25/7/2012, Pepe Escobar, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Pepe Escobar |
O
Norte da África e a Ásia Central parecem partilhar os mesmos tormentos:
ditaduras, corrupção desenfreada, miséria, alto desemprego entre os jovens,
total controle sobre a mídia e limitado espaço de ação para qualquer tipo de
oposição.
Não
surpreende que as primeiras escaramuças da Primavera Árabe no Norte da África –
lutas populares por democracia – tenham deixado apavorados a maioria dos
governos ao longo da Rota da Seda. Mais que democracia, o que viram ali foi o
espectro da islamização. Daí o bloqueio de Facebook e Twitter, a instalação de filtros de
internet made-in-China – combinados à ausência de qualquer rede de
notícias semelhante à Al Jazeera para disseminar a Palavra.
O Ocidente não está exatamente interessado |
Os
homens-fortes centro-asiáticos têm razão de andarem temerosos, olhando atrás a
cada passo – de fato, aterrorizados – com o que está acontecendo no Egito e na
Síria. Islam Karimov no Uzbequistão, e Nursultan Nazarbayev no Cazaquistão estão
no poder, cada um, há 21 anos. Emomalii Rakhmon permanece na presidência do
Tadjiquistão desde a sangrenta guerra civil dos anos 1990s.
Islam Karimov |
Sim,
houve transição política no Turcomenistão em 2007, quando morreu o esfuziante
Saparmurad Niyazov. Mas a serpente continuou a serpentear como sempre
serpenteara também no governo do novo líder, Gurbanguly Berdymukhamedov.
O
caso mais complexo é o Quirguistão, que passou pela sinistra Revolução da Tulipa
em 2005 e pela Revolução anti-Tulipa em 2010. Hoje, o Quirguistão é república
parlamentar pluripartidária, mas continua naufragado em miséria, com sérios
antagonismos entre norte e sul e o Vale Ferghana, campo minado de disputas
étnicas.
Noutros
pontos, prevalecem reformas cosméticas. O Parlamento é hoje um pouco menos
caricato no governo de Karimov – do que seria, em tese, sob Nazarbayev.
Nursultan Nazarbayev |
Mas
esqueçam eleições livres e justas, mídia independente ou verdadeiro debate
multipartidário. O Uzbequistão poderia facilmente se converter numa Síria
Centro-Asiática, com guerra civil entre o sistema Karimov, o exército, os
radicais, o Movimento Islâmico do Uzbequistão (MIU) alinhado com os Talibã e a
oposição secular. Quanto à porosa fronteira tadjique-afegã, continua a ser
atração extremamente atraente para o Islã radical.
Entreguem-me na minha base a
tempo
[1]
A
Ásia Central é crucial, porque está no coração da Eurásia – e, pois, no coração
do Novo Grande Jogo, no qual se confrontam essencialmente EUA versus
Rússia e China, com vasto sortimento de players menores, como Irã,
Turquia e Paquistão.
No
que tenha a ver com o jogo hardcore de poder chamado Novo Grande Jogo,
ninguém ali sequer cogita, remotamente que fosse, de democracia. Washington
parece dar a impressão de que a Ásia Central é área de influência russa – e
chinesa. Nada disso. Não há projeto que seduza mais o establishment de
inteligência norte-americana que as bases militares dos EUA, por toda a Ásia
Central.
Emomalii Rakhmon |
No
final de junho, as autoridades do Uzbequistão deixaram a Organização do Tratado
de Segurança Coletiva [ing. Collective Security Treaty Organisation
(CSTO)]. Esse CSTO é um fórum que existe há dez anos, de questões
político-militares, que reunia Rússia, Belarus, Armênia e, até a defecção do
Uzbequistão, os cinco ‘-stãos’ da Ásia Central.
Tashkent disse [2] que se separava da CSTO por
causa de “diferenças” relacionadas ao Afeganistão. A verdadeira razão, segundo
Vadim Kozioulin, especialista em Ásia Central: uma complexa negociação com
Washington para, talvez, “devolver” aos EUA a base militar de Khanabad, que
passou a ser usada pela Rússia desde que Karimov expulsou de lá os EUA, em 2005.
Os uzbeques podem por a mão em uma
montanha de bugigangas, se o negócio sair: armas, toneladas de equipamento não
militar que, se não tiver esse destino, será deixado apodrecer no Afeganistão e,
o principal prêmio, o status de “aliado estratégico dos EUA”. [3]
Gurbanguly Berdymukhamedov |
O objetivo central de Washington
em tudo isso é – e o que mais seria?! – acrescentar mais um elo no progressivo
cerco ao Irã. É há também o objetivo de Tashkent – torpedear o projeto que é
hoje menina-dos-olhos do presidente Vladimir Putin da Rússia: uma União
Eurasiana.
[4]
O
Tadjiquistão, por sua vez, acirra a disputa entre Moscou e Washington em torno
do aeroporto militar de Aini, a apenas 15 quilômetros da capital
Dushanbe. Tadjiquistão hospeda a 21ª Divisão Russa, com mais de 6 mil homens, na
maior base russa fora da Rússia, de todo o mundo.
Washington
já está no Quirguistão via a pequena base de Manas, próxima da capital Bishkek –
crucial para a guerra do Afeganistão. Mas Bishkek quer muitos rublos pelo
aluguel, a Moscou, de três outras bases.
O
resumo de tudo é que essas elites centro-asiáticas imensamente corruptas já
salivam, antecipando o momento em que a OTAN deixará o Afeganistão,
em 2014. Mas os EUA, seja como for, permanecerão lá, com aqueles 20 mil e tantos
“conselheiros”. E a todos esses regimes, Washington mantém a oferta proverbial
que eles não podem recusar: apoio político.
Uma
coisa é certa: Putin fará o diabo; quem tentar deter Moscou pagará caro.
Agora, sobre a “comunidade
internacional” real
O
Novo Grande Jogo corria solto, quando os presidentes de China, Rússia e os
quatro “-stãos” (menos o Turcomenistão idiossincrático) reuniram-se em Pequim,
no início de junho, para a reunião de cúpula da Organização de Cooperação de
Xangai (OCX) [orig. Shanghai Cooperation Organisation (SCO)]. [5]
A Organização de Cooperação de Xangai (SCO) incluiu incremento de países asiáticos, mas tradicionais potências ocidentais não foram convidadas a participar [EPA] |
Importantíssimo,
os presidentes do Afeganistão, Irã, Paquistão, Turcomenistão e Mongólia, além do
ministro de Relações Estrangeiras da Índia também participaram daquele encontro.
Não poderia haver melhor cenário para que a OCX anunciasse – via Moscou e Pequim
– outra visão de mundo, a deles, absolutamente diferente da visão de mundo
ocidental.
Eis
aqui, então, parte considerável do que a verdadeira “comunidade internacional”,
a real – não aquela ficção de que falam Washington, Londres e Paris – pensa
sobre episódios chaves do Novo Grande Jogo.
A
OCX é absolutamente contrária ao esquema de escudo de mísseis de EUA-OTAN.
Quanto aos ‘-stãos’ centro-asiáticos, melhor que se mantenham afastados da OTAN:
se houver crise regional, terá de ser resolvida regionalmente. A OCX quer “um
Afeganistão independente, neutro e em paz” (o Afeganistão já foi promovido ao
status de observador da Organização de Cooperação de Xangai); é o mesmo que
dizer, com outras palavras, que Rússia e China farão o que for preciso fazer e
possam fazer para apagar a influência dos EUA sobre Kabul.
A
OCX condena intervenções ditas “humanitárias” à moda do que foi feito contra a
Líbia, e todo os tipos de sanções unilaterais. A OCX privilegia a lei
internacional da velha escola que produziu a Carta da ONU – e trabalhará a favor
de uma futura reforma do Conselho de Segurança da ONU. Sobre a Síria, a única
solução é o diálogo político, no qual Moscou, sempre sensível, incluirá o Irã.
A
OCX considera “inaceitável” um possível ataque contra o Irã. Ao mesmo tempo, e
importantíssimo, nem Pequim nem Moscou querem ver alguma hipotética bomba
nuclear iraniana.
Haverá
crescente cooperação econômica entre os estados-membros da OCX. Passos futuros
incluem um Banco de Desenvolvimento da OCX. Moscou continua a ser o principal
parceiro comercial dos “-stãos” centro-asiáticos.
E
um desenvolvimento muito intrigante: a Turquia, estado-membro da OTAN – e parte
da rede chamada “escudo de mísseis” dos EUA – foi admitida como “parceira para
diálogos”, na Organização de Cooperação de Xangai. Nada de admissão, pelo menos
ainda não, nem para Índia nem para o Paquistão. Mas é inevitável que, em futuro
próximo, esses países também se tornem membros plenos, assim como o Irã.
Ainda
não se pode falar de uma OTAN oriental. A Agência de Notícias Xinhua, em
movimento de despistamento, insiste que a Organização de Cooperação de Xangai é
uma “parceria”, não uma “aliança”.
O que está “blowing in the wind”?
A
OTAN, evidentemente, tem ideias diferentes. Convidou quatro “-stãos” (exceto,
outra vez, o Turcomenistão) a participar da reunião de cúpula da aliança, em
Chicago, em maio. A
OTAN tem anseio ainda mais forte que o da OCX por “parcerias”.
Mas, em idioma da
OTAN , “parcerias” significa “bases militares”.
Dizer
que a OTAN e a OCX estão em rota de colisão é dizer pouco. Já há muito tempo o
foco da OCX deixou de ser o fundamentalismo islamista – como o dos Talibã no
Afeganistão. De agora em diante, como o ministro Sergei Lavrov das Relações
Exteriores da Rússia deixou bem claro, a OCX terá política comum para qualquer
tipo de crise na região – e, por falar nisso, também para crises fora da região.
A
principal e mais grave dor de cabeça que a OCX terá de enfrentar, em clave
local, será o Uzbequistão. Wily Karimov está aumentando as apostas como se não
houvesse amanhã.
A
Rede Norte de Distribuição da OTAN [orig. NATO's Northern Distribution
Network (NDN)] para o Afeganistão inclui Uzbequistão, Tadjiquistão e
Turcomenistão. O que o trio realmente quer é lucrar o mais possível por ser
território de passagem. Dado que a agenda real (oculta) da OTAN não é qualquer
“securitização” da Ásia Central, mas criar uma barreira que impeça o avanço da
influência de Rússia e China, está montado o cenário para episódios épicos de
barganha e corrupção desenfreadas.
O
que é e continua bem claro é que, nessa nova rodada do Novo Grande Jogo, o que
menos o ocidente deseja ver operante é alguma “democracia”. Por esse motivo, o
ocidente não facilitará processo algum que ameace soprar algum sopro de
Primavera Árabe na direção dos países da Rota da Seda.
Notas dos
tradutores:
[1] Orig. “Get me to my base on time”.
Todos que trabalhamos nessa tradução
lembramos de “Get me to the church on time” [“Amarrem-me, prendam-me, chamem o
Exército, mandem-me pelo Correio, mas... entreguem-me na Igreja a tempo”], de My
Fair Lady, cantado na Broadway em 1957 por Stanley Hollowly, já vestido a
caráter, que sai para beber com os amigos feirantes, na véspera do casamento.
Inesquecível. Pode ser visto e ouvido a seguir:
[2] 29/6/2012, Voz
da Rússia em: “Small loss of” (em
russo)
[3] 4/7/2012, Nezavisimaya Gazeta, Victoria Panfilov
em: “Uzbequistão se volta para os EUA”
(em russo)
[4] 3/10/2011, Reuters, Gleb
Bryanski em: Russia's
Putin says wants to build “Eurasian Union” (em
inglês)
[5] 26/6/2011, Al-Jazeera, Pepe Escobar, na redecastorphoto em: “Pequim
e Moscou, depois da reunião da Organização de Cooperação de Xangai”, em
português.Ver também,
sobre o mesmo encontro, em: 13/6/2012, Asia Times online, MK Bhadrakumar, na redecastorphoto em: “OCX:
para enfrentar tempos de mudanças”, em português.
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