10/2/2012, John Brown,
Blog Iohannes Maurus
Traduzidopelo
pessoal da Vila
Vudu
Je suis la plaie et le couteau! (Sou a ferida e o
punhal!)
Je suis le soufflet et la joue! (Sou o tapa e a
cara!)
Je suis les
membres et la roue,
(Sou pernas e
braços, e a roda de tortura)
Et la victime et le bourreau ! (E a vítima e o
carrasco!)
Charles
Baudelaire, L’ héautontimorouménos (O carrasco de si
mesmo)
Pode-se dizer
hoje, passados já os mais de trinta anos que nos separam dela, que a Transição
[orig.
Transición] espanhola foi uma armadilha para as maiorias sociais e
para as forças que quiseram substituir o regime franquista por uma democracia
efetiva. Armadilha é dispositivo no qual é fácil entrar, mas é difícil, mesmo,
impossível, sair. O gatilho em que pousam os pássaros atraídos pela comida, ou a
ratoeira que se fecha sobre o rato que acorre ao cheiro do queijo, são exemplos
conhecidos de armadilhas, mas, talvez, a melhor armadilha, a mais sutil, mais
leve, quase imaterial, é a rede de pesca.
Quando os peixes
entram na rede, ela os acolhe sem violência: só quando tentam livrar-se é que
acabam bem presos nas malhas, sem poder movimentar-se. Assim aconteceu conosco,
na Transição. O mais fácil para alguns movimentos sociais fracos e desorientados
e para lideranças políticas da esquerda, mais ambiciosas no plano pessoal, que
decentes no plano político, era aceitar o que o regime oferecia: legitimação das
estruturas e cargos fundamentais do Estado de 18 de julho [1936] e continuidade
legal, em troca de uma transformação interna do Estado, que garantisse um lugar
para as diretorias dos partidos e sindicatos da oposição, num marco ampliado de
poder.
Inicialmente, o preço dessa escolha não pareceu
excessivo. Apesar das centenas e mortos e milhares de feridos em manifestações
nos cinco anos imediatamente depois da morte de Franco e das ações do
ETA [1], a transição para
um regime de liberdades controladas foi relativamente “pacífica”, se se compara
com a derrubada do Xá no Irã ou de Somoza na Nicarágua. Bastante menos
“pacífica”, se se compara com a revolução portuguesa que, sim, foi autêntica
ruptura com o regime anterior e fez-se sem mortes (exceto um agente da PIDE
[2], que se suicidou).
Tudo é relativo.
O regime espanhol
converteu-se assim, por um lado, numa partidocracia, com a vida parlamentar
sequestrada pelas direções partidárias que fizeram a transição e, por outro
lado, numa “democracia antiterrorista” que mantém, renovando-o, o conjunto dos
aparelhos repressivos e das leis e tribunais de exceção da fase anterior. O
pretexto ideal para manter esses aparelhos foi a – muitas vezes brutal e
politicamente absurda – luta armada do ETA, mas a legislação de exceção e suas
instâncias judiciais podiam servir-se dos mesmos aparelhos, a qualquer momento,
contra qualquer cidadão. As classes dominantes espanholas que em certo momento
chegaram a manifestar algum temor pela “incerteza” da transição podiam afinal
dormir tranquilas: ali estava o rei que Franco ali colocou; ali estava seu fiel
Fraga Iribarne, ali estavam a polícia e o exército da ditadura, intactos; ali
estava também a peça mais sensível do aparelho judicial, o Tribunal de Orden
Público, sucessor do Tribunal de Represión de la Masonería y
el Comunismo, agora denominado Audiencia Nacional. O poder social
pertencia aos de sempre, acrescentados alguns recém chegados, que fizeram
fortuna com a Transição. Aos de sempre se juntaram os “para sempre”, que uniram
intimamente seus interesses aos interesses do regime.
E a monstruosa repressão franquista, que chegou ao
genocídio nos primeiros anos, e mantida como signo de identidade através de
longo rosário de assassinatos legais (Grimau, Puig Antich, os cinco de 1975
etc.) e de atos sistemáticos de tortura, “foi desaparecida” da memória oficial.
Toda a responsabilidade foi apagada pela lei de anistia. Em troca, outros
personagens, como Santiago Carrillo, não teriam de prestar contas à justiça como
autores de crimes de guerra e do crime de assassinato em massa dos presos que
estavam sob custódia do bando franquista em Paracuellos del Jarama, e que Paul
Preston documentou em livro recente
[3].
O holocausto
espanhol de que fala Preston foi assim “acertado” e fortaleceu-se o mito de que
as centenas de milhares de mortos eram resultado dos rancores e ódios de uma
guerra civil sobre a qual “os dois lados foram igualmente responsáveis”. Essa
versão foi completamente demolida pelos recentes trabalhos de historiadores do
período, que demonstraram com abundante documentação que, embora a violência do
lado republicano pudesse ser descrita como “excessos” sempre presentes em
guerras civis, as matanças promovidas pelos franquistas foram parte de um plano
de extermínio premeditado. O extermínio dos “vermelhos” pelos franquistas foi,
de fato, como o demonstra Gustau Nerín em La guerra que vino de África
[4], matança colonial
operada pelo exército africanista e seus oficiais, de republicanos espanhóis que
os oficiais franquistas chegaram a chamar de “os mouros do norte”. Entregar a
narrativa histórica aos vencedores de 39 foi outra das gravíssimas concessões
que a esquerda majoritária fez, na Transição.
A armadilha da
Transição surtiu seus primeiros resultados nos pactos de Moncloa, quando as
direções sindicais e políticas da esquerda decidiram “lutar contra a inflação”
limitando o aumento dos salários, o que rendeu à esquerda a liberdade sindical.
A mesma armadilha outra vez capturou corpos e mentes da população quando, dia
23/2/1981, os espanhóis apoiaram um rei que, no mínimo, via com simpatia a
tentativa de golpe de Estado, como o salvador da “democracia”. Depois de um
golpe que não fracassara completamente e que fora precedido pela expulsão de um
Adolfo Suárez que levara demasiadamente a sério a democratização do país, o Partido Socialista Obrero Español (PSOE) aplicou em boa parte o programa
dos golpistas, freando o desenvolvimento autônomo; organizando resposta legal e
ilegal contundente contra as ações do ETA e pondo em marcha a contrarrevolução
neoliberal. A política, que parecia haver conquistado algum espaço nos primeiros
anos da Transição, viu-se engolida por uma gestão partidocrática e essencialmente
bipartidarista do regime (transfranquista e capitalista) que
conseguiu seu objetivo: manter a população sob cabresto.
Baltasar Garzón |
O juiz Baltasar Garzón, hoje julgado pelo Tribunal Supremo, acusado de vários
delitos de prevaricação, foi um dos principais paladinos da democracia
antiterrorista. Suas várias sentenças contra o ETA, mas também contra o
independentismo político basco, cimentaram sua carreira de juiz. Nessas
sentenças, o “juiz estrela” tomou, amparado nas leis de exceção e num certo
consenso público antiterrorista, todas as liberdades imagináveis para impedir o
direito de defesa, além de ter feito uso “criativo” dos crimes tipificados em
lei. Resultado disso é que hoje há, nas prisões espanholas, várias centenas de
presos políticos bascos, que jamais tiveram qualquer coisa a ver com a
preparação de qualquer atentado e cumprem sentença porque contra eles se
aplicaram leis de exceção que estabelecem, antijuridicamente, uma analogia entre
os atentados e outras condutas com objetivos políticos idênticos.
O modo como Garzón
e seus colegas da
Audiencia Nacional aplicam o conceito de “analogia” ao direito
penal viola princípios básicos de todo o ordenamento jurídico liberal. Raras
vezes, em regime que se denomine “democrático”, usaram-se tão extensivamente os
conceitos de analogia e amálgama, em direito penal, como o fez Baltasar Garzón,
com sua famosa teoria do “entorno”. Quanto às alegações de muitos, nos casos que
julgou, Garzón jamais mandou que fossem seriamente
investigadas.
Esse juiz
desmedidamente politizado, quis fazer-se de defensor da democracia contra todas
as ditaduras e processou o velho ditador chileno Augusto Pinochet, acusando-o de
genocídio. Há algo aí de humor involuntário, pois o juiz que perseguia o ditador
chileno autor da morte de 3.000 de seus concidadãos, era o representante da
continuidade legal e institucional de um regime que havia exterminado, nos seus
momentos de implantação, mais de 300 mil concidadãos e recebera Pinochet com
honras de chefe de Estado, nos funerais de Franco.
Augusto Pinochet |
O processo contra
Pinochet não prosperou, em parte por defeitos técnicos nas preliminares, mas
também por pressões políticas internacionais, e o sanguinário “Tata” morreu na
cama, em seu país. Além de ganhar fama graças ao processo contra Pinochet,
Garzón continuou a perseguir integrantes da esquerda abertzale [em catalão,
“patriotas”; é a esquerda basca, que defende a independência do País Basco] e de
outros setores da esquerda radical, fechou jornais, proibiu organizações
políticas e culturais etc., sempre em nome da defesa do Estado de direito.
Garzón chegou a
iniciar um processo para investigar as matanças e os desaparecimentos de
militantes antifranquistas, o que pareceu confirmar que estivesse tomando
posição contra todas as ditaduras e a favor da democracia. Depositaram-se neles
muitas esperanças de familiares de mortos e desaparecidos. Mas, depois de
instruir uma petição inicial com excelente documentação, que lhe foi encaminhada
por importantes historiadores, Garzón abandonou o processo, ao concluir que não
seria da competência da Audiencia Nacional.
Nem assim o
pseudosindicato “Mãos Limpas” e a Falange espanhola deixaram de acusar
Garzón de prevaricação, por ter iniciado o processo. Investigar os crimes do
franquismo não teria sentido algum, segundo esses grupos direitistas, porque os
crimes estariam prescritos, e Garzón só teria aceito iniciar o processo por
razões políticas.
Hoje, o Tribunal
Supremo
julgou Baltasar Garzón por outra causa: as escutas de
Gürtel. Em
flagrante violação do direito de defesa, Garzón ordenou que se plantassem
escutas para gravar conversas entre os acusados e seus advogados, no Gürtel.
Essas escutas clandestinas são prática corriqueira quando se trata da
esquerda
abertzale. Mas, se se aplicam os mesmos métodos aos poderosos, a
pessoas que têm relações diretas com o Partido Popular (PP) e, sobretudo, de
forma mais indireta, com a família real, os poderosos enquadrados enquadram o
juiz.
Iñaki Urdangarín |
Viu-se exatamente
o mesmo fenômeno no caso do processo contra o genro do rei, Iñaki Urdangarín,
contra cujo juiz iniciou-se recentemente uma investigação. No caso das escutas
de Gürtel, Garzón já foi inabilitado para exercer a função de juiz por 11 anos.
A esquerda oficial revoltou-se com grande alarido. É sem dúvida surpreendente
que o primeiro condenado no caso Gürtel seja o juiz, mas essa condenação,
perfeitamente justificada, será usada para compensar as sentenças mais
“clementes” nos processos dos crimes do franquismo, quando condenação a pena
mais leve pode gerar amplo escândalo internacional, nocivo à imagem do
regime.
Seja como for, é
bom exemplo de como funciona a armadilha da Transição, com dirigentes de
esquerda e parte da população de esquerda apoiando Baltasar Garzón aos gritos de
“Estou com Garzón”. Como se a causa desse burocrata do próprio regime pudesse
ter algo a ver com a justiça que centenas de milhares de familiares de vítimas
do franquismo ainda esperam. As manifestações em torno desse julgamento muito
“midiático” são boa ocasião para que se divulgue a causa da verdade histórica
num sistema político construído sobre a “negação” de um genocídio. Mas qualquer
apoio que se dê a Garzón como paladino da verdade e da justiça é perigoso. Cada
vez que se apóia o juiz que elaborou a doutrina “do entorno”, apóia-se o
conjunto de instituições e normas que se edificaram sobre valas cheias de
cadáveres e sobre o cancelamento da memória.
Apoiar Garzón é
resumir toda a política ao regime e não sair de um sistema que não pode fazer
justiça nem ao passado nem ao presente; é renunciar a romper com o regime das
valas comuns. Existem as duas Espanhas, mas se se examina o presente, a outra
Espanha, a Espanha democrática que não se atreve a ser republicana, está presa
na armadilha da Transição: quanto mais se esforça para escapar da rede, mais se
enreda.
Para sair dessa
armadilha, é preciso definir-se fora dela, negando toda a legitimidade ao regime
assassino do 18 de julho [1936, golpe dos monarquistas, de cujo fracasso parcial
resulta o início da guerra civil espanhola]. Para isso, ainda falta outro 14 de
abril [1931, proclamação da II República espanhola; expulsão do rei; primeira
constituição democrática espanhola], seguido de um grande e potente 15M
[Movimento dos Indignados, 15/5/2011].
Notas
dos tradutores
[1] Movimento
separatista basco. A sigla ETA corresponde a “Pátria Basca e Liberdade”,
em
euskara, o idioma basco.
[2] PIDE, Polícia
Internacional e de Defesa do Estado, polícia política portuguesa, que existiu
1945 e 1969 [NTs].
[3] PRESTON, Paul,
2011, (esp.) El
holocausto español. Odio y exterminio en la Guerra Civil y después,
Barcelona: Editorial Base.
[4] NERÍN, Gustau,
2008, La
guerra que vino de África, Barcelona: Ariel.
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