Guerra de
negócios, não de balaços...
6/8/2012, Pepe Escobar, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Negócio entre Síria e Irã pode ameaçar gravemente a posição da Turquia na estrada leste-oeste de energia [REUTERS] |
Muito abaixo
do “vulcão de Damasco” e da “batalha de Aleppo”, as placas tectônicas do
tabuleiro de xadrez da energia global continuam a mover-se. Além da tragédia e
do luto da guerra civil, a Síria é também disputa pelo poder no
oleogasodutostão.
Pepe Escobar |
Há mais de um ano, foi fechado um
negócio de US$10 bilhões no Oleogasodutostão, [1] entre
o Irã, o Iraque e a Síria, para construir, até 2016, um gasoduto que unirá os
campos de petróleo gigantes de South Pars no Irã – atravessando o Iraque e a
Síria, com uma possível extensão até o Líbano – e os mercados alvos de
exportação (a Europa).
Ao longo dos
últimos 12 meses, com a Síria naufragada em guerra civil, não se falou do
oleogasoduto. Até que a conversa recomeçou. A paranóia suprema da União Europeia
é não se deixar prender, como refém, pela Gazprom russa. O oleogasoduto
Irã-Iraque-Síria é item essencial para diversificar os suprimentos de energia e
pôr fim ao “monopólio” russo.
Mas é mais
complicado que isso. Acontece que a Turquia é o segundo maior cliente da
Gazprom. Toda a arquitetura da segurança energética turca depende do gás que vem
da Rússia – e do Irã. A Turquia sonha com tornar-se a nova China, configurando a
Anatólia como o entroncamento-encruzilhada estratégico para a exportação do óleo
e gás da Rússia e dos campos de gás e petróleo russos, Cáspio-Central-asiático,
iraquiano e iraniano, para a Europa.
Tente passar
a perna em Ancara nesse jogo, e você terá problemas. Até praticamente ontem,
Ancara aconselhava Damasco a fazer reformas – e depressa. A Turquia não queria o
caos na Síria. Hoje, a Turquia está alimentando o caos na Síria. Examinemos uma
das possíveis razões
Estive lá, nas
encruzilhadas
[2]
A Síria não é
grande produtor de petróleo; suas reservas estão sumindo. Mesmo assim, até o
início da guerra civil, Damasco vendia nada desprezíveis $4 bilhões anuais em
petróleo – um terço do orçamento do governo.
A Síria é muitíssimo mais
importante como uma encruzilhada de energia [3], mais ou menos como a Turquia,
mas em menor escala. O ponto chave é
que a Turquia precisa da Síria para atender sua estratégia de energia.
[4]
A parte síria
no Oleogasodutostão inclui o gasoduto AGP (Arab Gas Pipeline), do Egito a
Trípoli e o IPC, de Kirkuk, no Iraque, a Banyas – ocioso desde a invasão, pelos
EUA, em 2003.
A peça central da estratégia de
energia da Síria é a “Política dos Quatro Mares” [orig. Four Seas Policy [5]] – conceito introduzido por
Bashar al-Assad no início de 2011, dois meses antes do início do levante. É mais
ou menos como uma mini usina turca – uma rede de energia que liga o
Mediterrâneo, o Cáspio, o Mar Negro e o Golfo.
Damasco e Ancara imediatamente
puseram mãos à obra – integrando as grades, unindo-as ao gasoduto AGP e, o que é
crucial, planejando a extensão do gasoduto AGP de Aleppo a Kilis na Turquia; o
que permitiria uni-lo adiante à ópera perene do Oleogasodutostão [6] Nabucco, supondo que essa dama
gorda consiga algum dia cantar (o que absolutamente ainda não é garantido).
Damasco
também já se preparava para aproximar-se do IPC; no final de 2010, assinou um
memorando de entendimento com Bagdá para construir um gasoduto e dois oleodutos.
Mercado-alvo, mais uma vez: a Europa.
Foi quando
começou o inferno. Mas mesmo quando os levantes já estavam em andamento, o
negócio de $10 bilhões do Oleogasodutostão Irã-Iraque-Síria foi clinchado. Se
concluído, transportaria 30% a mais, de gás, que o quase definitivamente
condenado projeto Nabucco.
Hei! Aí está
o xis da questão: o que alguns chamam de Gasoduto Islâmico contorna (e deixa
para trás) a Turquia.
O veredito
permanece aberto sobre se esse complexo gambito no Oleogasodutostão pode ser
considerado, ou não, um casus belli que explique que Turquia e OTAN
ponham-se enlouquecidamente à caça de Assad. Mas não se deve esquecer que a
estratégia de Washington no sul da Ásia, desde o governo de Clinton (o marido)
sempre foi contornar, deixar para trás, isolar e ferir o Irã por todos os meios
necessários.
Ligações perigosas
Damasco com
certeza perseguia uma muito complexa estratégia de dois braços – ligando-se
simultaneamente com a Turquia (e o Curdistão iraquiano), mas também contornando
e deixando para trás a Turquia e incorporando o Irã.
Cobertura em profundidade da violência
em escalada na
Síria
Com a Síria
presa numa guerra civil, nenhum investidor global sequer sonharia
em
brincar de Oleogasodutostão. Mas , num cenário pós-Assad, todas
as opções estão abertas. Tudo dependerá do futuro relacionamento entre Damasco e
Ancara, e Damasco e Bagdá.
O petróleo e
o gás terão de vir do Iraque, de qualquer modo (além de mais gás, do Irã); mas o
destino final do Oleogasodutostão sírio pode ser a Turquia, o Líbano ou a
própria Síria – exportando diretamente a partir do leste do Mediterrâneo.
Ancara está
definitivamente apostando num governo pós-Assad liderado pelos sunitas, não
muito diferente do partido AKP. A Turquia já suspendeu a exploração de petróleo
que fazia em parceria com a Síria e está às vésperas de suspender todas as
relações comerciais.
As relações
entre Síria e Iraque dão-se por dois eixos entre os quais parece haver um mundo
a separá-los: com Bagdá e com o Curdistão iraquiano.
Imaginem um
governo formado pelo Conselho Nacional Sírio e pelo Exército Sírio Livre: seria
definitivamente oposto a Bagdá, sobretudo em termos sectários; sobretudo, o
governo de maioria xiita de al-Maliki vive em bons termos estratégicos com
Teerã; nos últimos tempos, também com Assad.
As montanhas alawitas [7] comandam as estradas do
Oleogasodutostão sírio na direção dos portos de Banyas, Latakia e Tartus no
Mediterrâneo leste. Há também muito gás ainda por ser descoberto – notícia
surgida de recentes explorações em Chipre e Israel [8]. Assumindo que o regime de Assad seja
derrubado e empreenda alguma retirada estratégica para as montanhas,
multiplicam-se as possibilidades de alguma espécie de guerrilha que sabote os
dutos.
No pé em que
as coisas estão hoje, ninguém sabe como uma Damasco pós-Assad reconfigurará suas
relações com Ancara, Bagdá e o Curdistão iraquiano – para nem falar de Teerã.
Mas não há dúvidas de que a Síria continuará a jogar o jogo do Oleogasodutostão.
O enigma curdo
Quase todas
as reservas de petróleo sírias estão no nordeste curdo – geograficamente, entre
Iraque e Turquia; o resto está ao longo do Eufrates, rumo ao sul.
Os curdos
sírios são 9% da população – cerca de 1,6 milhão de pessoas. Embora não sejam
sequer minoria considerável, os sírios curdos já perceberam que, aconteça o que
acontecer num ambiente pós-Assad, eles estão muito bem posicionados no
Oleogasodutostão, oferecendo via direta para exportações de petróleo do
Curdistão iraquiano, em teoria contornando e deixando para trás ambas, Bagdá e
Ancara.
É como se toda a região estivesse
jogando um Bingo de Quem Contorna (e deixa para trás) Quem [9]. Na medida em que se possa dizer
que o Gasoduto Islâmico contorna (e deixa para trás) a Turquia, um negócio
direto [10] e ntre Ancara e
o Curdistão iraquiano para construir dois oleogasodutos estratégicos de Kirkuk a
Ceyhan pode também ser interpretado como contornar (e deixar para trás) Bagdá.
Bagdá, é
claro, resistirá – destacando que os dutos são nada, vazios e inoperantes, a
menos que o governo receba a parte que lhe cabe: afinal, pagam 95% do orçamento
do Curdistão iraquiano.
Os curdos,
tanto na Síria como no Iraque, têm jogado com grande esperteza. Na Síria, não
confiam nem em Assad nem no Conselho Nacional Sírio. O Partido PYD – ligado ao
PKK – diz, do CNS, para desqualificá-lo, que não passa de fantoche da Turquia. E
o Conselho Nacional Curdo [ing. Kurdish National Council (KNC)] teme a
Fraternidade Muçulmana Síria.
Assim, a
maioria absoluta dos cursos sírios têm-se mantido neutros: não apoiam os
fantoches turcos (ou sauditas); todo o poder à causa pan-curda. Salih Muslim
Muhammad, líder do PYD, resumiu tudo: “O que interessa aos curdos é afirmar
nossa existência”.
Isso
significa, essencialmente, mais autonomia. Exatamente o que obtiveram do acordo
assinado dia 11 de julho em Irbil, sob os auspícios do presidente do Curdistão
iraquiano Masoud Barzani: o Curdistão sírio coadministrado pelo PYD e pelo
Conselho Nacional Curdo. Foi consequência direta de o regime Assad ter optado
por uma esperta retirada estratégica.
Não surpreende que Ancara esteja
em surto de pânico. [11] – Ancara vê não só o PKK
encontrando paraíso seguro na Síria, hospedado pelos primos do PYD, mas vê,
também dois semiestados curdos, de facto, que emitem poderosos sinais na
direção dos curdos na Anatólia.
Para
minimizar esse pesadelo, Ancara poderia ajudar economicamente os cursos sírios,
muito discretamente – de ajuda humanitária a investimentos em infraestrutura –
usando para isso suas boas relações com o Curdistão iraquiano.
Na visão de
mundo de Ancara, nada se pode interpor no caminho de seu sonho de tornar-se a
ponte essencial de energia entre Ocidente e Oriente. Implica relações
extremamente complexas com nada menos que nove países: Rússia, Azerbaijão,
Geórgia, Armênia, Irã, Iraque, Síria, Líbano e Egito.
Quanto ao
mundo árabe em geral, já desde antes da Primavera Árabe discutia-se seriamente
um Oleogasodutostão árabe para unir ligasse Cairo, Amã, Damasco, Beirute e
Bagdá. Pode fazer mais para unificar e desenvolver um novo Oriente Médio que
qualquer “processo de paz”, “mudança de regime” ou levante pacífico ou super
militarizado.
Nessa
delicada equação, o sonho de um Grande Curdistão volta à cena. E os curdos podem
ter boas razões para otimismo: muito em silêncio, Washington
parece apoiá-los, numa aliança estratégica absolutamente sem alarde.
Claro que os
motivos de Washington não são exatamente altruístas. O Curdistão iraquiano
comandado por Barzani é ferramenta valiosa para que os EUA mantenham um pé
militar no Iraque. O Pentágono jamais admitirá, mas já há planos avançados para
a instalação de uma nova base militar dos EUA no Curdistão iraquiano – ou para
transferir para o Curdistão iraquiano a base da OTAN atualmente em Incirlik.
Essa é um dos
mais fascinantes subtramas da Primavera Árabe: os curdos encaixam-se
perfeitamente no jogo de Washington em todo o arco do Cáucaso ao Golfo.
Mais de um
executivo da Chevron e da British Petroleum já devem estar babando, ante as
possibilidades que se abrem, das triangulações entre Iraque, Síria e Turquia,
com vistas a um Oleogasodutostão. E, claro, muitos curdos também salivam
abundantemente, só de pensar quantas portas o mesmo Oleogasodutostão abre, para
um Curdistão Expandido.
Notas de
rodapé
[1] 28/3/2012, OpenOil, em:
“Syria’s
transit future: all pipelines lead to Damascus?”
[2] Orig. I went down to the crossroads. É verso
de “Cross Road Blues”, Robert Johnson
[1911-1938], pode ser lido em tradução
ruim
e ouvido cantado pelos The Doors
[3] 8/3/2012, OilPrice, em: “Don’t
Factor Syrian Oil into Market Jitters”
[4] 6/8/2012, EKEM – European
Energy Policy Observatory, em: “Syria's
Energy Future After the Upheaval”
[5] 6/1/2011, UPI, em: “Syria’s
Assad pushes 'Four Seas Strategy”
[6] 1/10/2009, Pepe Escobar, Truthout, em: “Jumpin’Jack Verdi, Its a Gas, Gas,
Gas”
[7] 12/10/2011, Al Jazeera, Nir Rosen, em: “Assad's
Alawites: An entrenched community”
[8] 11/6/2010, Haaretz, Gal Luft em: “A
geopolitical game changer”
[9] 2/8/2012, OilPrice,
Daniel j. Graeber, em: “Kurds
Hold the Aces in Iraqi Oil Sector”
[10] 11/7/2012, Iraq Oil Report, Ben Lando & Staff, em: “Kurdistan begins independent crude exports”
[10] 11/7/2012, Iraq Oil Report, Ben Lando & Staff, em: “Kurdistan begins independent crude exports”
[11] 2/8/2012, Today’s Zaman,
Servet Yanatma, em: “Drills
aimed at PYD under way, US cautions against
intervention”
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