Malise Ruthven |
22/11/2011, Malise
Ruthven ,
New
York
Review of Books, vol. 58, n. 20
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
RESENHA DE: DABASHI, Hamid. 2011. Shi’ism: A Religion of Protest,
Harvard: Belknap Press/ Harvard University Press, 413 pp.,
$29.95
O Bazare-e-Bozorg, mercado coberto na praça Naqsh-e Jahan, Isfahã, Irã, dezembro de 2003 |
1
Em 2004,
antecipando a vitória dos partidos xiitas nas eleições parlamentares no Iraque,
o rei Abdullah da Jordânia alertou contra o risco de “um crescente xiita” que se
estenderia do Irã para Iraque, Síria e Líbano e dominaria o Irã, com sua ampla
maioria de líderes religiosos xias e xiitas. A ideia foi rapidamente colhida
pelo ministro das Relações Exteriores saudita, que descreveu a intervenção dos
EUA no Iraque como “entregar o Iraque ao Irã”, uma vez que os EUA apoiavam lá
vários grupos xiitas, depois de terem derrubado o governo sunita de Saddam
Hussein. O presidente Hosni Mubarak do Egito disse que os xiitas residentes nos
países árabes são mais leais ao Irã que aos respectivos governos nacionais. Em
coluna publicada no Washington
Post em novembro de 2006 [1], Nawaf Obaid, conselheiro para
segurança nacional do rei Abdullah da Arábia Saudita, falava sobre a urgente
necessidade de apoiar a minoria sunita no Iraque, que perdera o poder depois de
séculos durante os quais governou uma maioria xiita, de mais de 65% da população
iraquiana.
A fobia contra
muçulmanos xiitas nada tem de novidade para a Arábia Saudita. A legitimidade do
reino saudita lhe advém do culto de uma seita wahhabista do islamismo, de um
grupo de muçulmanos sunitas que atacaram santuários xiitas no Iraque no século
19 e que, hoje, discrimina sistematicamente contra os xiitas. Sabe-se, por
documentos publicados por WikiLeaks, que o governo dos EUA considera a monarquia
saudita como “base de apoio financeiro fundamental” para a al-Qaeda, os Talibã,
o grupo Lashkar-e-Taiba e outros grupos terroristas. À parte atacarem alvos
norte-americanos e indianos, todos esses grupos são violentamente antixiitas.
Sabe-se também que o rei saudita, ardilosamente, exigiu que os EUA, seus
aliados, cortassem “a cabeça da serpente” – o que, traduzido, significa atacar o
Irã xiita.
No Bahrain, os
protestos pró-democracia feitos por xiitas (cerca de 70% da população)
prosseguiram sobretudo em vilas xiitas em torno da capital, Manama, apesar das
décadas de perseguições pelo governo, recentemente com a ajuda de tropas
sauditas e de mercenários sunitas vindos da Jordânia, do Paquistão e dos
Emirados Árabes Unidos. Os sauditas, que abertamente enviaram soldados para o
Bahrain em março, vivem aterrorizados, temendo que os protestos espalhem-se pela
Província Oriental, rica em petróleo, onde vivem as minorias xiitas da Arábia
Saudita. Ativistas de direitos humanos lembram que os xiitas são menos de 20% da
força de trabalho no reino saudita e menos de 2% dos integrantes da polícia e
forças de segurança dos sauditas. [2]
Vários dos
envolvidos nos recentes levantes árabes dizem que as ansiedades sectárias são
deliberadamente estimuladas por regimes autoritários, para manter subjugadas as
minorias. O espectro da violência sectária pode vir a revelar-se mais uma
“profecia” que se autorrealiza.
Muitos dos
manifestantes nas ruas do Oriente Médio negam seguir agendas religiosas ou
sectárias; reivindicam democracia, direitos civis, o fim da corrupção e novos
governos eleitos. Timur Kuran escreveu, em coluna no New York Times [3]
na primavera passada, que a maioria daqueles manifestantes parece não ter
ideologia específica ou coerente nem estar organizada em grupos políticos
disciplinados. Exceção nesse quadro é a altamente organizada e disciplinada
Fraternidade Muçulmana (organização sunita), cujo Partido Liberdade e Justiça é
o mais cotado para eleger a maioria nas eleições egípcias, graças à organização
e a popularidade dos vários programas de estado de bem-estar informal que
mantêm. A estrutura piramidal da Fraternidade Muçulmana combina traços da
tradicional ordem sufi (muçulmanos místicos), constituída de vários graus
hierárquicos de iniciação, com modernos métodos de organização, como ônibus para
transportar eleitores às urnas. A Fraternidade Muçulmana é a opositora muito
forte a ser derrotada, na falta de qualquer tipo de organização intermediária
entre os indivíduos e o Estado.
A fragilidade das
organizações da sociedade civil que caracteriza muitas sociedades muçulmanas
ajuda a entender a facilidade com que grupos assumem o controle do Estado, sejam
grupos militares sejam grupos religiosos ou tribais. E regimes de força
servem-se frequentemente do espectro do conflito sectário para justificar as
medidas de repressão. A experiência dos EUA no Iraque – onde a política
tresloucada implantada pelo administrador dos EUA no Iraque, Lewis Paul "Jerry"
Bremer III, de dissolver o exército e o Partido Baath imediatamente depois da
invasão norte-americana, levou a um conflito brutal entre a maioria xiita e a
minoria sunita muito enfraquecida – expôs as fundações frágeis da identidade
nacional iraquiana, traço que o Iraque partilha com muitos outros países do
Oriente Médio.
O xiismo, como
explica Hamid Dabashi, nesse seu novo livro, desafiador e brilhante, é
complemento perfeito para o poder, mas deixa a desejar como moderna ideologia de
Estado. O xiismo nasceu com as disputas pela sucessão de Maomé, que morreu em
632, aos 60 anos, sem haver nomeado sucessor. Seu auxiliar mais próximo era Ali,
seu primo e genro, marido de Fatima, filha do Profeta. A minoria xiita acredita
que Ali tenha sido designado para suceder Maomé e que, por três vezes, o poder
sobre o califato – a liderança sobre todo o Islã – lhe foi usurpado, até que Ali
foi assassinado por um apoiador desiludido, depois de um reinado curto e muito
contestado.
O filho mais jovem
de Ali, Husayn foi morto em Karbala em 680 numa tentativa frustrada para
conquistar o califato então sob domínio da dinastia Umayyad que reinava em
Damasco e, assim, restaurar a legítima linha sucessória do Profeta. Embora os
Umayyads tenham sido derrubados numa revolta inspirada pelos xiitas em
750, a
vitória não coube a descendentes diretos de Maomé, mas a um de seus tios, Abbas.
Apesar de uma tradição da maioria, que mais tarde passaria a ser chamada
“sunita”, incluir Ali como o 4º dos “califas corretamente orientados”, os xiitas
minoritários rejeitam os três primeiros califas que sucederam Maomé, os quais
são, até hoje, ritualmente amaldiçoados nas mesquitas
xiitas.
Os xiitas, em
resumo, crêem que a liderança do Islã – quando não também seus ensinamentos –
foi usurpada, desviada do curso natural por usurpadores. Convencidos de que a
causa do verdadeiro Islã havia sido traída pelos Umayyads, e mais tarde pelo
Califato abbassida (750-1258), os xiitas reuniram-se em torno de seus líderes
usurpados, os imãs (“autoridades religiosas da Casa de Ali”) para restaurar a
religião verdadeira e o governo legítimo. Diferente do cisma que separou
católicos e protestantes, depois de 15 séculos de unidade na cristandade
ocidental, o legado de Maomé é disputado, pode-se dizer, desde os primeiros dias
da própria religião.
Max Weber, como se
sabe, demarcou uma distinção entre profetas “exemplares”, como o Buda, que
indicam o caminho da salvação pelo exemplo pessoal; e os profetas “éticos”, como
Maomé, que exigem que seus ensinamentos sejam respeitados. Dabashi, nesse livro,
discorda dessa classificação weberiana; para ele, Maomé reúne traços das duas
categorias – com consequências diferentes para as duas principais tradições
religiosas que nasceram daquela mesma origem e missão. Enquanto a vasta maioria
dos muçulmanos sempre foi de sunitas que “assimilaram a conduta exemplar do
Profeta” (e os ensinamentos do Corão), incorporando-os na Lei da Xaria, os
xiitas “não querem que se perca o caráter exemplar do Profeta e, assim,
trabalham para estender sua presença carismática incorporando-a em seus imãs”.
Sempre foi indispensável “a presença exemplar de um imã”, para manter o caráter
carismático do Profeta.
A diferença
crucial entre xiitas e sunitas não está tanto na letra da lei – que os
estudiosos sunitas interpretam segundo uma hierarquia de fontes que incluem o
Corão, a prática do Profeta (sunna, costume), o consenso e o raciocínio
por analogia. Essa diferença crucial está na autoridade quase mística de que são
investidos os intérpretes sunitas, na sua missão de interpretar a lei.
Na tradição
sunita, os ulama, ou estudiosos
encarregados de interpretar e, nesse sentido, distribuir e aplicar a lei, são
uma espécie de categoria rabínica, encarregada de interpretar o Corão e
distribuir os ensinamentos éticos que se inferem da conduta exemplar do Profeta,
como registrada nos hadith (relatos tradicionais; traduz-se também por
“tradições”).
A tradição geral
sunita está hoje divida em quatro principais escolas “de estudos da lei”, às
quais se permitem variações na interpretação dos textos canônicos. Os aspectos
místicos “não mundanos” do legado do Profeta são hoje terreno de estudos e
práticas do sufismo, ordens místicas
que cresceram em torno de miríades de “homens santos”.
Os xiitas, por sua
vez, institucionalizaram o carisma do Profeta, investindo-o nos imãs, cujo
conhecimento vem também de fontes de conhecimento esotérico às quais, mediante
os líderes religiosos, os xiitas também têm acesso. Por isso há quem diga que o
xiismo faz abordagem mais unificada do Islã, que o sunismo, embora essa
abordagem (como o protestantismo) oponha-se à corrente dominante. Durante a era
de formação do Islã, muitos dos imãs santos (sem pecado) dos xiitas na linha de
Maomé foram massacrados e convertidos em mártires, pelos califas sunitas
usurpadores. Depois de o 12º imã na linha direta de sucessão de Maomé
“desaparecer”, em 940,
a autoridade xiita passou a ser exercida por um
poderoso establishment clerical – comparável ao establishment católico. Esses especialistas em temas da
religião eram considerados detentores do conhecimento esotérico e mestres na
arte da interpretação, indispensáveis para dar orientação direta à vida das
comunidades. Há semelhanças impressionantes com os primeiros tempos da
cristandade. Para os chamados
Ithnasharis, ou “Dozesistas” (a maioria dos xiitas), o imã
“desaparecido”, ou “Imã Oculto” é figura messiânica que um dia voltará (como o
Cristo na ressurreição), para trazer paz e justiça a um mundo caído em desgraça
e guerras.
Dabashi mostra
como esse sistema tradicional de crenças, que se conserva na cultura popular,
volta à superfície na literatura contemporânea. A morte inaceitável do Imã
Husayn – neto do Profeta – em Karbala, em 680, é anualmente reencenada em
montagens populares da Paixão, que se veem em todas as cidades e vilas do Irã.
Para os xiitas comuns, é o mártir arquetípico, que morreu lutando por justiça e
verdade; para autores marxistas, como Khosrow Golsorkhi (1944-1974) e Ahmad
Shamlou (1925-2000), Husayn é, simultaneamente, uma vítima, como Cristo, e um
ícone revolucionário. Para Ali Shariati (1933-1975), ideólogo islamista e
pensador que inspirou a revolução iraniana de 1979, é “figura cósmica, cujo
assassinato pesa na consciência de toda a humanidade”. Na tradição dos “Doze do
Islã”, o “desaparecimento” do último imã iniciou uma tradição escolástica “na
qual a santidade da letra da lei” passou a representar (e importantíssima) “a
presença carismática dos imãs xiitas.”
Os pensadores
(“interpretadores”) xiitas não constituem uma igreja no sentido cristão, porque
não há sacramentos formais e não lhes são dados poderes para salvar os
muçulmanos ou dar-lhes absolvição. Os mais altos líderes, os aiatolás (“signos
de deus”), não são organizados em hierarquia, mas ganham seguidores – e riqueza
considerável – diretamente do reconhecimento, na sociedade, de seus saberes,
além de receberem também o pagamento de impostos religiosos. Os aiatolás xiitas
não compõem corpo monolítico, longe disso. Diferem muitíssimo uns dos outros
(como entre os sunitas) em termos de doutrina e práticas. Mas, diferentes dos
aiatolás sunitas (cuja autoridade diminuiu muito desde o império otomano, com o
crescimento do estado moderno e da educação secular), os aiatolás xiitas ainda
conservam extraordinária capacidade para promover mudanças nas sociedades onde
vivam.
Além do mais, a
bomba relógio escatológica [4] que
se oculta no mito da volta do Imã Oculto, tem também uma formidável carga
política. A Tradição dos Doze Imãs Xiitas é absolutamente dominante no Irã (90%)
e em países vizinhos: Azerbaijão (85%), Iraque (65%) e Bahrain (75%), com
minorias importantes no Kuwait (40%), na Arábia Saudita (cerca de 8%), no
Afeganistão (30%) e no Paquistão (30%).
No Iraque, manifestantes exibem imagens do líder xiita Moqtada al-Sadr (Bagdá, abril de 2004). |
Os governos do
Golfo têm bons motivos para muito nervosismo. Revoltas inspiradas por líderes
xiitas foram muito frequentes nos primeiros séculos do Islã; e vários movimentos
sociais e tribais ganharam fôlego político ante a perspectiva da volta do Imã
Oculto, ou justificadas pela aspiração de fazerem justiça aos herdeiros
usurpados do Profeta. Até que, em fevereiro de 1979, Khomeini chegou a
Teerã.
Por mais que
Khomeini tenha sido suficientemente inteligente – e religiosamente correto – e
jamais se tenha formalmente apresentado como o Imã Oculto, deixou que crescessem
as expectativas populares em torno de seu nome, como se o Imã Oculto trabalhasse
a seu favor.
Dabashi argumenta
que a tensão entre o legalismo intelectual da tradição e o ímpeto revolucionário
produz um equilíbrio sempre precário. Exemplifica com o caso do Iraque onde, por
um lado, há o Grande Aiatolá Ali Sistani, com 81 anos, intelectual e jurista; e,
por outro lado, há o militante radical e líder popular Seyyed Moqtada al-Sadr,
“dois xiitas em dois pontos opostos mas complementares da mesma fé, defendendo
uma causa comum e sustentando o destino histórico da própria comunidade, por
duas vias rigorosamente paralelas, embora retoricamente divergentes”. O poder
nominal está hoje com Nuri al- Maliki, que tem de negociar esse delicado
equilíbrio xiita tendo, do outro lado, os sunitas do Iraque, os curdos e outras
minorias.
Vê-se a mesma
tensão também muito visível no Irã, onde o presidente Mahmoud Ahmadinejad
desafia a autoridade do Supremo Líder, o aiatolá Ali Khamenei. No período que
antecede as eleições de 2013, Ahmadinejad tenta ocupar efetivamente a
presidência. A disputa entre o presidente – acusado pelo “Movimento Verde” de
ter fraudado as eleições de junho de 2009 – e Khamenei (sucessor de Khomeini,
como Supremo Líder) reflete o que o sociólogo Sami Zubaida descreveu como “uma
dualidade contraditória de duas soberanias” – entre Deus e o povo –, inscrita na
Constituição da República Islâmica” [5].
As expectativas
populares relacionadas ao retorno do Imã Oculto são cruciais nessa disputa.
Khamenei, que representa uma parte da “velha guarda” clerical que chegou ao
poder com a revolução, já sugeriu, até, que se altere o sistema parlamentar
iraniano, e que se elimine a figura do presidente eleito – movimento que o
ex-presidente Akbar Hashemi Rafsanjani declarou “contrário à Constituição e que
comprometeria o poder do povo para escolher governantes”. Ahmadinejad optou por
uma virada escatológica no debate: declarou que muçulmanos comuns não precisam
da intermediação de clérigos para manter contato com o Imã Oculto (“leitura” que
já foi descrita como “desviante” por clérigos conservadores).
No
cerne desse debate está o problema da legitimidade, baseado, como Dabashi o vê,
numa longa tradição na qual os impulsos revolucionários nascidos da usurpação
histórica do direito de suceder Maomé competem com ansiedades compulsivas sobre
qual o comportamento social mais “correto”, mais próprio:
Quanto mais voláteis, instáveis e
impulsivas são as irrupções dos movimentos revolucionários no xiismo, desde a
Idade Média até hoje, por causa de sua origem traumática, mais o xiismo busca
encontrar a interpretação precisa, exata, da lei xiita, para conseguir regular,
até o mais mínimo detalhe, os assuntos da vida dos crentes xiitas – dos rituais
de limpeza do corpo, aos detalhes dramatúrgicos de suas reuniões comunitárias,
e, também, a eterna desconfiança política contra todos que reclamem autoridade
legítima exclusiva.
Rituais de limpeza
corporal servem para reforçar as identidades comunitárias. Como a antropóloga
Mary Douglas observou no seu clássico
Purity and Danger, regras sobre a lavagem do corpo são substitutos
de regras de moralidade: “Não dependem de nenhum equilíbrio de direitos e
deveres. A única questão material é se houve ou não contato
proibido”.
Ao
mesmo tempo, como Dabashi sugere, a noção religiosa de que direitos essenciais
dos seres humanos teriam sido violentados por poderes existentes, que jaz no
coração do xiismo, contribui para a noção segundo a qual
a veracidade da fé só permanece
legítima se é combativa, se não se acovarda e se sempre diz a verdade ao poder;
mas (inversamente) quase instantaneamente perde aquela legitimidade, quando
chega realmente ao poder político.
Resolução lógica
desse paradoxo seria uma separação formal de poderes entre religião e Estado,
segundo a qual as lideranças religiosas “dizem a verdade ao poder”, sem exercer,
simultaneamente, autoridade executiva. Essa foi a posição dos clérigos durante o
regime dos xás Pahlavi e durante a maior parte do reinado da dinastia Qajar que
os precedeu (1785-1925), quando houve o que Said Amir Arjomand chamou de
“concordata tácita” entre o Estado e o establishment clerical (mas os
clérigos cuidavam para não criticarem as políticas da
dinastia).
Quem alterou
radicalmente aquela concordata de
facto foi Khomeini, com sua
doutrina do Vilayet e-Faqih – do Conselho dos Guardiães Jurisconsultos –
segundo a qual o Líder Supremo e o Conselho de Guardiães indicado por ele
aprovam os candidatos parlamentares e têm poder de veto sobre leis aprovadas
pelo Parlamento (além de controlarem boa parte da burocracia e das forças
armadas), competindo, nisso, com o presidente eleito.
A contradição no
coração da República Islâmica exemplifica o que Zubaida descreve como “dualidade
contraditória de duas soberanias” e constitui obstáculo considerável a qualquer
reforma. Foi o Conselho de Guardiães, por exemplo, que efetivamente derrotou a
agenda reformista do presidente Sayyid Mohammad Khatami (1997-2005), rejeitando
suas propostas (aprovadas pelo Parlamento), a favor de mudanças na Constituição
para reduzir o poder do Conselho e ampliar os poderes do presidente. Em termos
constitucionais, a luta de Khatami foi semelhante à que Ahmadinejad trava
hoje.
Esse impasse
constitucional, na minha opinião, é efeito direto do paradoxo da legitimidade
que Dabashi identifica.
2.
Se
Dabashi se tivesse limitado à análise política e teológica, sua tese já seria
suficientemente interessante, mas o autor é mais ambicioso. Como explica no
Prefácio, parte de seu livro mapeia uma “ampla mudança epistêmica” no xiismo,
das questões doutrinais que brotam de eventos históricos, para manifestações
artísticas da fé, inclusive na literatura e na arquitetura. Questão que surge é
como uma visão tão ampla da fé pode preservar o rótulo distintivo, como xiita –
uma vez que muitos dos traços que Dabashi demarca podem ser descritos, mais
amplamente, como “islâmicos”, ou, mais especificamente, como persas ou
iranianos. Dabashi escreve eloquentemente sobre quatro mestres da literatura
persa – entre os quais o grande místico Jalal al-Din Rumi (1207-1273), fundador
da ordem Mehlevi de derviches; e o poeta Sa’di (1184-1291). Vê esses autores
persas como vanguarda de uma tradição literária que culmina na lírica do grande
Hafez (c. 1320-1389), que deu
a todos que tenham tido a sorte de
nascer depois dele um universo em expansão, como Bach, Mozart e Beethoven
mapearam a topografia do cosmos emocional dos filósofos e místicos
europeus.
Essas grandes
figuras, Dabashi reconhece, transcendem as afiliações sectárias, como os grandes
artistas que cita transcendem as tradições luteranas ou católicas dentro das
quais nasceram e formaram-se. “Quando os lembramos, nem sabemos nem nos importa
saber se são sunitas ou xiitas, nem a diferença tem qualquer
importância.”
Fiel a essa
abordagem, Dabashi argumenta que o xiismo não é tanto uma seita ou uma tradição
minoritária do Islã; que é, mais, uma versão ampla, compreensiva e variada de
toda a fé. É o “próprio sonho/pesadelo do Islã como espalhou-se pelo mundo
(...), uma promessa já tornada impossível de cumprir-se, para a própria fé e
para o mundo.” É a “alma oculta do Islã, o suspiro de alívio de todos os
próprios sofrimentos contra um mundo em estado de permanente mal-estar ante o
que é”.
Mas essa visão do
xiismo como uma força moral, ou uma consciência, incorporada nas próprias raízes
do Islã parece contradizer o relato histórico que o autor faz da Pérsia safavida
[6], para ele a apoteose da
civilização islâmica, com variados traços do xiismo misturados triunfantemente
no “no painel paradoxal do que foi então uma religião da maioria do Estado, com
persistente complexo de minoria.”
Os safavidas, que
governaram a Pérsia e terras circundantes entre 1501 e os anos 1730s, fizeram do
xiismo a religião do Estado. Segundo Dabashi, conseguiram integrar as dimensões
místicas e práticas do Islã sobre fundamentos xiitas, mantendo ao mesmo tempo
uma abordagem filosófica consoante com a ideia de Deus como o intelecto cósmico
ou consciência máxima. Dabashi vê o esplendor arquitetural de Isfahã, capital
safavida, como expressão material de um espírito intelectual comparável ao que a
cristandade ocidental alcançara às vésperas do Iluminismo. Para ele, a magnífica
praça [meydan] Naqsh-e Jahan (Imagem da Praça do Mundo) corresponde à
visão de Immanuel Kant, de um espaço público vasto e vital. Ali ter-se-ia aberto
o caminho para que “a razão se tornasse pública, para que o intelecto saísse das
cortes reais e da santidade das mesquitas, e adentrasse e encarasse a face
política de toda uma nova concepção de um povo.”
Tragicamente, na
visão de Dabashi, a ideia dos safavidas de um espaço público como fórum de
discurso racional sucumbiu ante os “lobos famintos”: os invasores afegãos,
rivalidades imperiais entre russos e otomanos, e as maquinações coloniais de
franceses e britânicos. Forças internas de dissolução também participaram, com
um tribalismo violento substituiu a vigorosa cultura pública e cosmopolita que
os safavidas haviam criado. Ao final do século 18, o Irã xiita havia regredido a
formas tribais de governo, com restauração do escolasticismo
religioso.
O triunfo do
tribalismo nômade na dinastia Qajar, que se estendeu de 1785 até 1925, “exigia
uma classe clerical de juristas de turbante e seu escolasticismo feudal para
proteger sua sempre precária legitimidade.” Essa regressão histórica, segundo
Dabashi, foi exacerbada pela vitória doutrinal da escola Usuli de juristas (que
usavam o raciocínio independente em suas sentenças) sobre os Akhbaris, mais
limitados pela existência de precedentes.
Tudo isso
considerado, a visão de Dabashi aparece como contraintuitiva, porque o uso do
raciocínio independente poderia garantir maior espaço para a iniciativa
individual e a razão pública. Mas se se considera o peso do renovado tribalismo
na era pré-safavida, a vitória dos juristas Usuli serviu para promover a
autoridade clerical, à custa dos aspectos públicos e cosmopolitas do xiismo que
o Estado safavida encorajara. De fato, o
establishment clerical
firmou um pacto com os governantes tribais nômades, usando a autoridade para
promover o próprio poder, em troca de privilégios clericais. Membros de um establishment clerical autorreferente, xenófobo, obcecado
com rituais de lavagem e purificação, tornaram-se guardiães da tradição e
portadores privilegiados da identidade popular, processo que foi acelerado pelas
respostas defensivas contra os enclaves territoriais de russos e otomanos e,
depois, pelas pressões de um já crescente poder europeu.
Mesquita Sheik Loft Allah vista do palácio de Ali Qapu, Isphahan, Dez.
2003 |
Dabashi é
fascinado não só pelas ramificações intelectuais e políticas desse processo – a
ascensão de Khomeini, a queda do xá, o estabelecimento da República Islâmica –,
mas também pelo que se pode chamar de suas manifestações na psique xiita.
Explorando essa paisagem, reconhece e agradece a influência de seu professor e
orientador Philip Rieff (1922-2006), autor de
The Triumph of the Therapeutic
[7], e dos principais
intérpretes de Freud.
Segundo Rieff, os
sintomas neuróticos que Freud identificou em seus pacientes eram reflexo do
declínio das moralidades tradicionais: as âncoras religiosas afrouxaram-se, os
desejos instintivos escaparam a qualquer controle. Freud concebeu, como solução,
oferecer aos pacientes uma técnica que os capacitasse a administrar a vida
instintual de modo prudente e racional. A falha, na abordagem ateísta de Freud –
segundo Rieff – estaria em não conseguir ver que persistência dos mitos
repressivos que informam a ação humana tem raízes numa fonte de autoridade
supraempírica ou transcendental, a saber, no sagrado.
Na visão de Rieff,
a autoridade baseada no sagrado infunde culpa em nossa criatividade, sem a qual
não podemos administrar nossos impulsos instintivos. Desejo e limitação, eros e
autoridade, são intimamente conectados. A tensão entre tudo isso é fonte de
energia para todos os tipos de fazeres artísticos. Mas se os desconstruímos e,
na desconstrução, os desmascaramos, como a polícia secreta, os terapeutas, nos
fazem fazer, nossa cultura perde o vigor [8]. “Cultura sem repressão, se pudesse
existir” – escreve Rieff em passagem citada por Dabashi, “matar-se-ia ela mesma,
diminuísse a distância entre o desejo e seu objeto. Todo o pensado e o sentido
seria feito, instantaneamente (...) Em resumo, a cultura é repressiva”.
Adotando uma
abordagem que se baseia nas ideias de Rieff, Dabashi analisa dois trabalhos bem
conhecidos de artistas iranianos. Em
Close-Up (Nema-Ye
Nazdik, 1990), Abbas Kiarostami criou um filme sobre pessoa real – Hossein
Sabzian – que, na vida real representou o celebrado ativista convertido em
cineasta Mohsen Makhmalbaf. Nesse filme, Kiarostami faz Sabzian reencenar aquela
representação frente às câmeras. O filme, segundo Dabashi, é movido pela
“estética da representação formalizada”: Kiarostami joga com o efeito de duplo
espelho, a ironia, de ter uma pessoa real representando ela mesma numa recriação
ficcional de evento real.
As
implicações políticas ficam sem explorar, nesse estudo. Dabashi vê o filme de
Kiarostami como exemplo da profunda fissura que há dentro do xiismo, entre arte
e política, com a arte desengajada da política, e a política
assumindo
uma disposição ideológica
crescentemente unilateral, apoiada quase exclusivamente no escolasticismo feudal
das suas raízes, ao custo, altíssimo, de negar, rejeitar ou destruir a herança
não jurídica – da herança filosófica e mística, à herança literária, poética,
performativa e visual.
Em contraste
com Close-Up, Dabashi encontra
graça e redenção e “ato singular de piedade visual” em Tuba (2002), uma vídeo-instalação da artista
Shirin Neshat. Nesse vídeo, a face de uma mulher “dissolve-se” [fades
out] numa paisagem de colinas pedregosas. Peregrinos param à entrada de um
espaço sagrado, antes de entrar, ou profanar, o local. A demorada descrição de
Dabashi traça a arqueologia da instalação de Neshat, desde a origem ambígua numa
frase do Corão, elaborada nos primeiros comentários, até a invocação gnóstica de
uma divindade feminina e o paraíso que se esvai no romance Tuba and the Meaning of Night (1988) de Shahrnoush Parsipour.
O comentário
sugere que a fissura psíquica que acomete o xiismo, entre o escolasticismo dos
aiatolás e o formalismo estético – que o autor lamenta – pode ser transitório.
Dabashi escreve que, embora alguma cultura possa fantasiar que seria, ela mesma,
“secular”, mesmo assim “as memórias sagradas estão sempre ativadas, pensando as
ideias sociais e povoando os sonhos do povo”.
Iraniano-norte-americano
bem conhecido por sua hostilidade contra Israel e as políticas dos EUA para o
Oriente Médio, Dabashi não faz concessões.
Ataca Seyyed Vali
Reza Nasr, autor do conhecido The
Shia Revival (“informante nativo”,
que reduz “a cultura do xiismo, que é multifacetada, polifônica, mundana,
transnacional e cosmopolita” a um sistema “unívoco, de um só lado, divisionista,
sectário e faccioso” – perspectiva que serve para “facilitar a ocupação militar,
pelos EUA, de uma área estratégica”, ao mesmo tempo em que parece “confirmar”
como fato “o clericalismo beligerante de todos os xiitas”). No caso de Noah
Feldman, conselheiro jurídico de Paul Bremer, Dabashi acusa-o de ter introduzido
o sectarismo na Constituição do Iraque.
No cômputo geral,
a crítica da opinião de acadêmicos como ele, que algumas vezes parece
precipitada ou injusta, é largamente contrabalançada pela visão generosa de
Dabashi, não do xiismo, mas do Islã concebido de maneira muito ampla. Para
construir seu argumento e sua visão, Dabashi combina suas reflexões sobre a
cultura islâmica e um grupo impressionante de pensadores ocidentais (entre os
quais Hegel, Nietzsche, Marx, Weber e Habermas) – e muito Freud, refratado pelo
pensamento importante, mas tantas vezes negligenciado, de Philip
Rieff.
O livro de Dabashi
aqui resenhado é extraordinariamente rico e poderoso; extrai o xiismo dos guetos
sectários aos quais foi confinado, desde quando foi convertido em arma
ideológica do Império Persa, no confronto com os sunitas otomanos. E presta
importante serviço ao pensamento ocidental contemporâneo – cultural e político
–, ao expor uma reflexão sobre o xiismo na qual se ouvem mais as vozes profundas
históricas do próprio xiismo que as opiniões do Departamento de Estado ou do
Departamento de Defesa dos EUA, ou da “mídia”, sobre o Irã contemporâneo, visto
exclusivamente como inimigo de guerra.
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Notas dos tradutores
[1] 26/11/2006, “Stepping
Into Iraq: Saudi Arabia Will Protect Sunnis if the U.S.
Leaves”,
(em inglês)
[2] Os tradutores
optaram por excluir desse ensaio todos os comentários sobre a situação na Síria,
que é caso especial, sobre o qual nenhuma informação produzida no ocidente é
confiável. A exclusão nos livra de divulgar informação “de guerra” pró-EUA e
seus aliados, sem, simultaneamente, nos impedir de ler o que é reflexão menos
comprometida, nesse artigo, sobre tema absolutamente ausente na imprensa
ocidental, em português. No endereço acima, em inglês, o artigo pode ser lido na
íntegra, com todos os comentários do resenhista, sempre pró-EUA. Sem os
comentários do resenhista “enviesada”, o artigo nos pareceu interessante. O
inverso complementar perfeito da “liberdade de escrever” é a “liberdade de
apagar”.
[3] 28/5/2011, NYT - “The
weak foundations os Arab democracy”.
[4] Orig.eschatological. O adjetivo “escatológico” tem duas acepções em português. Está usado aqui na acepção 2, teológica, que se lê no Dicionário Houaiss: “relativo a escatologia, doutrina que trata do destino final do homem e do mundo; pode apresentar-se em discurso profético ou em contexto apocalíptico”.
[5] ZUBAIDA, Sami. Islam,
The People and the State: Political Ideas and Movements in the Middle East (Routledge, 1989). Ver também, do mesmo
autor, “Is Iran an Islamic State?”,
em Political Islam: Essays from
Middle East Report, Joe Stork e Joel Beinin (Eds.) University of
California Press,
1996).
[7] RIEFF, Philip,
O Triunfo da Terapêutica, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1ª ed. 1990, 267
pp. (esgotado na editora).
(comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirNão aceito a tese da inelutabilidade do "conflito" Suna-Xia. Nos tempos que correm, essa disputa foi alimentada pelos planejadores pentagonais, visando à divisão do Oriente Médio, a partir dos ataques ao (1991) e tomada do Iraque (2003).
Tal como o hutingtoneano (Samuel Huntington) "choque de civilizações", as disputas entre xiitas e sunitas são parte de um incentivo à oposição de correntes islâmicas que se toleravam ( e conviviam pacificamente) durante séculos.
Era-se muçulmano e, pronto, era o que bastava.
Quanto a Dabáshi, o radical que o establishment ostenta publicitariamente, suas contradições ferem a lógica e a razão. Mas, nunca, a lógica e a razão dominadoras.
Abraços do
ArnaC
Para todos aqueles a quem nao interessam nao apenas conceitos como a histora Shi'a, modestamente sugiro uma breve leitura sobre a historia do Hezbullah a partir da invasao e ocupacao israelense do Libano. Historia, psicologia e formas de pensamento ficam evidentes antes mesmo da separacao do Hezbullah do Amal. Nao se trata apenas de movimento politico-religioso mas do dia-a-dia de toda uma populacao.
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