quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Pepe Escobar: "Liberdade duradoura sem fim"

9/9/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Enduring freedom forever
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Em vão o ocidente busca uma modalidade de agonia final que valha o seu passado.
- E M Cioran

“Operação Liberdade Duradoura” [ing. Enduring Freedom] é o nome que o governo dos EUA deu à sua resposta oficial, militar, ao 11/9. Era para chamar-se “Operação Justiça Infinita”; mas algum apparatchik descobriu que “justiça infinita” é uma das definições de Deus. Dez anos depois do 11/9, os fatos em campo gritam ao mundo chocado e apavorado que, de duradouro, lá, há muita guerra e justiça nenhuma; quando à liberdade, que encolhe sem parar e rapidamente, não passa de outro nome para tudo que lá, está posto a perder.

Osama bin Laden costumava definir o 11/9 como Yaum Niu York (“o dia de New York”). Mal sabia o hoje cadáver decomposto no fundo do Mar da Arábia que dispararia um início de século 21 em formato de terra arrasada que, em matéria de língua, só conheceria o duplifalar militarizado [1].  

O Marco Zero expandiu-se para a guerra global ao terror [ing. global war on terror (GWOT)] nomeada por George Bush, guerra sem sentido contra guerra tática. Um Pentágono mais realista chamou-a “A Longa Guerra”. A segurança nacional dos EUA metamorfoseou-se em “Segurança da Pátria” [ing. Homeland Security]. A hiperpotência ameaçada correu a fabricar um assustado triturador de liberdades civis, a Lei Patriota [ing. Patriot Act], aprovada por Bush em outubro de 2001, e consagrada como lei permanente em março de 2006.

Para Washington, o 11/9 jamais teve algo a ver com retaliação. Aconteceu por culpa de um sistema disfuncional com falha de imaginação. Depois do fato, a opinião pública mundial nunca mais parou de ser massageada por um exército de criadores de mensagens, de especialistas da Defesa a técnicos de segurança. E uma chuva de Códigos Laranja, altas preocupações com segurança e alertas não específicos manteve as massas nos EUA em estado perene de prontidão para debandar.

Em velocidade superior à velocidade da propagação dos boatos, Humint, Sigint, Imint (serviços de inteligência humana, de sinais e de imagens), apoiados por Techint e CI (serviços de inteligência técnica e Contrainteligência), fundiram-se num enxame de psyops (agentes encarregados de táticas psicológicas, quase sempre baseados em péssima humint). Mas para toda essa sapiência técnica reunida e unificada, o governo dos EUA só conseguiu produziu um objetivo impalpável: a Total Consciência de Informação [ing. Total Information Awareness (TIA) – projeto megalômano, ao estilo do Dr. Strangelove [2], parido pela Agência de Projetos Avançados de Pesquisa da Defesa [ing. Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), do Pentágono.

Depois do fim da URSS, uma al-Qaeda praticamente inexistente foi elevada ao status de coringa global. Foi numa referência a uma al-Qa'eda al-Askariyya (“a base militar”), uma fachada obscura cuja existência foi oficialmente reconhecida dia 23/2/1998 como parte de uma Frente Islâmica Mundial [ing. World Islamic Front] para combater judeus e cristão, fundada em reunião em Peshawar, Paquistão.

Bin Laden sempre caracterizou a al-Qaeda como rede maleável de treinamento e combate – e exortava os cavaleiros do Islã a combater. Bin Laden foi essencialmente um wahhabista fundamentalista que sentia como dever combater a jahiliyya (“ignorância”), entendida tanto no sentido do fundamentalista egípcio Sayyid Qutb (“regimes árabes infiéis”), quanto no sentido de “ignorância” predominante antes da chegada do Islã no século 7º.

Em vez de deixar-se bombardear até ser devolvido à Idade da Pedra, o Paquistão, no governo do então presidente Pervez Musharraf (ou “Busharraf”) uniu-se à Guerra ao Terror. Em tela planetária, os jihadis – ou islamo-fascistas – foram universalmente tratados como os bandidos, enquanto os mujahideen foram os mocinhos, promovidos a “combatentes da liberdade” durante a Jihad antissoviética dos anos 1980s.

No Afeganistão, os Talibã foram devidamente bombardeados para fora do governo. Bin Laden e Ayman al-Zawahiri sumiram de Tora Bora e mergulharam num buraco negro. Então, o lado escuro da força foi convertido em nova normalidade.

Ardam, trilhões, ardam
A aventura de Bush no Iraque – vendida ao mundo pelo informante codinome “Folha Seca” [ing. Curveball], também conhecido como desertor iraquiano de araque Rafid Ahmed Alwan – foi a primeira guerra da história integralmente paga por cartão de crédito.

Em 2008, Joseph Stiglitz e Linda Bilmes calcularam que as guerras do Iraque e do Afeganistão já haviam custado mais de $5 trilhões (e aumentando). Só gastos diretos do governo dos EUA foram cerca de $2 trilhões (e aumentando) – $17 mil dólares por família norte-americana.

Antes, em 2002, o poder real em Washington circulava em torno do Escritório de Planos Especiais [ing. Office of Special Plans] – office com nome de unidade soviética, dedicado a provar que havia contato direto entre o Iraque e a al-Qaeda. Quem não fosse conhecido ali, estava por fora – o mesmo destino que tiveram as críticas da guerra depois da tomada de Bagdá em abril de 2003.

Para os neoconservadores – que nada sabiam sobre o Iraque –, o que contava era a teoria positiva do dominó: invadir o Iraque geraria uma onda democrática em todo o mundo árabe. Os árabes, afinal, tornar-se-iam cidadãos-modelo dos EUA.

A junta Bush-Dick Cheney pode bem dita responsável pela sacralização da guerra preventiva [ing. pre-emptive war] (que a legislação internacional só admite em caso de perigo iminente). Essa foi a doutrina Bush, anunciada em janeiro de 2002. Mas, depois da [operação] Choque e Pavor [ing. Shock and Awe], a muqawama (“resistência”) iraquiana já tinha outras ideias.

Os iraquianos sunitas reuniram-se em torno da “resistência”, não em torno da “libertação nacional”, expressão que os EUA preferem para designar guerrilha que dá em nada, e de cujas conotações apagam-se todos os traços de revolta, revolução e guerra civil.

Rapidamente as operações de automartírio – o “suicida-bomba” para o ocidente, conhecido em árabe como amaliyya intihariyya (“missão suicida”) – passaram a ser lei da terra. Todos os noticiários transbordavam de “artefatos explosivos improvisados” [ing. improvised explosive devices (IEDs)] – que logo evoluíram para VBIEDs (quando os IEDS eram montados em veículos); “artefatos para dispersão de produtos radiativos” [ing. radiological dispersal devices], também conhecidos como “bombas sujas”; e “penetradores para ação explosiva” [ing. explosively formed penetrators]. Não haveria paraíso seguro para ninguém (além da tautologia, porque paraíso que não seja seguro não é paraíso).

A superpotência passou então a ser governada por um princípio bomba-relógio – segundo o qual os EUA não se poderiam dar o luxo de jogar como manda a regra. E, sempre, com carência de informação acionável. Daí o tic-tac eterno, ameaçador, das regras de conduta em combate: os Marines dos EUA, por exemplo, seguem a regra do dos 4 Ss: Shout, Show, Shove, Shoot, Shoot [“Grite, tire-o do veículo, empurre, atire”] – na qual “atire” sempre atropela as outras fases. [3]

Repetidos beliscões nas regras inevitavelmente levaram a um conjunto alternativo de procedimentos: técnicas controversas de interrogatório; técnicas ampliadas de interrogatório; técnicas desumanas de interrogatório e até magia negra empregada contra combatentes inimigos (a distinção que havia antes de 11/9, entre inimigo e combatente ilegal, desapareceu completamente).

Tornou-se imperativo mandar magotes de combatentes inimigos ou terroristas suspeitos de alto valor para a Instituição Correcional de Bagdá – também conhecida como Central de Tortura Abu Ghraib, onde biscuits (membros das Behavioral Science Consultation Teams [Equipes de Consultores em Ciências do Comportamento]), treinados na escola do SERE (Survival, Evasion, Resistance and Escape [Sobrevivência, Evasão, Resistência e Fuga] do Forte Bragg) conduziria os interrogatórios.

Os biscuits foram introduzidos na famosa prisão de Guantánamo pelo major-general Geoffrey (“Temos de Guantanamizar”) Miller e depois transplantados – com sucesso – para Ghraib. Guantanamizar significa o espetáculo sinistro da nudez forçada, ganchos na pele, homens atados em posições de estresse com dor, ataques com cães e simulação de emparedamento e de afogamento – remix do que, na era Vietnã chamava-se pump and dump [arrancar e descartar] (arrancar a informação e descartar o cadáver).

Os excessos, evidentemente, não são culpa das políticas de George (“Esses detentos têm de ser tratados como cachorro”) Miller; são culpa de umas poucas maçãs pobres. E que se lixe quem lembrar de Convenções de Genebra.

O mundo conheceu também as “entregas extraordinárias” [ing. extraordinary rendition] – ações de sequestro e deportação ilegal cometidas pelo Estado – graças a uma frota de aviões-fantasmas da Agência Central de Inteligência [ing. Central Intelligence Agency (CIA)]. A prática de terceirizar a tortura foi, de fato, assassinato contratado com agências estatais de segurança do Egito, Jordânia, Síria, Líbia, Marrocos, Arábia Saudita, Paquistão e Uzbequistão, todas adeptas de ferver partes do corpo e eletrocutar genitálias.

Com a primeira matança no Iraque, a empresa Blackwater – depois rebatizada Xe – tornou-se o Santo Graal do complexo evangélico-mercenário, além de hordas de empresas contratadas pela Defesa e outros agentes contratados de segurança privada – conhecidos também como “mercenários”.

Apologistas do memorando de tortura de agosto de 2002 elogiaram com selvageria os soldados norte-americanos que se alistaram na legião da tortura, ao som de piadinhas sobre tortura light. Para Dick “Peixe morre pela boca” Cheney, simulação de afogamento era “coisa simples”, “um mergulho na água”.

Mas, aí, então, o Iraque virou areia movediça. A Junta Bush-Cheney decidiu ordenar uma Babel de avaliações da guerra e criar um inferno categoria "de referência", ordenando uma “avançada” [ing. surge], enquanto prosseguia a construção da Fortaleza Bagdá [ing. Fortress Baghdad] – também conhecida como Embaixada dos EUA, a maior do mundo.

E então a guerra no Afeganistão, como morcego dos infernos, saiu do prolongado coma para vingar-se, sob a forma de guerra EUA-Europeia contra os pashtuns – guerreiros de primeira classe que sempre derrotaram impérios que aparecessem por lá. A receita para uma “vitória” ocidental teria de ser mais uma “avançada” [ing. surge].

Do nosso jeito, ou pé na estrada... (Our way or the highway[*])
A Longa Guerra do Pentágono não deu conta; o povo do norte da África, sim. A Primavera Árabe derrotou o 11/9 e derrotou a al-Qaeda. Derrotou até Osama bin Laden antes do ataque a Abbottabad (assassinato de alvo predefinido [ing. targeted assassination], por um comando, depois da invasão do espaço aéreo de estado soberano).

Mas, como a Primavera Árabe também parece ter derrotado a falácia da Santíssima Trindade – islamofobia, choque de civilizações e o fim da história...

... Tudo se tornou “cinético”, mediante a Operação Aurora da Odisseia [ing. Operation Odyssey Dawn]. Washington, Londres e Paris decidiram ignorar a lei internacional vigente desde o Tratado de Westphalia de 1648.

A R2P – “responsabilidade para proteger” civis – passou pelo batismo balístico, perfeita cobertura humanitária para defender os interesses e a economia do Atlântico. Com a vantagem adicional de Barack Obama, agraciado com o Prêmio Nobel da Paz e grande desenvolvedor de guerras, estar presidindo a conversão da OTAN em Robocop global – com ou sem luz verde da ONU. O ocidente ganhou saco novo em folha: uma milícia global.

O Iraque – contornando a ONU – foi assunto de mudança de regime. A Líbia – com a bênção da ONU – foi assunto de mudança de regime, por mais que Obama jure que não.

Dez anos depois de 11/9, a Longa Guerra está metamorfoseada em guerra de quatro gerações – teoricamente, “nova” guerra assimétrica cum contrainsurgência. Bem-vindos à CIA convertida em milícia paramilitar. Bem-vindos ao Drone-istão – MQ-1 Predators marca General Atomics atirando contra militantes, livres para provocar qualquer dano colateral, por mais impressionante que seja – como foi feito para acabar com casamentos de pashtuns.

Bem-vindos também ao Comando das Operações Especiais Conjuntas [ing. Joint Special Operations Command (JSOC)], desenvolvido pelo ex-herói da avançada no Iraque e atual diretor da CIA general David Petraeus, como “máquina de matar terroristas em escala quase industrial”, na definição de John Nagl, fantoche de Petraeus.

O Comando de Operações Especiais Conjuntas, JSOC, é o que, na América Latina nos anos 1970s se conhecia como “esquadrão da morte”, só que agora sob comando direto do Pentágono; mestres em matar/capturar, apoiados em premissa ou legal-por-um-fio ou absolutamente extra-legal, que recebem uma lista de pessoas a serem assassinadas e lista que, eventualmente, também inclui cidadãos norte-americanos.

Esse círculo será rompido? Claro que não. O “modo americano de guerrear” [ing. american way of war] de Obama – que atingiu a perfeição de mortes-zero, como na Líbia – tem exatamente os mesmos objetivos que o de Bush.

O Pentágono deixará o Afeganistão e o Iraque entregue a corpos coletivos mortos. O Pentágono estabelecerá sua base do Africom na Líbia. Sob um dilúvio de sabidos não-sabidos, de não-sabidos não sabidos, essas, sim, são as dores do parto de um novo Oriente Médio. O que realmente conta é a obsessão do Pentágono por controlar todo o arco de instabilidade.

Lembrem a retórica eufórica dos neoconservadores de Washington entre o discurso do eixo do mal no início de 2002 e a invasão do Iraque, em março de 2003: “homens de verdade vão para Teerã”. O reizinho de Playstation da Jordânia e o arquicontrarrevolucionário rei da Arábia Saudita não deixarão de repetir agouros sobre o crescente xiita, como ameaça existencial.

Corações e mentes furiosos e/ou descartados em todo o arco de instabilidade continuarão alienados. Reinarão todas as variantes da retaliação. Por exemplo, pode-se  cronometrar o tempo que falta para que a Líbia seja estuprada pelas potências da OTAN. Retaliação? Tragam o pessoal para tratamento pela CIA/Pentágono. Fácil. Mamão com açúcar.

E então, a besta imunda, quando chegar a hora do parto, curvar-se-á em que direção... Kabul? Bagdá? Trípoli? Riad?

Não há fim de jogo à vista. Esse é o verdadeiro significado de “Mission Accomplished” [“Missão Cumprida”]. Dez anos depois do 11/9, continua aberta a estrada que leva à guerra. A missão era essa. É missão para sempre.

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Notas dos tradutores
1. Tiro o chapéu para o falecido Fred Halliday, do Barcelona Institute for International Studies, que compilou Shock and Awed: a dictionary of the war on terror (University of California Press, 2010).

2. Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb  (no Brasil, “Dr. Fantástico”) é filme de 1964, dirigido por Stanley Kubrick.

3. “Quando o veículo se aproxima, o soldado deve aplicar a “regra dos 4 Ss: Shout, Show, Shove, Shoot) [“Grite, tire-o do veículo, empurre, atire”]. (...) Segundo essas regras, o soldado deve esperar até comprovar que o motorista está cometendo ato hostil ou demonstrando atitude hostil, antes de iniciar o procedimento”


[*] Rock punk, pode ser ouvido (com letra).  O título é Our way or the highway to hell [Do nosso jeito ou pé na estrada direto para o inferno].

Um comentário:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor)

    Não gostei foi da epígrafe do Cioran, pois o Ocidente não tem lá muito em seu passado para vangloriar-se; aliás, nem o Oriente também, embora este cultive mais a sabedoria, estágio superior do conhecimento.

    Abraços do
    ArnaC

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