Terry Jones |
Tanto
quanto os contribuintes de cidades italianas medievais, estamos tendo o nosso
dinheiro desviado para pagar a ganância de máquina
militar
6/12/2011, Terry Jones, The Guardian, UK
Traduzido pelo
Coletivo da Vila Vudu
No século 14 houve duas pandemias. Uma foi a Peste Negra; a outra foi a comercialização da guerra. Mercenários sempre houve, mas no reinado de Eduardo III converteram-se em principal sustentáculo do exército inglês nos primeiros 20 anos do que seria a Guerra dos 100 Anos. Então, quando Eduardo assinou o tratado de Brétigny em 1360 e disse aos soldados que parassem de guerrear e voltassem para casa, muitos deles não tinham casa para onde voltar. Estavam habituados a guerrear e da guerra tiravam o próprio sustento. Então, aqueles homens organizaram-se em exércitos freelance, não por acaso batizados de “livres empresas” [ing. free companies], e avançaram pela França, pilhando, matando e estuprando.
Um desses exércitos ficou
conhecido como A Grande Empresa [ing. The
Great Company]. Conforme estimativas conhecidas, reunia 16 mil soldados,
maior que qualquer dos então existentes exércitos nacionais. Atacou até o papa,
em Avignon, prendeu-o e exigiu resgate. O papa cometeu o erro de pagar aos
mercenários grandes quantidades de dinheiro vivo, o que só os estimulou e
prosseguir nos malfeitos. Também sugeriu que se mudassem para a Itália, onde
seus arquiinimigos, os Visconti, governavam Milão. Foi o que fizeram, sob a
bandeira do Marquês de Monferrato, também subsidiado pelo
papa.
Ali o pesadelo começou. Enormes
exércitos privados puseram-se a varrer a Europa, desastre que só foi menor que a
Peste Negra. Foi como se o gênio houvesse escapado da garrafa e ninguém
conseguia metê-lo lá, de volta. A guerra, de repente, estava convertida em
negócio lucrativo; as cidades italianas viram-se empobrecer – todo o dinheiro
que os contribuintes pagavam era usado para comprar os serviços das livres
empresas. E, dado que os que lucravam com a guerra naturalmente ansiavam por
continuar a fazê-lo, e do mesmo modo, a guerra tornou-se eterna,
infindável.
Corra o filme para o futuro, 650
anos adiante, mais ou menos. Os EUA, no governo de George W Bush, decidiu
privatizar a invasão do Iraque, empregando “fornecedores” privados de serviços
de guerra, como a empresa Blackwater, hoje rebatizada Xe Services. Em
2003, a
Blackwater conseguiu um contrato sem licitação, de 27 milhões de dólares, para
garantir a segurança de Paul Bremer, então presidente da Autoridade Provisória
da Coalizão [ing. Coalition Provisional
Authority]. Desde então, vendendo proteção a servidores públicos em zonas de
conflito desde 2004,
a empresa já recebeu mais de 320 milhões de dólares. E em
2011 o governo Obama contratou serviços da Xe, pelos quais terá pago, até
dezembro em curso, 250 milhões de dólares por serviços de segurança no
Afeganistão. Essa é apenas uma das várias empresas que lucram com a
guerra.
Em 2000, o Projeto para o Novo
Século Americano [ing. Project for the
New American Century] publicou um relatório, “Rebuilding America's Defenses”
[Reconstruindo as Defesas dos EUA], cujo objetivo declarado é aumentar os gastos
da Defesa, de 3% para 3,5% ou 3,8% do PIB dos EUA. De fato, esses gastos já
chegam hoje a 4,7% do PIB dos EUA. Na Grã-Bretanha, gastamos, na Defesa, cerca
de 57 bilhões por ano, 2,5% do PIB.
Assim como os cidadãos
contribuintes das cidades-estado italianas medievais, estamos vendo nosso
dinheiro ser drenado para o negócio da guerra. Empresas responsáveis têm de
gerar lucros para remunerar os acionistas. No século 14, os acionistas das
livres empresas eram os próprios soldados. Se a empresa não estivesse contratada
por alguém para fazer guerra contra algum outro, os acionistas viam sumir os
dividendos. Por isso, cuidavam, eles mesmos, de criar mercados nos quais seus
negócios continuassem a render lucros.
A Empresa Branca [ing. White Company] de Sir John Hawkwood
podia oferecer seus serviços ao papa ou à cidade de Florença. Se a oferta não
interessasse a algum desses, Hawkwood imediatamente oferecia os mesmos serviços
aos seus respectivos inimigos. Como Francis Stonor Saunders escreve, em seu
maravilhoso Hawkwood – Diabolical
Englishman:
“As empresas tinham,
unicamente, o valor negativo de manter o equilíbrio do poder militar entre as
cidades”. [1]
Exatamente como a Guerra
Fria.
Há vinte anos, numa livraria,
passei a mão numa revista da indústria de armas. “Graças a Deus, Saddam existe”
– era o título do editorial. Explicava que, desde o colapso do bloco soviético e
o fim da Guerra Fria, as pastas de contratos da indústria de armas andaram
vazias. Mas naquele momento, havia afinal um inimigo, e a indústria voltava a
sonhar com melhores tempos. A invasão do Iraque foi inventada em torno de uma
mentira: Saddam jamais teve armas de destruição em massa; mas a Defesa carecia
de inimigo; e os políticos rapidamente forneceram-lhe um.
Hoje, os mesmos tambores de
guerra, encorajados pelo ataque à embaixada britânica semana passada, voltam a
bater, clamando por ataque contra o Irã. Seymour Hersh escreve na revista New Yorker:
“Todo o urânio
baixo-enriquecido que o Irã produz é conhecido, legal e legítimo”. [2]
O relatório recente da Agência
Internacional de Energia Atômica, que provocou onda de fúria contra ambições
nucleares dos iranianos – continua Hersh – não contém sequer uma linha que prove
que o Irã estaria desenvolvendo armas nucleares.
No século 14, quem vivia em
simbiose com os militares era a igreja. Hoje, são os políticos. O governo dos
EUA gastou espantosíssimos 687 bilhões de dólares na “defesa”, em 2010. Pensem
em tudo que se poderia fazer, se o mesmo dinheiro fosse aplicado em hospitais,
escolas, ou para pagar hipotecas extorsivas, de famílias despejadas que hoje
vivem na rua.
O ex-presidente Dwight Eisenhower
dos EUA aproveitou a oportunidade de um discurso de despedida, em 1961, para
alertar os cidadãos norte-americanos contra o risco de admitir relacionamento
muito íntimo entre os políticos e a indústria da defesa.
“Essa conjunção, quando há um
imenso establishment militar e grande
indústria de armas, é novidade na experiência dos norte-americanos” – disse ele.
– “Nos conselhos do governo, temos de nos prevenir conta o risco de que venham a
acumular excessiva influência. O potencial para que cresça muito um poder
desastroso e deslocado está aí, existe e continuará a existir”.
Existe mesmo. O gênio, outra vez,
escapou da garrafa.
Notas dos
tradutores
[1] SAUNDERS, Francis Stonor, “Hawkwood: Diabolical Englishman”
[Hawkwood, Inglês Diabólico] (nos EUA “The
Devil's Broker” [O Corretor do Diabo]), Londres: Faber and Faber,
2004.
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