26/4/2012, Eric Hobsbawm,
London Review of Books, vol. 34, n. 8, p. 14
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Eric Hobsbawn |
Minhas
relações com Tony Judt datam de longo tempo, mas sempre foram curiosamente
contraditórias. Fomos amigos, embora não amigos íntimos e, apesar de ambos
sermos historiadores politicamente comprometidos, e de os dois preferirmos usar
roupa de trabalho, em vez do uniforme regimental de historiadores, sempre
marchamos ao som de diferentes toques de caixa. Apesar disso, nossos interesses
intelectuais tinham algo em comum. Nós dois sabíamos que o século 20 só poderia
ser bem compreendido por quem tivesse formação de historiador, porque todos
vivemos dentro do século 20 e partilhamos a paixão básica daquele século: a
crença de que a política seria a chave de nossas verdades, tanto quanto de
nossos mitos.
Apesar
de nossas diferenças, tanto Marxism and the French Left [1] de
Tony, como meu recente How to Change the World [2]
[3]
são
dedicados ao mesmo livre pensador, o falecido George Lichtheim. Dávamos-nos bem,
em termos pessoais – mas Tony era homem generoso, fácil de gostar. Tinha em boa
conta o meu trabalho, como escreveu em seu último
livro.
Tony Judt |
Apesar
disso, lançou contra mim um dos mais implacáveis ataques que recebi, numa
passagem que, imediatamente, se tornou citação obrigatória, sobretudo para os
ultras da extrema direita da mídia nos EUA. A crítica resumia-se ao
seguinte: para a esquerda, basta declarar em confissão pública que seu deus
fracassou e bater no peito; fácil assim, a esquerda já conquista o direito de
ser levada a sério; não se deve dar ouvidos a ninguém que não pense e escreva
que “socialismo = Gulag”.
Nunca
duvidei da sinceridade de Judt ao abraçar essa figura de retórica, numa polêmica
em que discutia com comunistas. Por sorte, a prática, em Judt, pouco teve a ver
com a teoria.
Para
a maioria de nós, a imagem hoje dominante é a coragem com que enfrentou a doença
degenerativa que o acometeu, e a morte.
Houve
uma espécie de grandeur romana em sua recusa a aceitar o inevitável da
doença, que quase convoca eulogias clássicas. Não só a decisão de levar o jogo
até o xeque-mate, mas a atitude de provocar a morte, demonstrando até o final
seu talento de grande professor, debilitado, mas nunca derrotado. É imagem
comovente, mas temos de resistir: estimular a construção de mitos não é atitude
digna em historiadores.
Tony
foi apresentado ao mundo como um novo George Orwell. É ideia errada, porque
embora ambos fossem homens de dotes excepcionais e ativos polemistas, eram muito
diferentes. Faltava a Tony a combinação de vários tipos de preconceitos que
havia em Orwell, que tomava o Velho Testamento, simultaneamente olhado como se
fosse passado e futuro, como profecia e como denúncia imaginativa. Judt jamais
escreveria 1984 ou Animal Farm. E Orwell, escritor muito mais
poderoso, não tinha nem uma fração da monumental gama de conhecimentos de Tony,
nem seu talento, nem sua agilidade e versatilidade intelectuais. Orwell jamais,
nunca, teria sobrevivido como intelectual acadêmico.
Mas
a comparação com Orwell também é perigosa, porque não se trata só de dois
escritores, mas de uma era política que já deveria estar hoje superada por bem:
a Guerra Fria. A reputação de Orwell foi erguida como poderoso lança-foguetes
intelectuais contra os soviéticos; e mesmo hoje, quando o resto de Orwell já
emergiu ou reemergiu, é nome que permanece congelado nos anos 1950s.
Tony
foi, é claro, tão anti-Stálin quanto qualquer outro, e crítico amargo dos que
não abjuraram o Partido Comunista, mesmo que se tenham provado satisfatoriamente
anti-stalinistas e, como no meu caso, já estejamos lentamente nos livrando da
esperança original de outubro de 1917. Como os sionistas que se opuseram a
encenações de Wagner em Israel, Tony foi dos que deixam
a antipatia política atravessar-se à frente do prazer estético, descartando o
poema de Brecht sobre quadros do Comintern, An die Nachgeborenen [Os
Admirados por Tantos], como poema “repulsivo”, não em termos literários, mas
porque inspirava pensamentos maléficos aos crentes.
Mas
é evidente, desde Thinking the 20th Century, que sua preocupação básica
durante a fase aguda da Guerra Fria, não era a ameaça soviética contra o “mundo
livre”, mas as discussões dentro da esquerda. Seu tema sempre foi Marx – não
Stálin e o Gulag. É verdade que, depois de 1968, passou a ser mais um liberal de
oposição militante contra a Europa Oriental, admirador dos turistas acadêmicos
de direita que forneciam praticamente tudo que se publicava sobre o fim dos
regimes comunistas na Europa Oriental. E isso o arrastou – e se esperaria coisa
melhor dele – a criar, com outros, o conto de fadas das “revoluções de veludo” e
“revoluções coloridas” de 1989 em diante.
Essas
revoluções jamais existiram.
Foram,
todas, diferentes reações à decisão dos soviéticos de sair de lá. Os verdadeiros
heróis daquele período foram Gorbachev, que destruiu a URSS, e homens do velho
sistema, como Suárez na Espanha de Franco e Jaruzelski na Polônia, que
efetivamente conseguiram garantir uma transição pacífica e foram execrados pelos
dois lados.
De
fato, nos anos 1980s, o liberalismo essencialmente social-democrata de Tony foi
rapidamente infectado pelo neoliberalismo econômico sem regras à Hayek, de
François Furet [e do Instituto Milênio, no Brasil (NTs)]. Não creio que esse
fogo-fátuo da Guerra Fria tenha sido essencial para o desenvolvimento de Tony,
mas sem dúvida contribuiu para dar mais corpo e profundidade ao seu
impressionante Pós-guerra.
O
modo como andou pela segunda metade do século é sui generis. Até fixar-se
em New York nos anos 1980s e começar a escrever para a New York Review,
não era historiador de grande destaque, sequer entre os especialistas anglófonos
em história da
França , talvez porque se tenha deixado arrastar por tempo
demais pelos infindáveis debates sobre a natureza da esquerda francesa. Antes
dos anos 1980s, Tony só era encontrado nas margens da história social, autor de
um excelente estudo do socialismo na Provence entre 1871 e 1914. Sua fase
francesa combinava erudição impressionante com, em minha opinião, resultados
historicamente triviais: rapidamente foi convertido em assunto para torneios
acadêmicos no mundo marginal e sem efeitos da Rive Gauche.
Mas
o que acontecia no “Les Deux Magots” e no “Flore”, embora culturalmente
prestigiado, era politicamente irrelevante, comparado ao que acontecia no outro
lado do boulevard St. Germain, na “Brasserie Lipp”, onde se reuniam os
políticos. A política de Sartre consistia em “tomar posição”, porque nada mais
havia que pudesse fazer; e De Gaulle sabia disso.
Em
qualquer caso, a esquerda raras vezes chegou ao poder, e provavelmente os únicos
intelectuais que chegaram a primeiro-ministro foram Léon Blum em 1936 e – ou,
pelo menos, foi uma boa imitação – Mitterrand.
Mediante
as mais fantásticas acrobacias intelectuais, cujo absurdo Tony não precisou
trabalhar muito para demonstrar, intelectuais de esquerda faziam o que podiam
para dar conta de uma situação nacional única, e do seu próprio isolamento, no
país que inventou a palavra “operarismo” [orig. “ouvrierisme”], quer
dizer: operários que absolutamente não acreditavam em intelectuais.
Quatro
coisas modelaram a história francesa nos séculos 19 e 20: a República nasceu da
Grande Revolução incompleta; o estado napoleônico centralizado; o papel político
crucial atribuído a uma classe trabalhadora pequena demais e desorganizada
demais; e o longo declínio da França, da posição que tivera antes de 1789, como
o Império do Meio da Europa, tão confiante quanto a China na própria
superioridade cultural e linguística. Foi a “capital do século
19” ,
sobretudo aos olhos estrangeiros, mas depois de Waterloo, deslizou lenta e não
continuamente, mas sempre para baixo, em termos de força militar, poder
internacional e centralidade cultural. Sem um Lênin e privada de Napoleão, a
França recolheu-se como um último – e esperemos, indestrutível – reduto, o mundo
de Astérix.
A
moda pós-guerra para pensadores parisienses mal disfarçava a retirada coletiva
para uma introversão de Hexágono e para dentro da última fortaleza da
intelectualidade francesa, o pensamento cartesiano e suas arrogâncias adjuntas.
Não havia qualquer outro modelo na educação superior e nas ciências, no
desenvolvimento econômico, nem – como se vê pela penetração tardia das ideias de
Marx – na ideologia da Revolução. O problema dos intelectuais de esquerda foi
como se entenderem com uma França essencialmente não revolucionária.
O
problema, para os de direita, muitos dos quais ex-comunistas, foi como fazer as
exéquias do evento fundacional e da tradição formativa da República, a Revolução
Francesa, tarefa equivalente, na dificuldade, à de escrever a Constituição
Americana a partir da história dos EUA. É missão impossível. Não podia ser
feito, nem por operadores muito inteligentes e poderosos como Furet; nem Tony,
mesmo que sobrevivesse, poderia ter restaurado a social-democracia que sempre
fora seu ideal.
Até
ali, Tony fizera nome como agitador de academia. Sua posição-padrão era de
legista: não de juiz, mas de advogado, cujo objetivo não é nem a verdade nem a
verossimilhança, mas ganhar a causa.
Não
é crucialmente importante investigar as próprias possíveis fraquezas, embora
seja o que deva fazer o historiador de grandes espaços, longos períodos e
processos complexos. Mas nem as décadas formativas, como intelectual de
acusação, impediram que Tony se transformasse em historiador maduro, atento e
bem informado.
Seu
grande trabalho nessa condição foi, sem dúvida, o gigantesco prende-portas,
Pós-guerra. Uma História da Europa desde 1945. Foi e é livro ambicioso,
embora vez ou outra desequilibrado. Não estou convencido de que a perspectiva do
livro parecerá adequada aos que o leiam agora pela primeira vez, sete anos
depois da publicação. Apesar disso, garanto, por experiência pessoal, que
grandes trabalhos de síntese histórica baseados em fontes secundárias e na
observação da história contemporânea só podem ser escritos na maturidade. Bem
poucos historiadores têm jeito para atacar objeto tão imenso, ou para levá-lo
até uma conclusão. Pós-guerra é feito muito impressionante. Se por mais
não for, porque qualquer trabalho que tome a narrativa até o momento presente já
carrega em si a própria obsolescência e tem futuro incerto. Mas talvez tenha
maior sobrevida como referência de trabalho de narrativa crítica, porque é
escrito com verve, garra e estilo. Pós-guerra fixou Tony, pela primeira
vez, como figura de destaque na profissão. Mas ele, então, já estava parando de
operar como tal.
No
século 21, sua posição já era menos de historiador, que de “intelectual
público”, brilhante inimigo do autoengano enfeitado com jargão de teoria, com o
pavio curto do polemista natural, comentarista independente e crítico sem medo
dos assuntos mundiais. Pareceu ainda mais original e radical, por ter sido
defensor muito ortodoxo do “mundo livre” contra o “totalitarismo” durante a
Guerra Fria, sobretudo nos anos 1980s. Frente a governos e ideólogos que liam
vitória e dominação mundial na queda do comunismo, Tony foi suficientemente
honesto consigo mesmo para reconhecer que as velhas verdades e os velhos slogans
tinham de ser detonados, depois de 1989.
Provavelmente,
só nos sempre nervosos EUA uma tal reputação poderia ter sido construída tão
rapidamente, só à base de uns poucos artigos em publicações de circulação
modesta, dirigidas exclusivamente a intelectuais de academia.
As
páginas dos grandes veículos da mídia estavam há muito tempo abertas a Raymond
Aron na França (bem claramente, uma das inspirações de Tony), ou a Habermas na
Alemanha, e o impacto que pudessem ter já estava há muito tempo neutralizado.
Tony
estava bem consciente dos riscos pessoais e profissionais que corria, atacando
as forças combinadas da empreitada de conquista norte-americana global, dos
neoconservadores e de Israel, mas foi homem bem servido do que Bismarck chamou
de “bravura civil” (Zivilcourage) – qualidade notavelmente faltante em
Isaiah Berlin, como o próprio Tony observou, talvez com alguma ironia.
Diferente
de escolastas e intelectocratas da Rive Gauche que, como disse Auden dos poetas,
“faziam acontecer nada”, Tony entendeu que uma luta contra tais novas forças
faria alguma diferença. E lançou-se, ele mesmo, contra elas, com evidente prazer
e engenho.
Essa
foi a figura que veio a ser depois do final da Guerra Fria, alargando sua
perícia de acusador de corte de justiça, para vergastar os Bushs e Netanyahus e
assemelhados, mais do que alguma absurdice no 5ème Arrondissement ou
algum professor emérito em New
Jersey. Foi performance magnífica, ato de primeira classe;
foi louvado por seus leitores, não só pelo que disse, mas por dizer o que muitos
deles jamais teriam a coragem de dizer. Foi ainda mais eficaz, porque Tony foi,
simultaneamente, homem “de dentro” e homem “de fora”, insider e
outsider: britânico, judeu, francês, eventualmente norte-americano, mas
plurinacional, mais que cosmopolita.
E,
sim, conhecia bem os limites do que estava fazendo. Como ele mesmo diz, os mais
bem-sucedidos na tarefa de dizer a verdade ao poder não são os colunistas, mas
os repórteres e fotógrafos, na onipresente mídia.
No
início dos 2000s, Tony tinha presença internacional, pelo menos no mundo de
língua inglesa. Duraria mais que os canônicos 15 minutos de Warhol?
Afortunadamente, graças aos anos de sua doença final, é possível responder a
pergunta. O trabalho de Tony sobreviverá, porque, depois que adoeceu, ele pela
primeira vez deixou de ver-se como acusador num tribunal e tentou formular o que
realmente sabia, sentia e pensava.
Thinking
the 20th Century
[Pensando o século 20] não é um grande livro ou sequer capítulo de um grande
livro – e como seria, dado o modo como foi escrito? – mas é leitura essencial
para quem queira saber o que historiadores contemporâneos têm a nos dizer. É
também modelo de discurso civilizado na aldeia acadêmica global. Mostra que
historiadores podem questionar os próprios pressupostos, examinar as próprias
certezas e ver como a própria vida de cada um é modelada e remodelada pelo seu
século. E, não menos importante, é valioso memorial de um homem notável e da
vida que decidiu viver.
Notas
dos tradutores
[1] O
mal ronda a Terra, São Paulo: Editora Objetiva, 2011, trad. Celso
Nogueira.
[2]
Como Mudar o Mundo. Marx e o Marxismo, 1840-2011, São Paulo: Cia. das
Letras.
[3] Sobre
Marx e os Marxismos, de Hobsbawm, ver na redecastorphoto resenha de Terry
Eagleton, maravilhosa (23/2/2011), London Review of Books, “Indomáveis”.
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