Publicado em 14/06/2012 por
Urariano Motta *
Recife (PE) - Os jornais desta
semana anunciaram um atentado grave para todos que amam a criação e a
literatura: o gênio essencial de nome Gabriel García Márquez está perdendo a
memória. O anúncio veio de Plínio Apuleyo Mendoza, amigo na juventude de García
Márquez, sobre quem publicou o bom livro Cheiro de Goiaba.
Assim anunciou Plínio
Apuleyo:
No dia em que ele completou 85
anos (6 de março), liguei para dar parabéns, mas quem falou comigo foi Mercedes,
sua esposa. Ela preferiu assim porque ele não se lembrava de mim. Mendoza também
contou que o filho do Márquez, Rodrigo --que é seu afilhado -- revelou a ele que
o pai precisa ver as pessoas “porque senão, pela voz, não sabe quem está
falando” . Nas últimas vezes em que conversamos pessoalmente, na Cidade do
México, ele repetiu várias vezes: “Como anda você? O que tem feito? Quando volta
de Paris?” Muitos amigos comuns com quem falei sobre o assunto disseram que com
eles aconteceu a mesma coisa. Gabo fez as mesmas perguntas. Existe a suspeita de
que ele tenha algumas fórmulas. Se não reconhece alguém, não pergunta “quem é
você”?. Prefere fazer perguntas genéricas.
Essa notícia, além do puro
registro dos jornais, que anunciam desastres, explosões, esquartejamentos,
queima de pessoas e livros entre um anúncio comercial e outro, mereceria um
ensaio sobre as pessoas que são tão imensas que esquecemos a sua materialidade.
Elas são de carne, ainda que tão queridas. Mas como esta coluna é sempre um
ensaio de algo melhor que poderia ser escrito, quem sabe, um dia mais adiante,
prefiro lembrar que essa morte anunciada, da memória no maior escritor vivo, já
se encontrava na biografia “Gabriel García Márquez – Uma vida”, de Gerald
Martin, publicada no Brasil em 2010. Dela ontem à noite pude copiar, com a
respiração tensa:
Gabo não podia mais dar respostas
claras e acuradas a perguntas diretas e inesperadas, e era capaz de esquecer o
que acabara de dizer cinco minutos antes. Eu não era especialista sobre as
diferentes formas e progressões da perda da memória, mas minha impressão foi de
que sua condição progredia com bastante constância. Era duro ver um homem que
havia feito da memória o foco central de toda a sua existência assediado por tal
infortúnio. Gabo era “um recordador profissional”, como sempre se
chamou...
Com dicas adequadas podia
lembrar-se de mais coisas do passado remoto – embora nem sempre os títulos de
suas obras – e travar uma conversa razoavelmente normal e até bem-humorada. Mas
sua memória imediata estava fragilizada, e Gabo se mostrava claramente
angustiado com isso e sobre a fase em que parecia ter entrado. Depois que
conversamos sobre seu trabalho e seus planos por algum tempo, declarou que não
tinha certeza se voltaria a escrever. Então ele disse, quase melancólico:
“Escrevi bastante, não escrevi? As pessoas não podem ficar frustradas, e não
podem esperar mais nada de mim, não é?”
Estávamos sentados em imensas
poltronas azuis, numa saleta íntima do hotel, de onde se via o anel rodoviário
do sul da Cidade do México. Lá fora estava o século XXI, voando. Oito pistas de
tráfego incessante.
Ele me olhou e
disse:
- Sabe, algumas vezes fico
deprimido.
- Como? Você, Gabo, depois de tudo
que realizou? Não acredito. Por quê?
Ele gesticulou para o mundo além
da janela – a grande artéria de tráfego intenso, a intensidade silenciosa de
todas aquelas pessoas comuns vivendo a vida num mundo que não era mais seu -
depois voltou o olhar para mim e murmurou:
- Porque percebo que tudo isso
está chegando ao fim.
Dizer o quê, escrever o quê sobre
a última notícia que vem tarde, agora? Esse anúncio vem com um atestado
semelhante à verdade, porque repórteres copiam os fatos. O que é que podemos
fazer diante da sentença, que não admite recurso, desse tribunal da vida?
Gabriel García Márquez, em toda
nossa juventude, nos deu conforto, humor e um estado de graça para suportar o
risco da morte. Lá na pensão, em atividade clandestina, a sua literatura era
melhor que cinema, viajar ou beber cerveja.
Então voltemos a seu livro máximo.
Em “Cem Anos de Solidão” ele escreveu:
“El mundo era tan reciente, que
muchas cosas carecían de nombre, y para mencionarlas había que señalarlas con el
dedo”.
Assim foi, assim é.
Penso que o escritor, na sua
memória ao fim, está voltando ao princípio do mundo.
Enviado
por Direto
da Redação
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.