, em 1963, já estava conceitualizando a guerra civil global. Agamben argumenta que em termos históricos globais, a guerra civil está hoje representada pelo terrorismo.
Assim, se Foucault acertava ao qualificar a política moderna como “biopolítica”, diz Agamben:
(...) o terrorismo é a forma que a guerra civil assume, quando a vida se torna um jogo político.
Trata-se sempre do equilíbrio entre oikos (a família [a casa]) e polis (a cidade) como os gregos – sempre eles – o identificavam. Assim, quando a polis se autoapresenta sob a face reconfortante e segura de um(a) oikos, como na tão reconfortante imagem da “casa da Europa” que Bruxelas nos vende, ou no “mundo como espaço absoluto da administração econômica global”, diz Agamben:
(...) a stasis, que não pode ser posta entre oikos e polis, torna-se o paradigma de qualquer conflito e assume a figura do terror.
Assim, terrorismo = guerra civil global. O passo seguinte, que Agamben não dá, nesse ensaio, afinal, curto – seria qualificar as tantas declinações de terrorismo; não só do tipo ISIS/ ISIL/Daesh, mas também o terrorismo de Estado, e a matança indiscriminada de civis pelo mundo, pelos nossos suspeitos imperiais e subimperiais de sempre.
O barbarismo começa em casa
Como o terrorismo é uma forma de barbarismo, outro ensaio curto – L’Europe a Deux Visages [A Europa tem duas caras] – do mestre sociólogo Edgar Morin, dá um passo adiante, ao nos conduzir por uma rápida mas muito ambiciosa antropologia do barbarismo humano.
O Barbarismo do Complexo Industrial-Militar |
Para Morin, as ideias de Homo sapiens, Homo faber e Homo economicus são insuficientes. Afinal, o Homo sapiens pode rapidamente se converter em Homo demens (basta ver o infinito arquivo político de delírio e demência, de Nero a Dick Cheney). O Homo faber pode também produzir coleção infindável de mitos. E o Homo economicus pode converter-se emHomo ludens, uma espécie de jogador que se diverte (exceto o Ministro Schauble, das Finanças da Alemanha).
A barbárie humana pertence, é claro, ao Homo demens; ávido produtor de delírios (o Califa Ibrahim do Daesh), de ódios (sauditas contra xiitas), de desprezo (dos ricos pelos despossuídos) e – os gregos, outra vez – de húbris (os tribunais e tribulações do Império do Caos). Para nem falar, como Morin nos faz lembrar, que a tecnologia introduz sua modalidade própria de barbarismo: o barbarismo do plano mais frio, glacial, do puro cálculo.
Morin nos mostra que a Europa pode não ter o monopólio do barbarismo, mas com certeza manifestou de modo mais duradouro, massivo e inovador todas as formas de barbarismo que a história conheceu. E Morin associa toda essa inovação à formação do moderno estado-nação europeu, na Espanha, França, Portugal, Inglaterra.
O caso mais danoso aconteceu na Espanha. Nas áreas islâmicas – Al Andalus – havia muita tolerância com cristãos e judeus; e na zona cristã, tolerância com muçulmanos e judeus, até 1492.
E o que aconteceu em 1492?
Não apenas o descobrimento da América e o início da conquista do Novo Mundo. Esse ano marca também a conquista de Granada, último bastião muçulmano na Espanha; e pouco depois veio o decreto que ordenava que judeus e muçulmanos escolhessem entre conversão e expulsão. Essa invenção europeia – a nação – foi construída desde o primeiro momento sobre um alicerce de purificação religiosa.
Sim, mas, pelo menos, o Ocidente foi também abençoado pelo Renascimento – que gestou o humanismo europeu. Para Morin há duas explicações divergentes para a essência do humanismo. Uma exalta a tradição judaico-cristã. A outra trata da Grécia Antiga – porque é no pensamento grego que o espírito e a racionalidade humanos afirmam a própria autonomia. Pode-se argumentar que aquele humanismo desenvolveu uma mensagem grega, revitalizada na Itália do Renascimento. Alguns minutos de contemplação frente à Primavera de Botticelli no [museu] Uffizzi devem bastar, como comprovação da teoria.
Primavera de Botticelli |
Auschwitz = Hiroshima
Morin também nos lembra que:
(...) na cidade democrática de Atenas, a deusa Atenas não governa: ela protege.
O verdadeiro significado de democracia é que:
(...) cidadãos responsáveis têm nas mãos o governo da cidade.
Difícil encaixar Merkel, Cameron, Hollande ou o novo capo da Casa de Saud nessa definição.
Morin também nos lembra de que, paralelamente enquanto se desenvolvia, o barbarismo europeu sempre tratou O Outro – pensem no Sul Global – como bárbaro, em vez de celebrar alguma diferença e de ver nele uma oportunidade de mútuo enriquecimento pelo conhecimento e pelas relações humanas.
Há exceções, claro. E nós, na nossa miserável condição atual, ainda podemos promover as lições de Spinoza – para quem a razão é soberana; não “uma razão fria, glacial, mas uma profunda razão compassiva”. Spinoza foi espírito independente, como Montaigne – outro de nossos modelos inspiradores.
Hiroshima e Auschwitz - Memorial em Hiroshima |
Morin é implacável; se Auschwitz foi um supremo barbarismo, Hiroshima também foi . Para ele, corretamente, Bruxelas é uma “tecnoburocracia europeia”; insiste que:
(...) a Turquia é “potência europeia”, especialmente depois da queda de Bizâncio; e carinhosamente observa que “a cultura russa trouxe sensibilidade e profundidade humana à cultura europeia”, dado que “a Rússia também é europeia”.
Tente explicar isso aos promotores da Guerra Fria 2.0.
Quer dizer que nem tudo está perdido, embora tenhamos de admitir que há barbarismo também nosso. Morin nos diz que pensar seriamente sobre o barbarismo é contribuir para regenerar o humanismo. Mesmo sob sítio, mesmo sob o aegis de uma guerra civil global, temos de resistir com nossos corações e mentes.
No pasarán.
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Nota dos tradutores
[1] ELIOT T. S. Poesia. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981 (Coleção Poiesis).
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
– Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
− Adquira seu novo livro Empire of Chaos, publicado no final de 2014 pela Nimble Books.
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