Conn (Ringo) Hallinan |
3/12/2011, Conn Hallinan, Foreign Policy in
Focus
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Ler
também:
15/6/2011,
M K
Bhadrakumar,
Indian
Punchline
–“CIA_EUA vs
Serviço Secreto do Paquitão: Guerra de espiões sem limite”
Já
quase dez dias depois do ataque, pela OTAN, dia 26/11, contra dois postos de
fronteira, que matou 24 soldados paquistaneses, o mundo ainda se pergunta se as
mortes foram efeito de um incidente provocado pela “névoa da guerra” ou se
resultaram de ataque planejado para explodir, com os soldados paquistaneses,
também qualquer possibilidade de algum acordo de paz no Afeganistão. Dado que o
incidente comprometeu gravemente as relações entre Washington e Islamabad, que
atingem hoje o ponto mais crítico em dez anos de guerra no Afeganistão, a
resposta àquela questão é vitalmente importante.
Segundo
a OTAN, soldados dos EUA e do Afeganistão foram colhidos sob fogo no lado
paquistanês da fronteira e retaliaram, em legítima defesa. Altos oficiais dos
EUA sugeriram que os Talibã teriam provocado o incidente, para envenenar as
relações EUA-Paquistão. Mas vários fatos sugerem que o encontro pode ter sido
mais que incidente de “fogo amigo” provocado por inimigo ardiloso, em fronteira
mal demarcada e tornada ainda mais fluida no caos dos campos de
combate.
O
comandante Mullah Samiullah Rahmani dos Talibã no Afeganistão nega que houvesse
Talibã na área – e o grupo nunca deixa de reivindicar os créditos por operação
militar bem-sucedida, embora seja verdade que, se o grupo estivesse envolvido e
não quisesse divulgá-lo, diria exatamente o que disse. De qualquer modo, essa
específica região está já ocupada pelo exército paquistanês há vários anos e é
considerada oficialmente “limpa” de militantes
guerrilheiros.
O
incidente não parece ter sido resultado de ataque por aviões-robôs comandados
por controle remoto (drones) ou por
bombardeiro que tivessem perdido o rumo – que acontece com infeliz frequência.
Por mais que a propaganda fale de “armas de precisão” e de “ataques cirúrgicos”,
os drones têm causado a morte de
centenas de civis, e bombas de 227kg pouco têm a ver com as salas secretas das
quais os drones são operados.
Mas,
no que se viu no Paquistão, os instrumentos da OTAN eram, dessa vez,
helicópteros de combate Apache e, segundo a Associated Press, um avião de
combate A-130. O que significa que o ataque em território do Paquistão foi
executado por pilotos ‘presentes’ em campo, que identificavam os alvos ‘ao
vivo’, do ar, em contato com os comandantes da missão em
terra.
Os
alvos foram duas fortalezas de fronteira, cuja arquitetura jamais esteve
associada a instalações dos Talibã. É verdade que a fronteira entre Paquistão e
Afeganistão é porosa e nem sempre claramente demarcada, mas os guerrilheiros
afegãos nunca, em toda a história, construíram fortalezas de concreto. Essas
“fortalezas” militares são como castelos de areia para os drones e aviões bombardeiros – motivo
pelo qual os Talibã sempre preferem cavernas e bunkers
subterrâneos.
Claro
que os dois lados discordam sobre o que realmente aconteceu. Os EUA dizem que
foram atacados da fronteira do Paquistão, combateram durante três horas e, no
final, chamaram os helicópteros armados.
Segundo
os paquistaneses, não houve nenhum tipo de ataque partido de território
paquistanês; que os helicópteros atacaram primeiro, e que houve troca de tiros
por menos de três horas. O Paquistão diz também que houve dois ataques, sempre
partidos dos helicópteros Apache. O primeiro atingiu o posto de Volcano; quando
o outro posto de fronteira próximo, o posto Boulder, atirou contra os
helicópteros, o segundo posto também passou a ser atacado. O Paquistão diz que
entrou imediatamente em contato com a OTAN, para alertá-los de que aviões da
OTAN estavam atacando militares paquistaneses, mas mesmo depois de a OTAN ter
sido informada, o fogo continuou. Os helicópteros afinal partiram; mas
reapareceram pouco depois e novamente atiraram contra os postos paquistaneses
que, então, já haviam reforçado a defesa local.
Pode
ter sido havido erro nas informações de inteligência?
Segundo
os paquistaneses, Islamabad cuida muito atentamente de identificar todos os
postos, de modo que a OTAN os conheça e evitem-se incidentes como o que agora
ocorreu.
Para
o general paquistanês Ashfaq Nadeem, “é absolutamente impossível que a OTAN
ignore a localização dos postos paquistaneses”. E o general Ashram Nader definiu
o ataque como “ato deliberado de agressão”.
Poderia
ter sido “deliberado”? Claro que erros acontecem, mas, nesse caso, o momento em
que teria acontecido esse “erro” torna tudo muito
suspeito.
O
momento não poderia ser mais delicado, com cerca de 50 países preparando-se para
a Conferência de Bonn, na Alemanha, que se esperava que encontrasse modo de dar
fim à guerra do Afeganistão.
O
Paquistão é presença necessária – o único país da região que mantém contatos
consistentes com vários grupos guerrilheiros. Se os EUA realmente planejam sair
do Afeganistão até 2014,
a cooperação com o Paquistão é
indispensável.
O
alto comissário britânico para o Afeganistão, Wajid Shamsul Hasan, disse ao
jornal Guardian (UK) que o caso “pode
arruinar as relações entre EUA e Paquistão e pode destruir os planos de retirada
dos EUA”.
O
Paquistão já disse que não comparecerá à conferência em Bonn; e que as relações
com os EUA só não pioraram porque sempre foram péssimas. O Paquistão também já
fechou duas grandes estradas, parte essencial da rota de suprimentos levados por
terra para os soldados que estão no Afeganistão – pelas quais passam 50% de
todos os suprimentos necessários à empreitada de guerra dos EUA. E Islamabad
ordenou que a CIA feche a base dos drones mantida em Shamsi, no
Baluquistão, província do Paquistão, e que todos os agentes deixem o
país.
Quem
mais ganha com tudo isso?
Não é
segredo que muitos militares norte-americanos absolutamente não aprovam qualquer
contato para negociação com os Talibã, sobretudo com o grupo considerado seu
mais letal aliado – o grupo Haqqani. Há uma cisão não divulgada, mas muito bem
demarcada, entre o Departamento de Defesa e o Departamento de Estado: o
Departamento de Estado quer bombardear os guerrilheiros e enfraquecê-los, antes
de sentarem com eles para negociar; a Defesa não vê vantagem em trocar
bombardeios por “conversações”. Não é impossível que alguém do lado uniformizado
dessa ravina tenha resolvido fazer fracassar o encontro de Bonn ou, no mínimo,
dificultar muito qualquer resultado negociado.
Também
não é segredo que nem todos, no Afeganistão, desejam a paz, sobretudo se a paz
implicar algum acordo com os Talibã. A Aliança do Norte (formada quase toda de
tadjiques e uzbeques) não quer contato algum com os Talibã da área pashtun,
reunidos principalmente no sul e no leste e nas áreas tribais do Paquistão. Há
grande número de tadjiques no exército afegão (são a maioria dos soldados e,
além disso, são 70% dos oficiais mais graduados). O presidente Hamid Karzi é
pashtun, sempre muito exposto no governo de Kabul dominado pela Aliança do
Norte.
E há
em jogo, também, amplas questões regionais.
Ninguém
se surpreendeu quando a China, imediatamente, saiu em defesa do Paquistão. O
ministro das Relações Exteriores da China Yang Jiechu manifestou “profundo
choque e grave preocupação” com o incidente. A China não está satisfeita com o
deslocamento da OTAN no Afeganistão e menos satisfeita está com a permanência
das bases dos EUA naquele país. Em reunião dia 2/11 em Istambul, China,
Paquistão, Irã e Rússia opuseram-se à permanência de longo prazo dos EUA na
área.
O Irã
está preocupado com a ameaça de forças dos EUA próximas à fronteira; Islamabad
teme que quanto mais se prolongue a guerra, maior o risco de o Paquistão ser
desestabilizado; e Pequim e Moscou suspeitam de que os EUA estejam de olhos
postos, cobiçosos, nos recursos de gás e petróleo da Ásia Central. Rússia e
China dependem dos hidrocarbonetos da Ásia Central: a Rússia, para exportar para
a Europa; a China, para manter ativadas suas indústrias.
A
China também dá sinais de ansiedade com a recente mudança de estratégia do
governo Obama, na direção, agora, da Ásia. Os EUA intervieram abertamente em
disputas entre a China e seus vizinhos do sudeste da Ásia, no Mar do Sul da
China; e recentemente assinaram acordo para deslocar 2.500 Marines para a Austrália. Washington
também estreitou laços com a Indonésia e aqueceu relações com Myanmar. Aos olhos
da China, tudo isso obriga a pensar em campanha para cercar Pequim com uma
muralha de aliados dos EUA, de modo a manter pressionada a jugular da energia
chinesa. Cerca de 80% do petróleo chinês viaja pelo Oceano Índico e Mar do Sul
da China.
Ingrediente
chave em qualquer fórmula para abalar o crescente poder e influência de Pequim
na Ásia é, também, a Índia. Tradicionalmente, Nova Delhi mantinha política
exterior neutra, mas, desde o governo Bush, vem-se aproximando cada vez mais de
Washington. As relações entre China e Índia estão estremecidas desde a guerra de
fronteira entre os dois países em 1962, quando a China apoiou o Paquistão,
tradicional inimigo da Índia. Reclamos da China, sobre partes da área de
fronteira com a Índia, em nada melhoraram as coisas.
A
Índia também preferirá ver governo sem Talibãs em Kabul; qualquer coisa que
cause incômodos a Islamabad interessa a Nova Delhi. E há elementos nas
comunidades militar e diplomática dos EUA que gostariam que Washington mudasse
de lado: mais longe do Paquistão e mais próximo da Índia, opinião partilhada por
número significativo de indianos.
Até
aqui, a Casa Branca recusou-se a se desculpar. Em vez de pedido de desculpas, o
governo Obama vazou para a mídia comentários “internos” em que se diz que, em
ano eleitoral, será completamente impossível qualquer “amolecimento” em relação
ao Paquistão.
Afinal,
os confrontos de fronteira sempre podem ser, mesmo, acidentais, embora nada
nesse caso confirme essa possibilidade. Sabe-se que inquéritos conduzidos por
militares não se distinguem pelo rigor factual; e, em todos os casos, grande
parte da investigação será mantida secreta.
Seja
como for, com todas essas linhas de força riscando ao mesmo tempo os céus
noturnos no Paquistão, é muito provável que alguém tenha visto uma oportunidade
e tenha-se aproveitado do momento. Em certo sentido, não faz muita diferença que
o ataque tenha sido acidental ou deliberado: as consequências do que aconteceu
permanecerão por muito tempo, com fragmentos que se espalharão, das montanhas e
pedras do Paquistão, aos litorais distantes do Oceano Índico e além.
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