Publicado em 22/09/2010 por
Em uma foto que circula na internet como pertencente à “jovem Dilma”, há uma graça de moça, como toda graça que é só futuro, formas e felicidade. A pessoa que divulgou essa foto colorida, à margem de um tranquilo riacho, deve ter desejado uma atualização para que os jovens do Brasil vissem Dilma como uma guapa e linda moça. Bem que entendemos. Mas nessa atualização houve um inarredável paradoxo. Trazer o passado para o presente não é o mesmo que vestir na forma passada a forma presente. Uma “atualização” assim apenas recria cara, paisagem e roupas como um cenário de novela de televisão.
Para nada falar de asperezas técnicas, por exemplo, de uma foto digital em 1970, ou mesmo de inadequações físicas, porque a “jovem Dilma” ali está sem os dentes de coelhinho, a foto exibe um semblante puro, claro, a sorrir em um Brasil livre, sem a mácula do vampiro Médici. Essa jovem poderia ser uma nossa filha, bela, guapa e feliz. No entanto há nela um erro mais essencial, que vai além do que venha parecer uma jovem Dilma assim: os militantes contra a ditadura brasileira, naquele tempo, não tiravam fotos, a não ser, claro, as indispensáveis 3 x 4 de documentos. As raras imagens arrancadas de surpresa em dias de álcool e irresponsabilidade deixavam uma grande angústia. E se a foto “caísse”, vale dizer, e se a foto fosse aprisionada em alguma busca dos militares ou policiais?
Em outra foto de Dilma, a imagem é ainda mais bela porque verdadeira. Para falar dela seriam necessários muitos artigos definidos em textos, poemas e palavras de ardor e reflexão. Na imagem de óculos pesados, em preto e branco, Dilma se une a outras mulheres que vimos nos malditos tempos de 1970. Mas eram mulheres de tal altura, que ficamos à beira de cair em novo paradoxo: o de querer que voltem suas pessoas daqueles anos, mas sem a infâmia das circunstâncias e pesadelo daquele tempo.
Em lugar da pura orquídea pura pétala, de cor fresca e fugaz, a Dilma na sua foto real remete mais à pessoa mesma, de carne e luta, determinada em alcançar um mundo além do interesse de mocinhas bonitas de sua classe, aquele que se podia resumir em três cês, como o velho CC: Carro, Casa e Carreira. Em preto e branco, como um filme de roteiro de Semprum*, vemos uma Dilma que vislumbramos em 1970, multiplicada em outras à sua semelhança, que cresciam como guerreiras, e por isso se tornavam mais fêmeas. Como uma, a quem disfarcei com o nome de Cíntia no romance Os Corações Futuristas. No Recife, em plena censura e terror ela gritava aos companheiros que a cercavam:
“Eu sou subversiva! Falem, podem dizer, não me importo: eu sou subversiva! Eu quero é virar esse sistema de cabeça para baixo". E lembro que ouvíamos isso, e tal ordem mais alta calava fundo no peito de todos, pois também não encontrávamos lugar naquela ordem/desordem da ditadura. Aquele "Eu sou subversiva" se transformava em um sentimento, que nos dizíamos em voz silenciosa e perfurante: "ela tem a coragem de avançar contra a injustiça que nos sufoca. Que mulher!"
Assim como ela, assim como o seu gênero, pessoa e qualidade, foi Soledad Barrett, que escreveu para a mãe um último poema, como uma predestinação:
“Mãe, não sofras se não volto
Me encontrarás em cada moça do povo
deste povo, daquele, daquele outro
do mais próximo, do mais longínquo
talvez cruze os mares, as montanhas
os cárceres, os céus
mas, mãe, eu te asseguro
que, sim, me encontrarás!”
Naquele momento em que víamos mulheres à imagem e semelhança de Dilma, nós não podíamos prever, sequer sonhar com o Brasil em que uma delas subiria para a presidência. Pois como podíamos prever o pássaro que canta agora no jardim em 1970? Sentíamos apenas os abalos que nos davam pessoas desse fogo, e não sabíamos interpretá-las, porque em nós se misturavam admiração, amor e força além dos limites da própria covardia.
Essa Dilma em preto e branco, de óculos pesados, em resumo, é a pessoa/mulher com quem todos crescemos. Ela é uma sobrevivente, como todos nós, como, enfim, todo o povo brasileiro. Como não salvá-la de todos os assaltos das múmias da ditadura? Como não guardá-la, como um bem precioso, contra os velhos de todos os preconceitos de classe? Fazemos isso não por dever, mas por uma defesa da cidadania de nosso sonho. Estamos vivos, bulindo e loucos de emoção Quem diria? Há um gozo imenso em sobreviver tendo posto em risco a sobrevivência. E sobreviver como no próximo 3 de outubro, ah, isso vai além dos números das urnas. Como não saudá-la?
Salve, Dilma. Os novos tempos anunciados por Lula crescem com a tua presença.
Jorge Semprum* - Ver
Extraído do Direto da Redação