13/9/2010, Juan Cole, Informed Comment – Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Vídeos em Al-Jazeera
http://www.youtube.com/watch?v=T2VW3sinTkc
“O referendum turco explicado” [em inglês]
http://www.youtube.com/watch?v=YcYG7vg6tvE
COMENTÁRIO DE UM BLOGUEIRO TURCO
(na batalha, lá como cá – e em todo o planeta –, o coitado, contra as revistas (NÃO)Veja e os “especialistas” de televisão e jornalões locais – Vila Vudu):
Emin Orhan // Sep 13, 2010 at 4:43 am
Primeiro de tudo, a ideia de que as pessoas não sabiam sobre o que estavam votando, e de ridicularizar o referendum de ontem (“seja lá o que tenha sido votado”) não passa de manifestação do ódio clássico do ocidente contra qualquer democracia no mundo muçulmano, reforçado pela propaganda e pelas mentiras distribuídas pelo Dogan Media Group [deve ser o Grupo Abril, da Turquia!]. De onde tiraram a ideia de que as pessoas não sabíamos o que estávamos escolhendo? Alguma pesquisa sugeriu isso?
Minha impressão pessoal é que as pessoas sabiam, sim, muito bem, o que estavam escolhendo.
Como é possível que tantos jornais errem tanto sobre tantas coisas! A resposta é: porque não fazem outra coisa além de copiar-colar as bobagens e mentiras publicadas pelos veículos do Grupo Dogan. De que adianta apresentar-se como “professor de antropologia da Boston University, especialista em cultura turca contemporânea”? Coitados dos alunos!” (Kamil Pasha Blog)
A questão na blogosfera nos EUA parece ser se o referendum de ontem, sobre mudanças na Constituição turca, foi “melhor” para a democracia ou “melhor” para a sharia (sistema de leis muçulmano, semelhante ao cânone da Igreja Católica) contra a qual toda a direita nos EUA está hoje mobilizada).
Para começar: não se trata, não, de modo algum, de alguém estar propondo que a Turquia adote leis muçulmanas medievais, incluindo o governo perpétuo do Partido Justiça e Desenvolvimento [turco APK] do primeiro-ministro Erdogan. As mudanças trabalham contra, isso sim, a discriminação contra os religiosos e o papel público da religião na Turquia.
As mudanças aprovadas no Referendum de ontem apenas tornam um pouco mais difícil que os poderes institucionais turcos continuem a marginalizar os religiosos. Mas, que eu saiba, nenhuma das mudanças tem qualquer coisa a ver diretamente com a religião ou a sharia. (Ontem foram aprovados, por referendum, na Turquia, o direito de greve e o direito de criminosos acusados de crimes civis serem julgados por tribunais civis, não por tribunais militares, como antes. O que teria isso a ver com a sharia?!)
Segundo, os cristãos evangélicos e os católicos norte-americanos que querem proibir o aborto (e por motivação exclusivamente religiosa) não fazem outra coisa, nos EUA, que tentar impor a todos os cidadãos a sua sharia. Quanto mais se manifestam contra o aborto, nos EUA, mais misturam religião e política – nos EUA, não na Turquia.
A Turquia tem sido governada há décadas por uma semiditadura secular, na qual o exército é guardião de valores ditos nacionais e laicos, impostos de cima para baixo. O secularismo turco exige militares não-religiosos, construído pelo modelo francês, no qual o governo vê-se como fiscalizador ativo das crenças e das instituições religiosas; o modelo turco é diferente do modelo dos EUA, no qual se espera que o governo não interfira em questões religiosas e de consciência. Para realizar esse objetivo considerado “secular”, o exército turco fiscaliza ativamente os cadetes e oficiais, à caça de qualquer sinal de que pratiquem algum tipo de religião. E onde e quando se observem sinais de qualquer prática religiosa, os soldados e oficiais são sumariamente expulsos. Um velho intelectual turco, que foi obrigado, por ser administrador de uma universidade, a depor num desses processos sumários de expulsão de militares, disse-me pessoalmente que, até hoje, tem remorsos pelo que fez. Em outras palavras, o corpo de oficiais turcos [antes das reformas ontem aprovadas] é exatamente o contrário de um corpo de soldados dos EUA, no qual ninguém tem de declarar-se ateu e todos podem praticar sua religião, católica romana, cristã evangélica ou outra.
A outra instituição turca que tem praticado ativa discriminação contra os muçulmanos que se candidatam a cargos públicos é o Poder Judiciário.
O Referendum [que ontem aprovou as reformas propostas pelo governo do primeiro-ministro Erdogan] introduz mudanças que impedem (ou, no mínimo, dificultam) a discriminação pelo Exército contra religiosos – porque garantem aos discriminados o direito de apelar judicialmente das decisões. Simultaneamente, outras mudanças reduzem os poderes do Judiciário turco. Evidentemente, pode haver riscos nesse segundo conjunto de medidas. Mas é preciso considerar que o Judiciário turco é, sabidamente, e há muito tempo, constituído de juízes que tem sido frequentemente acusados de tender a favor da elite turca (pressuposta “ocidentalizada” e “não-religiosa”) e de exercer seus poderes a favor daquela elite, muito mais por ser a elite econômica e financeira, do que por ser “não-religiosa”.
Parece-me que as mudanças propostas pelo governo de Erdogan visam a ampliar o papel dos crentes muçulmanos – em número acentuadamente maior que os “não-religiosos” na população turca – na vida pública e política. Não vejo o que, nisso, possa ser considerado antidemocrático, nem vejo como ou por que garantir condições de mais e melhor justiça para a maioria da população possa ser visto como ameaça à democracia. O velho sistema de secularização imposto de cima para baixo, por uma elite urbana, endinheirada e ocidentalizante, tem obtido alguns bons resultados de desenvolvimento – tanto quanto tem criado desigualdades e injustiça social.
O mais importante de tudo, é que a Constituição turca, que agora está sendo reformada, foi imposta ao país por lei marcial. As reformas extirpam da velha Constituição parte significativa do que nela havia de autoritário e restauram, pelo menos em parte, seu caráter democrático. Nessa direção, a nova Constituição restaura o direito de greve dos funcionários públicos (embora não o estenda aos empregados do setor privado).
Os generais autores do golpe de Estado de 1980 destruíram todas as organizações sindicais e do trabalho e os partidos de esquerda (movimento que, ironicamente, levou ao crescimento de uma direita religiosa muçulmana, semelhante
Assim sendo, e por irônico que pareça, não é impossível que o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan (quem mais se empenhou politicamente a favor das reformas, e o grande vitorioso no Referendum de ontem) tenha conseguido dar, pelo menos, um primeiro alento à esquerda e às organizações do trabalho na Turquia, que terão vias para se fortalecerem na próxima década. A ironia parece estar na evidência de que qualquer esquerda turca que surja ou renasça acabará por criar um contrapeso mais “progressista” ao próprio governo de Erdogan, que se pode definir hoje como de centro-direita [nisso, aliás, muito semelhante ao governo Lula do Brasil].
Além do mais, muitas das mudanças foram estimuladas e endossadas pela União Europeia, como requisito para a admissão da Turquia (já candidata à admissão). Fato é que a União Europeia não aceitaria como membro, uma Turquia na qual ainda houvesse traços muito acentuados de ditadura militar e ativo preconceito contra religiões ou grupos étnicos e por questões de consciência.
Assim se vê que a questão no Referendum de ontem na Turquia não é absolutamente qualquer discussão entre “democracia ocidental” e sharia. Trata-se de fato de um movimento para começar a construir condições para que floresça uma modalidade mais inclusiva de democracia que garanta lugar legítimo na política e na vida pública também para os religiosos, versus uma ditadura militar “soft” e com tendência visível na direção de um fundamentalismo fanático, embora laico.