3/5/2012, Gareth Porter, Asia
Times Online
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Gareth Porter |
WASHINGTON. Os quem têm comentado o
acordo “Parceria Estratégica Duradoura” [orig. Enduring Strategic
Partnership] entre o governo Obama e o governo afegão e os memorandos de
entendimento [orig. memorandums of understanding (MoUs)] que o acompanham
têm destacado a transmissão da responsabilidade para os afegãos e o fim da
guerra para os norte-americanos.
De fato, o único acordo substantivo
firmado entre EUA e Afeganistão – cuidadosamente escondido nas entrelinhas dos
documentos – é o que autoriza as poderosas Forças de Operações Especiais dos EUA
[orig. US Special Operations Forces (SOF)] a prosseguir com os
raids noturnos unilaterais contra residências de civis, noite após noite,
unânime e universalmente odiados nas áreas em que vivem os pashtuns.
A divulgação do novo acordo, depois
de viagem-surpresa de Obama ao Afeganistão, com direito a pronunciamento do
presidente pela televisão em horário nobre e press-releases para a grande
imprensa de repetição, ajudam Obama a entrar numa dura campanha eleitoral, com a
plataforma de ter posto fim a uma guerra impopular nos EUA.
Províncias do norte do Afeganistão que sofre bombardeio dos EUA-OTAN sobre civis |
Também permite que o presidente
Hamid Karzai diga que afinal teria posto sob controle os raids aéreos das
Forças Especiais dos EUA, além de ter obtido 10 anos de ajuda econômica
norte-americana ao país.
Mas os textos verdadeiros do acordo
e do memorando de entendimento relativo aos raids noturnos não põem fim à
guerra dos EUA no Afeganistão nem de modo algum dão a Karzai controle sobre os
ataques dos EUA às áreas pashtuns.
A verdadeira notícia, portanto, é o
sucesso do governo Obama na operação de esconder tudo isso por trás do conto do
acordo bem sucedido.
As decisões de Obama sobre quantos
soldados norte-americanos permanecerão no Afeganistão em 2014 e depois, e sobre
a missão daqueles soldados, só serão tomadas num “Acordo Bilateral de Segurança”
[orig. Bilateral Security Agreement] ainda a ser firmado. Embora os
funcionários do governo não deem qualquer informação específica sobre essas
negociações nos textos que distribuem para a grande imprensa de repetição, o
texto da “Parceria Estratégica” diz claramente que o processo de assinatura do
acordo está sendo iniciado, “com o objetivo de concluí-lo dentro de um
ano.”
Isso implica que, de fato, Obama
nada tem a anunciar – antes das eleições presidenciais de 2012 – sobre soldados
dos EUA que permanecerão (ou não) no Afeganistão, mas, simultaneamente, permite
que ele diga que, pelo menos por hipótese, os EUA estariam saindo do
Afeganistão, além de conseguir escamotear, no momento, a questão da permanência
de longo prazo de tropas norte-americanas, naquele país.
O Acordo Bilateral de Segurança
substituirá o Acordo Sobre o Status das Forças [orig. Status Of Forces
Agreement, SOFA] firmado entre EUA e Afeganistão em 2003. Pelo SOFA
ainda vigente, os soldados norte-americanos gozam de imunidade (não podem ser
acusados de crimes); e não há qualquer limitação relacionada a bases e operações
militares dos EUA em território afegão.
Mês passado, os EUA tiveram de
aceitar os temos do memorando de entendimento sobre os raids aéreos
contra populações pashtuns, porque Karzai ameaçava não assinar qualquer Acordo
de Parceria, a menos que os EUA entregassem ao governo afegão o controle sobre
os raids noturnos contra áreas habitadas por civis afegãos. A insistência
de Karzai em acabar com esses ataques em áreas civis e contra a prisão de
afegãos por forças norte-americanas bloqueou, durante meses, as negociações para
o Acordo de Parceria.
Mas a exigência de Karzai o põe em
conflito direto com os interesses de alguns dos membros mais influentes de todo
o aparato militar dos EUA: as Forças de Operações Especiais. Sob o comando dos
generais Stanley A. McChrystal e David Petraeus, a estratégia de guerra dos EUA
no Afeganistão passou a depender quase integralmente de uma suposta alta
eficácia dos ataques noturnos executados por unidades das Forças Especiais, que
estariam conseguindo minar a guerrilha Talibã.
Sem tomar conhecimento de qualquer
acordo existente ou em negociação, os comandantes do Comando Central [orig.
CENTCOM, Central Command] recusaram-se a suspender os raids
noturnos e a entregar ao governo afegão o poder de controlá-los, como o Inter
Press Service (IPS) noticiou em fevereiro (“Karzai demand on
raids snags US pact”, Asia Times Online, 22/2/2012).
Durante semanas, os dois lados
tentaram rascunhar um acordo que Karzai pudesse apresentar como atendimento de
suas exigências, mas que, de fato, mudasse pouca coisa ou, se possível, que nada
mudasse.
No fim, Karzai teve de ceder. O que
se fez foi mascarar a evidência de que o acordo implica um novo nível de
falsidade, na divulgação para o grande público da significação de qualquer
acordo internacional que envolva operações militares dos EUA.
O memorando de entendimento foi
apresentado nos noticiários como mudança oceânica na condução das operações. A
CNN, por exemplo, falou de um “marco nas negociações” que “garante às
autoridades afegãs efetivo poder de veto sobre os controversos raids das
operações especiais.”
Mas leitura atenta do texto do
memorando de entendimento e dos comentários feitos por autoridades militares
norte-americanas indicam que, na prática, nada mudará, de substancial, no
status quo.
O acordo foi negociado entre o
comando militar dos EUA em Kabul e o Ministério da Defesa afegão; e advogados
dos militares norte-americanos acrescentaram uma cláusula crucial, que modificou
fundamentalmente a significação do resto do texto.
No
primeiro parágrafo da definição dos termos, o memorando de entendimento diz:
“Para o objetivo desse Memorando de
Entendimento (MdE), operações especiais são operações aprovadas pelo Grupo
Afegão de Coordenação Operacional e conduzidas pelas Forças Afegãs com apoio das
Forças dos EUA conforme as leis afegãs”.
Essa sentença, muito cuidadosamente
esculpida, significa que os únicos raids noturnos cobertos pelo memorando
são os que o comando das Forças Especiais norte-americanas responsáveis pelos
raids decidam levar ao conhecimento do governo afegão. Os raids
que as unidades dos EUA decidam executar sem consultar o governo afegão não
estão cobertos pelo memorando de entendimento.
Tudo que os grandes veículos da
imprensa norte-americana estão noticiando sobre o memorando de entendimento,
sugerindo que a atividade das Forças Especiais dos EUA teria sido posta sob o
comando do governo afegão, simplesmente ignora essa frase.
Na direção oposta, porém, o
porta-voz do Pentágono, John Kirby, já dissera aos jornalistas, sem meias
palavras, dia 9/4, que Karzai não teria poder de veto sobre os raids
noturnos. “Absolutamente não se trata de os EUA transferirem qualquer
responsabilidade aos afegãos” – disse ele.
Kirby não quis comentar a
possibilidade de as unidades das Forças Especiais cujas operações são
independentes das unidades afegãs serem afetadas pelo memorando de entendimento
– o que ajuda a confirmar que não serão afetadas.
Kirby explicou que o acordo apenas
“codificou” o que já seria feito desde dezembro de 2011: Forças Especiais do
Afeganistão comandam a maioria dos raids noturnos; agora farão buscas
dentro do complexo.
Mas, naqueles raids, as
Forças Especiais dos EUA continuaram a prender e matar afegãos.
A disparidade entre a realidade do
acordo e a visão criada pelos press-releases distribuídos para a grande
imprensa de repetição faz lembrar as declarações de Obama em 2009 e 2010 sobre a
retirada das tropas de combate norte-americanas no Iraque e sobre o fim da
guerra dos EUA naquele país. Na verdade, as unidades de combate permaneceram no
Iraque e as missões de combate prosseguiram até bem depois de 1/9/2010, data
limite que Obama demarcara para a retirada.
Entre 2010 e 2011, depois daquela
data limite, morreram no Iraque 58 soldados norte-americanos.
Há
porém uma diferença fundamental entre esses dois exercícios de modelar a
cobertura “jornalística” e a opinião pública: o acordo de retirada do Iraque, de
2008, tornava politicamente muito difícil, se não impossível, para o governo do
Iraque, manter soldados norte-americanos naquele país depois de 2011. No caso do
Afeganistão, os acordos assinados não impõem limitações semelhantes à
permanência dos militares dos EUA.
Embora Obama fale de uma política
para por fim à guerra dos EUA no Afeganistão, os militares e o Pentágono já
disseram, publicamente, que esperam manter lá, por muitos anos depois de 2014,
milhares de soldados das Forças Especiais.
Obama esperava seduzir lideranças
Talibãs e levá-las a conversações de paz que facilitariam a implantação no
Ocidente da ideia (falsa) de que os EUA estariam saindo do Afeganistão, ao mesmo
tempo em que a guerra prosseguiria. Pena que os Talibã tenham decidido não
cooperar.
Obama não podia dizer, em Cabul, que
unidades das Forças Especiais dos EUA continuarão a caçar Talibãs até dentro de
casa, para forçá-los a aceitar a paz com Karzai. Seria revelar o segredo que
continua escondido no acordo “Parceria Estratégica Duradoura” entre EUA e
Afeganistão.
É mais que hora de Obama assumir que
os Talibã entendem perfeitamente o que os norte-americanos não entendem: os
raids noturnos dos EUA no Afeganistão prosseguirão até bem depois de
2014. E não importa que, por causa deles, a única coisa duradoura que continua a
crescer por lá seja o ódio que os soldados dos EUA e da OTAN (Organização do
Tratado do Atlântico Norte) inspiram aos cidadãos afegãos.
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