Leia primeiro:
Julian Assange, entrevista ao The Hindu, 12-13/4/2011 - P I (1/2)
Julian Assange, entrevista ao The Hindu, 12-13/4/2011 - P I (2/2)
“WikiLeaks é o método que usamos, na nossa luta por sociedade mais justa”
13/4/2011, Julian Assange, entrevista a N. Ram, Editor-chefe de The Hindu, Delhi, Índia
Parte II (2/2)
WIKILEAKS VS AUTORITARISMO
The Hindu: Em seu trabalho “State and Terrorist Conspiracies” [de novembro de 2006]... encontrei uma interessante discussão online de um quadro teórico atribuído ao senhor. Basicamente, se trata da discussão entre autoritarismo e conspiração e sobre como funcionam os sistemas de poder. O senhor diz lá que é preciso registrar as ideias, divulgá-las, comunicá-las internamente...
É isso.
… e fala sobre o papel dos vazamentos. Essa teoria já teve algum desenvolvimento depois de 2006?
Estamos trabalhando. Aquilo foi uma simples anotação de trabalho, que escrevi para alguns amigos que estavam conversando sobre o assunto: o que aconteceria quando WikiLeaks saísse da fase de jogos de computador e realmente aparecesse para o mundo? Será que as organizações de poder que fossem expostas, conseguiriam simplesmente parar de escrever, de registrar, de relatar? Sempre soubemos que se tratava de buscar melhor justiça, mas que o sistema se reestruturaria ele mesmo, e que nós não teríamos sempre o mesmo sucesso, a partir da abordagem que escolhêramos.
SEMPRE HÁ TRILHAS DE PAPEL
O que descobri é que por mais que se reestruturem, as organizações de poder, nas quais o poder é necessariamente centralizado, são como são porque desenvolveram um sistema interno, mediante o qual as decisões políticas são tomadas na cúpula e distribuídas pelas redes internas, para toda a instituição, onde têm de ser implementadas. Para que isso aconteça é indispensável que haja comunicação interna rápida e acurada, clara. Portanto, é indispensável que as coisas sejam postas por escrito, em papel ou e-mail. Sem isso, seria como se a organização vivesse só de sussurros pelos cantos, semi-incompreensíveis e semi-incompreendidos, e a própria organização se esfacelaria, além de perder condições para por em andamento suas próprias políticas.
Nessas condições, em que as coisas não sejam escritas e postas no papel, só são possíveis pequenas conspirações orais. Mas, justamente porque são pequenas, essas conspirações só podem infligir pequenos danos à sociedade; só geram, digamos assim, pequenas injustiças, ou quantidades relativamente pequenas de injustiça. Para gerar quantidades industriais de injustiça, injustiça em grande escala, as políticas injustas têm de ser sistematizadas. E, para isso, sempre é preciso formalizar as políticas, pô-las em forma, pô-las por escrito. Por isso as políticas megainjustas sempre deixam uma trilha escrita. Sempre deixam uma trilha de papel.
Vi acontecer muito claramente, na prisão de Guantánamo. Recebemos dois dos principais manuais de organização interna redigidos para a prisão de Guantánamo e publicamos os dois em PDF: Changes in Guantanamo Bay SOP Manual (2003-2004) - WikiLeaks). Uma das instruções que lá se leem manda falsificar informações prestadas à Cruz Vermelha (que tem autoridade legítima para visitar prisioneiros de guerra em todo o mundo).
MANUAIS DA PRISÃO DE GUANTANAMO
É chocante. Um manual redigido para fazer funcionar adequadamente a prisão de Guantánamo, produzido profissionalmente pelos militares, como se fosse um manual ‘normal’, igual a vários outros. Por que alguém escreveria, como regra, posta no papel, instruções, ordens, para que se cometessem crimes? Bem, claro, em primeiro lugar por que há gente interessada em trabalhar na prisão de Guantánamo? Que tipo de gente deseja ser guarda, na prisão de Guantánamo? Gente esquisita, no mínimo. Se Donald Rumsfeld e Dick Cheney conseguem armar conspirações ‘orais’, o mesmo não se pode dizer do general Geoffrey Miller, diretor da prisão de Guantánamo. Para que o general Miller consiga fazer funcionar a prisão de Guantánamo, foi absolutamente necessário por no papel aquelas instruções do Manual, que tiveram de ser formalizadas, redigidas e escritas e impressas. O Manual foi escrito porque é absolutamente indispensável, ou não haveria prisão de Guantánamo. Então tiveram de redigir o Manual. Porque o redigiram, alguém nos mandou. E nós publicamos.
Verdade é que, depois da publicação do Manual de Guantánamo, as condições em que viviam os prisioneiros melhoraram substancialmente.
Isso só é possível num regime onde haja livre transferência de informação, e imprensa forte e livre – e que tenha competência, é preciso lembrar. De fato, é indispensável ter organização transnacional muito ampla, como nós temos, com extrema agilidade, para publicar rapidamente, e com custos baixíssimos, por causa da internet. Sem isso, a publicação em muito grande escala, de material muito sensível, é impossível. Hoje, as organizações criadas para promover injustiça em escala cada vez maior, para ocultar, mais do que para informar, enfrentam dilema radical.
NOS DOIS CASOS, A JUSTIÇA VENCE
De um lado, as agências de poder podem tirar tudo do papel, ou podem tirar do papel tudo que realmente faz diferença hoje para eles; ou proteger tudo em protocolos caríssimos de segurança, em cofres, em transmissões encriptadas secretas, codificadas, e o resultado será desastre, eficácia zero. O que diminuirá o poder das próprias agências de poder. Perderão competitividade, tanto no plano comercial quanto no plano intergovernamental.
Ou, então, podem abrir-se, simplificar os processos, fazer coisas que ameacem menos a própria eficácia deles. Se não tiverem de escrever regras para afogar prisioneiros em Guantánamo, se não investirem tanto na tortura por afogamento de prisioneiros em Guantánamo, criarão menos riscos para eles mesmos. Haverá menor risco de serem denunciados.
Entendo, portanto, que há vantagem para a justiça, nos dois casos. As organizações podem se autorreformar para buscar melhor justiça, e já há hoje mais organizações mais justas, do que antes, organizações que já não investem mais no segredo do que na eficácia. Ou essas instituições e organizações muito rapidamente perderão a capacidade de fazer o que fazem e de influenciar, como instituições.
Estamos num jogo de ganha-ganha. Claro que a estrada é longa, claro que nem todos veem as coisas desse modo. Mas é o caminho que nós escolhemos e já alcançamos vários sucessos, em várias áreas.
O QUE MOVE JULIAN ASSANGE?
Então, o que move Julian Assange e WikiLeaks, é o desejo de justiça. E essa é sua concepção de justiça.
É. Temos um método e um objetivo. Nosso objetivo é a justiça e WikiLeaks, com suas várias atividades de recepção de informação das fontes e de publicação, é o método que usamos para tentar avançar na direção de uma sociedade mais justa. Se o senhor quer saber por que estou interessado nisso, bem, sou capaz de fazer várias coisas. Estou em posição privilegiada para fazer várias coisas e já fiz várias coisas. Vivo nesse mundo e vivo infeliz, porque o mundo em que vivo não é mundo justo. Quero ser mais feliz e quero viver em mundo mais justo.
Para terminar. Em recente artigo que o senhor publicou em New Statesman, “Of the people and for the people” [Do povo e para o povo, 11/4/2011, só para assinantes. Comentários em Assange: “WikiLeaks is the intelligence agency of the people”], o senhor faz sua autoconexão com o jornalismo, apresentando-se como editor-chefe de WikiLeaks. O senhor se insere na longa tradição do jornalismo radical, de editores-publishersprogressistas, corajosos, na longa tradição das elites em luta contra o povo, com o jornalista trabalhando pelo povo, contra as elites.
Naquele artigo, o senhor diz literalmente: “Na história longa, WikiLeaks é parte de uma honrada tradição que expande o escopo da liberdade, tentando expor à opinião pública todos os mistérios e segredos dos governos. Somos, em certo sentido, a pura expressão do que a mídia deveria ser: uma agência de inteligência a serviço do povo, sempre jogando pérolas aos porcos” (aqui, o senhor faz alusão ao que disse um autor do século 17, sobre como jornalistas radicais ajudam a dar voz ao povo que as elites definem como ‘vulgar’). Tudo isso considerado, o senhor sente-se satisfeito com a resposta que WikiLeaks está dando aos imensos desafios que o senhor enfrenta hoje, os ataques furiosos de que o senhor tem sido alvo etc.? O senhor está satisfeito com a defesa que seus apoiadores lhe têm oferecido?
Todos têm trabalhado muito. Sobretudo, temos o apoio do povo, o que nos encoraja. E está acontecendo em todo o mundo, especialmente na partes do mundo que não estão tão firmemente ligadas a instituições de poder primário que nós expusemos, como os EUA.
AMIGOS E INIMIGOS
Mas mesmo nos EUA, temos tido muito apoio entre os mais jovens e entre gente que teve comportamento de resistência radical nos anos 1960s e 1970s. Também temos recebido muito apoio de gente comum, homens e mulheres que não têm atividade política. Nos EUA há a tradição histórica, muito respeitada, da liberdade de expressão. É verdade que essa tradição foi muito enfraquecida depois do fim da Guerra Fria. Durante a Guerra Fria, houve uma intelligentsia liberal, os que seguiram tradições do Iluminismo e tradições Jeffersonianas, que pregavam a importância da liberdade de expressão, e defendiam a imprensa como um corpo industrial também a serviço da livre manifestação de pensamento. E houve também o complexo industrial-militar que, fora dos EUA, também pregava a favor da liberdade de expressão, e usou esse discurso como ‘porrete moral’, para espancar a URSS. O que se vê é uma interessante combinação de duas forças que, em geral, são opostas. A oposição dessas duas forças gerou uma espécie de força de inércia cultural, que manteve a tensão e não paralisou os EUA. Infelizmente, a partir do início dos anos 1990s, o complexo militar-industrial separou-se, deixou de ser pólo social dinâmico dentro da vida social dos EUA, passou a trabalhar a favor só dele mesmo, e toda a coalizão parou.
BLOQUEIO EXTRAJUDICIAL
O que temos visto é que quanto mais distante a pessoa está do poder do estado, mais ela nos apóia. Isso só já é interessante. Na imprensa, a parte da imprensa que vive próxima do poder de Washington, faz campanha contra o direito de expressão para nós. Foi extraordinário ver Visa, Mastercard, Western Union o Bank of America e outras instituições financeiras construindo um bloqueio extrajudicial contra WikiLeaks e pessoal, contra mim, para evitar que as pessoas de boa vontade em todo o mundo continuassem a nos fazer doações em dinheiro, para nos manter vivos.
Essas reações ao nosso modo de publicar, em certo sentido revelam algo tão importante quanto o material que publicamos. Revelam o comprometimento, nos EUA, na Grã-Bretanha e em outros países, da imprensa. Revelam que as instituições financeiras, inclusive em Londres, estão tão ligadas a Washington que podem decretar um bloqueio extrajudicial, por causa de uma espécie de medo McCarthista, mesmo aqui, de desagradar Washington. É exatamente a mesma repressão que se viu na Rússia soviética com sua censura, que só admitia que alguns grupos políticos tivessem voz frente ao Politburo. Também fomos censurados aqui, porque Washington, do mesmo modo, seleciona os grupos de poder. Não houve nem processo judicial, nem ação administrativa.
A COBERTURA DOS TELEGRAMAS
Antes de iniciarmos a entrevista, o senhor falou sobre jornalismo e a cobertura do material que WikiLeaks divulgou. Pode falar um pouco sobre isso?
Chamo de “cable reporting” o trabalho de produzir matérias sobre os telegramas, como foi feito pelos nossos parceiros nos grandes jornais e outros, logo que os telegramas começaram a ser divulgados. Trata-se de ler um telegrama, selecionar uma ou outra frase, identificar os personagens que falam naquele telegrama e publicar a matéria sobre o telegrama. É reportagem sobre os telegramas. Não é fazer o jornalismo dos telegramas. Para fazer jornalismo, é preciso ler os telegramas ou um grupo de telegramas, correlacioná-los entre si e a outros grupos de telegramas, com entrevistas daqueles personagens, com trabalho de investigação, de pesquisa de arquivos, investigar a situação passada e presente do evento dos quais os telegramas são só uma parte. E produzir reflexão mais complexa, mostrar ao leitor um quadro mais completo. É mais demorado mas, de fato, é o único modo de realmente informar sobre uma situação complexa, que é o que quase sempre mais importa na história dos telegramas.
O The Hindu agradece muito pela sua atenção. Agradeço-lhe em nome do jornal, que já tem 132 de existência, e também em nome de nossos leitores, mais de 5 milhões de indianos. Obrigado por nos ter dado a oportunidade de publicar esses India Cables. Espero que possamos manter e aprofundar essa parceria, cada vez mais.
Quero dizer ainda uma coisa, ao The Hindu e aos indianos em geral. Como australiano, quero agradecer aos indianos por falarem inglês muito melhor que os ingleses.
[Fim da entrevista]
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