Em
vez de alguma “Pax Americana”...
22/12/2011,*MK Bhadrakumar, Indian
Punchline
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Talvez
soe estranho, mas a primeira vez que viajei até a Amu Darya (terra-de-ninguém) no norte do Afeganistão,
viajei a pé. Há 18 anos, ainda não havia embaixada da Índia em Kabul (e o
Paquistão, além do mais, não me autorizaria a caminhar pelo Desfiladeiro
Khyber).
Meti-me
naquela “trilha”, para visitar Rashid Dostum em seu famoso castelo em Shibirghan
(província de Jowzjan) – via Tashkent até Termez, na fronteira uzbeque-afegã,
entrando por ali no Afeganistão.
Para
um diplomata indiano, foi situação absolutamente estranha, atravessar a pé a
ponte Termez-Heiraton que cruza a terra-de-ninguém, e chegar ao Afeganistão
dos Mujahideen, com os quais a
Índia dizia ter laços “civilizacionais”.
A
ponte, de montantes de aço, foi construída pelos soviéticos e era então, de
fato, uma ponte ferroviária que acabava no “porto” afegão de Heiraton. Termez,
claro, era imensa base militar, então a maior base soviética na Ásia Central, e
coordenava o fluxo de suprimentos para as tropas soviéticas no Afeganistão. O
próprio general Boris Gromov também atravessou a pé aquela ponte, numa ventosa
manhã de inverno, à frente, pessoalmente, do último destacamento soviético que
deixou o Afeganistão em 1989. Tecnicamente falando, portanto, o Afeganistão não
é exatamente debutante, no fascinante mundo das
ferrovias.
Mesmo
assim, a abertura, hoje, da ferrovia que liga Heiraton a Mazar-i-Sharif é sempre
mostrada com certa dose de mal disfarçada emoção.
O
sistema ferroviário promete abrir um novo mundo ao mundo afegão. Quanto a isso,
é o mesmo em toda parte, incluída a Índia Britânica. Da chegada do sistema
ferroviário fazem-se as lendas. (...)
Imaginem
um afegão de Bamyan que pela primeira vez embarca num trem, com suas esposas e
muitos filhos e filhas pequenos: o mesmo êxtase sem palavras, boquiaberto, de
quando ele, pela primeira vez, vê o mar e as ondas lambendo as praias. Pois a
geopolítica do sistema ferroviário afegão também será assim, emocionante, quase
indescritível. Para muitos observadores, a nova linha em Mazar-i-Sharif é mais
um dente na engrenagem da guerra do Afeganistão, que facilitará o transporte,
mais rápido e mais barato, de suprimentos para as tropas da OTAN, via
Termez.
Mas
por trás de tudo isso descortina-se um panorama que mudará fenomenalmente a face
do Afeganistão.
Falo
sobre os planos em desenvolvimento, para a implantação de uma ampla malha
ferroviária regional, na qual o Afeganistão pode vir a operar como principal
centro de irradiação.
Rotas da seda |
Importante,
quanto a isso, é que esse é o sistema ferroviário que a China planeja para todo
o Afeganistão, destinado a alterar todo o tabuleiro regional incluído na Rota da
Seda (a tradicional chinesa, não a “nova”, com a qual sonham os EUA). A linha
que os chineses projetaram, já em construção em vários segmentos, parte de
Xinjiang e entra no Afeganistão pelo Quirguistão e Tadjiquistão. Dali podem
partir dois grandes ramais, levando, um ao Irã, o outro ao Paquistão.
Para
a China, a estrada de ferro abre passagem estratégica, que a leva ao Golfo
Pérsico e ao Sul da Ásia, contornando o Estreito de Malacca. Se o Paquistão
jogar suas cartas com sabedoria – e já me parece bem claro que, afinal, o
Paquistão começou a entender a quintessência do grande jogo e está sabendo
encadear suas jogadas – o país terá papel chave a desempenhar nos
ambiciosíssimos planos chineses de expandir a Rota da Seda na direção dos portos
de Karachi e Gwadar. Sim. Os presidentes do Quirguistão e do Tadjiquistão, que
se reuniram no início dessa semana em Moscou, trocaram notas sobre providências
para acelerar a construção da linha ferroviária que ligará China e
Afeganistão.
O
quadro que está emergindo naquela região já olha para muito além da guerra do
Afeganistão. O que acontecerá nessa região?
Em
vez de Pax Americana, tudo leva
a crer que se constrói por aqui, cada vez mais claramente, um acordo regional
entre Rússia, China, Paquistão e Irã, como base que garantirá estabilidade e
segurança para o Afeganistão.
Será
preciso ainda um “salto de fé”, um movimento de “conversão espiritual”, para que
os especialistas indianos entendam e assimilem essa nova realidade geopolítica,
que se vai construindo lentamente, mas inexoravelmente.
[No
Brasil, precisamos muito mais, até, que alguma “conversão espiritual”; os
especialistas brasileiros – pelo menos, com certeza, todos os que falam e
escrevem nos jornais do Grupo GAFE (Globo/Abril/FSP/Estadão) – ainda não
atravessaram, sequer, el Rio Grande, e, na cabeça deles, a
única ponte que existe no planeta é a que une as cidades cenográficas da Rede
Globo e da Bolsa de Valores de NY, passando pelas agências norte-americanas de
“notícias” & propaganda (NTs)].
Assim
sendo, países vizinhos da Índia, como Sri Lanka ou Bangladesh estão-se
reposicionando para “para outro jogo de futebol”. O Sri Lanka já se aproxima,
mesmo, de converter-se em mais um país de renda média, na Ásia.
*MK Bhadrakumar foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre
temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais
The
Hindu,
Asia
Online e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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