quarta-feira, 13 de junho de 2012

Crônica para a namorada madura



Publicado em 12/6/2012 por Urariano Motta*

Fernanda Lima é a capa da edição deste mês da Revista Boa Forma. “O corpo piora com o passar dos anos e não tem outro jeito a não ser redobrar os cuidados”.


Pois assim como a noite vinda depois do dia, que não mais pode ser da natureza do dia, mas no seu escuro, nas suas estrelas, tem um encanto, que por ser diverso daquele do dia não deixa de ser um encanto.

Assim como nas sucessões físicas, temporais, de toda a natureza, da flor que fenece e cai e se ergue em outra a partir dos grãos derramados, até a onda do mar que se espraia e se desfaz e se refaz dos seus restos em nova onda, assim também o amor dos primeiros anos, que resistiu à inconstância da paixão, se faz sentimento curtido, de marcas e rugas que entranham o sol, organizando-se em nova pele. Ainda que sem a elasticidade e frescor dos primeiros anos, vem o sabor íntimo do vinho de que se aprendeu a gostar, uma cumplicidade de lições apreendidas no toque sem palavras, que o rebento dos primeiros fogos não alcançava.

Pois não é próprio do fogo o consumo e o autoconsumo, voraz no incêndio e lento depois até as brasas que por fim esfriam? Pois sendo natural do fogo a destruição inexorável, linear e de sentido único, do começo para o fim, do começo para o fim, e sempre, é no entanto mais próprio da coisa humana o guardar semelhança com os fenômenos naturais, mas sem se deixar reduzir ao que não tem o salto e a qualidade da natureza da gente.

Se os primeiros anos de amor são um fogo sem medida, e ao dizer isso guardamos apenas uma cômoda aproximação, pois não são exatamente um fogo a loucura e a impulsividade e o não ter limites os atos e ações daqueles anos, menos própria será a comparação do amor que amadurece ao fogo que lentamente se apaga. Pois se esse amor guarda correspondência com o próprio amadurecimento da gente, e portanto faz sua casa nas rugas do nosso rosto, e por rugas lembramos sempre os efeitos do sol ao longo do tempo na matéria couro de nosso semblante, isto não quer dizer, a continuar nesse processo, que o amor que amadurece, por lembrar sol e destruição do frescor, venha a ser um inventário de perdas.

Pois ainda que assim fosse, a esta altura já aprendemos que as perdas na vida não são um número frio, acabado e fechado, afetado de um sinal negativo. Diríamos, num primeiro impulso, que elas se reservam em experiência. Dizendo menos mal, diríamos que as perdas na vida organizam um novo ser, aquele ser que sabe porque aprendeu que a vitória não é bem um metódico e unidirecional fazer a coisa certa.

Que a vitória é um fazer inúmeras coisas erradas, que ao receberem uma reflexão e um julgamento iluminam o fazer a coisa menos errada. Que a vitória sobre as trevas é como um labirinto que oculta um caminho secreto e inteligível até a maravilhosa saída. Mas ainda aí, nessa tradução de perdas, o amor amadurecido ainda não é alcançado. Pois para ele, para esse amor que sofreu mudanças ao longo dos anos, o que há e o que houve não são nem foram exatamente perdas. Por exemplo, é exatamente uma perda o não levar a amada para a cama com a mesma frequência dos primeiros tempos? Um cínico, míope, como todos os cínicos, diria que sim.

Que uma coisa é fazer sexo, e aqui mais se mostra a miopia ao fazer equivalentes o amor e o sexo, pois uma coisa seria fazer sexo três vezes por dia nos 30 dias de um mês, todos os meses, e outra bem diferente é fazer sexo quando Deus, a conveniência, a oportunidade e as forças forem servidas. Já nessa resposta o cínico não vê a etapa superior que é o prazer que conhece sobre a fome onívora. Enquanto o primeiro evita caminhos precários, já trilhados, a segunda vai às cegas até atingir uma provisória satisfação sempre insatisfeita.

É claro que o amor que amadurece não nos deixa menos carnais, mais virtuosos ou santos. Ele, de um ponto de vista mais pragmático, nos deixa mais perceptivos da bagagem que ao longo da jornada acumulamos.

De um ponto de vista menos prático, menos visivelmente prático, queremos dizer, esse amor é a transformação daquele sentimento juvenil que só desejava a própria satisfação.

Que em vez de abrigar buscava urgente abrigo.

Em lugar da busca de formas perfeitas, e sabe-se lá o que a carência idealizava como perfeitas, coxas, busto, ventre, rosto, perfume e fetiches ativos e exuberantes, esse amor maduro põe a compreensão de que a estação das formas fôrmas não se guarda nua em mármore.

Que aquela pedra é forma oca de experiência. Mas que nem por isso esse amor transformado é um sentimento outonal, do ocaso.

Ele não é como o sentimento de alguém que vê a chuva batendo na janela, e aconchegado no calor da sala se diz, “para a rua não poderei mais sair”.

Ele é apenas, talvez, uma doce intimidade conquistada. Sujeito a trovoadas, tempestades, pois a vida não é de paz, dentro e fora do sentimento. Mas sem aquelas soluções terminativas, definitivas, dos arroubos sectários dos primeiros anos, “ou isto ou aquilo”.

Esse amor maduro diz melhor, fala melhor às sístoles e diástoles do coração amadurecido.

Dele fala melhor o que não é conceito, ao que é essencial encarnado no destino mesmo da gente.

E o essencial é que as rugas, as gorduras, os ossos frágeis do objeto que se ama se revelam uma fortaleza.

O amor que amadurece ama a pessoa exatamente nesse tempo de decadência física, e por essas, e por causa mesmo dessas formas.

As fragilidades físicas se tornam uma qualidade, pois remetem a uma história comum. Esse amor apenas deseja dizer, “saiba que aprendi muito a amar as suas rugas”.

O que quer dizer, ele, esse novo amor, não quer vê-la sozinha, ele a quer a seu lado nos próximos, nos poucos e infelizmente poucos anos que lhes restam. Como flores na praia açoitadas pelo vento, até que venham as ondas e tudo cubram.

(enviado pelo autor) 
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Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). 

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