quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O desmembramento do mundo árabe


3/8/2012, Makram Khoury-MachoolGilad Atzmon Blog
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Dr. Makram Khoury-Machool é palestino. Escreve de Cambridge, UK 
O comportamento do bloco da OTAN, anti-sírio, é hoje suficientemente claro, para que se entenda o que está acontecendo na Síria. De um lado, há operadores políticos, como o grupo ad-hoc “Amigos da Síria”; de outro lado, duas personalidades, ambos ministros de dois emirados do Golfo.

No primeiro grupo estão os chefes de Estado comandados pela OTAN, que operam sob um mal disfarçado plano concebido por Israel e seus ‘'cérebros'’, a maioria dos quais do quilate de Bernard-Henri Lévy. Mais do que ‘'amigos da Síria'’, essas personalidades trabalham a favor de seus próprios interesses financeiros na, em torno da e mediante a Síria. Os dois políticos árabes são os dois ministros de Relações Exteriores, da Arábia Saudita e do Qatar. Ambos declararam que as forças que lutam contra o estado sírio deveriam ser armadas e receber apoio financeiro. Em resumo, as reuniões dos chamados “Amigos da Síria” não passam de visão “moderna” das reuniões promovidas e presididas pelo vice-rei Lord Curzon, que, em 1903, falou aos “Chefes da Costa Árabe”, a bordo do “HMS Argonaut” em Sharjah (Emirados Árabes Unidos).

Os qataris e sauditas dão apoio financeiro aos “rebeldes” para comprar armas, pagar combatentes, mercenários e supervisão logística dos ataques contra a Síria. Isso, além do apoio para serviços de telecomunicações, táticas de combate e aconselhamento estratégico militar. Não surpreendentemente, os conselheiros militares ocidentais, que trabalham clandestinamente para os grupos armados, jamais aparecem nos jornais e televisões. Estados vizinhos também provêm assistência local aos grupos armados: a Jordânia garante direitos de passagem a mercenários que vêm da Líbia; e a Turquia age como base, ao norte, de operações militares.

A Turquia está envolvida, porque deseja alinhar-se com os sunitas sauditas, a linha apoiada pela OTAN, e também porque teme que o desmembramento da Síria leve à autonomia dos curdos. Aos olhos da Turquia, a crise síria pode levar a uma eventual união dos curdos turcos com curdos iraquianos e sírios, o que rapidamente levaria a guerra civil na Turquia e a uma eventual emancipação do Curdistão turco, com criação de um estado curdo.

Mapa Político do Oriente Médio
Por seu lado, Israel planeja há anos, como parte de sua estratégia para dominar o Oriente Médio e o Mediterrâneo, enfraquecer a Síria, para prosseguir a ocupação das colinas sírias do Golan, e dominar as fontes de água ali existentes. Essencialmente, Israel quer ser a principal potência econômica e militar na região – e, pelo menos no curto prazo, é possível, sim, que Israel surja da atual crise, depois de destruída a Síria, como principal potência regional.

Mediante campanha de propaganda incansável, ao longo de décadas, Israel construiu para a opinião pública a ideia de que a Síria seria a principal ameaça à existência do estado judeu, no mundo árabe. O vácuo de governo que se pode criar na Síria pode, muito provavelmente, ser preenchido pela al-Qaeda e grupos assemelhados, o que daria suficiente justificativa para as ações bélicas dos israelenses, além de ajudar a promover a ideia de uma Israel ‘civilizada e democrática’ em luta contra islamistas ‘selvagens’.

Apesar das imensas diferenças entre Síria e Líbia, o destino da Síria pode ser semelhante ao da Líbia, em termos de intervenção externa direta, não fossem Rússia e China, que se opuseram firmemente contra tais ações na ONU, onde tem havido cooperação consistente entre os dois países. Apesar de as relações sino-soviéticas terem raízes nos primeiros dias da Revolução Comunista de 1917, parece que, mesmo duas décadas depois do desmonte do Bloco Oriental, a Federação Russa e a República da China seguem, mais do que nunca, o que Mao Tse-tung aconselhou em seu discurso “Ser um Verdadeiro Revolucionário”, de 23/6/1950: “na esfera internacional temos de nos unir firmemente com a União Soviética” (ver Selected Works of Mao Tsetung, vol. V, p. 39, em inglês) . Ideias, visão de mundo, interesses econômicos e objetivos no campo da energia novamente aproximaram Rússia e China, mais do que nunca antes, no caso do conflito na Síria.

No primeiro lugar da produção mundial de petróleo está a Arábia Saudita, Rússia em segundo, EUA em terceiro, Irã em quarto e China em quinto. Em termos de reservas, os dez principais estados são:

1) Venezuela,
2) Arábia Saudita,
3) Canadá,
4) Irã,
5) Iraque,
6) Kuwait,
7) Emirados Árabes Unidos,
8) Rússia,
9) Cazaquistão e
10) Líbia.

A Rússia é o maior produtor de gás do mundo, e a Europa depende dessa fonte de gás. Na produção mundial de gás, se, por causa da distância geográfica, excluem-se EUA e Canadá, o Irã aparece em segundo lugar e o Qatar em terceiro. Em termos de reservas de gás, a Rússia é número um, com Irã e Qatar quarto lugar e a Arábia Saudita em sexto. Com a vizinha Arábia Saudita como um dos dez principais produtores de gás do mundo, é evidente que os interesses de exportação do Qatar e da Arábia Saudita são especialmente importantes; esse ranking ajuda a entender as alianças que se formaram à luz do conflito sírio.

Arábia Saudita e Qatar (que noutras circunstâncias poderiam ser estado único e ainda podem passar por reorganização geográfica) são, ambos, árabes muçulmanos sunitas e ambos têm interesses econômicos em jogo. A ansiosa busca, pelo Qatar, de contratos de marketing para o gás e o petróleo líbios explica o acordo com a OTAN para atacar a Líbia; sua participação simbólica nos ataques aéreos; e o apoio aos rebeldes para que construíssem capacidade de ação comunicacional midiática.

O objetivo do Qatar é exportar seu gás para a Europa, competir com os russos e ganhar importante capacidade de barganha política. Para que a exportação do gás qatari para a Europa seja viável e competitiva, é indispensável construir um gasoduto que atravesse território sírio. Sendo a Rússia tradicional aliada da Síria, e considerados os muitos negócios anteriores, que datam dos anos da URSS, dificilmente a Síria admitiria qualquer tipo de acerto que desestabilizasse os interesses da Rússia na sua última fortaleza estratégica dentro do mundo árabe. Essa é a principal razão pela qual o Qatar e a Arábia Saudita apoiam a luta dos grupos que querem derrubar o atual governo sírio.

A Síria está-se convertendo, muito rapidamente, numa caixa de Pandora, da qual começam a reemergir todas as crises históricas dos últimos 120 anos. Começam com a guerra russo-turca em 1877-8; a guerra russo-japonesa em 1904, as duas guerras mundiais e a Guerra Fria. Normalmente, a emergência de uma superpotência demora 2, 3 décadas. Os EUA precisaram de 25 anos para emergir como superpotência, de 1890 até o final da Ia. Guerra Mundial. Depois da morte de Lênin, em 1924, a URSS era a parte mais doente do ‘'corpo'’ europeu. Em 1945, depois da IIa. Guerra Mundial, e sob o governo de Stálin, emergiu como superpotência. Depois de Gorbachev, a Rússia deixou de ser superpotência e, aparentemente, acabou a Guerra Fria. Em apenas duas décadas, Putin pôs fim ao sistema unipolar e, hoje, está emergindo um novo mundo bipolar – como se a Guerra Fria não tivesse acabado.

Exame detido do sistema político sírio revela que o presidente Bashar al-Assad é, de fato, um reformista. Mas na Síria, como em qualquer outro estado, há facções em luta pelo poder, e os processos de socialização demorarão para mostrar qualquer resultado. De fato, como disse o presidente Assad, demora apenas alguns minutos para assinar leis novas, mas é preciso muito mais tempo para educar a população para que absorva e participe na implantação dos novos valores que se consagram em novas leis. O movimento das elites ocidentais, que agem como se novas leis brotassem em árvores e fossem correspondentemente colhidas e engolidas é desserviço à democracia e ato absolutamente imoral.

A Síria foi o último estado árabe secular socialmente coeso, baseado de cima abaixo em ideologia secular. Apesar dos vizinhos altamente voláteis, em termos geopolíticos (Líbano, Turquia, Israel, Jordânia e Iraque), os cidadãos sírios viveram em segurança sob esse secularismo árabe. A Síria é locus de um específico tipo de pluralismo e multiculturalismo, impregnado de tolerância religiosa e existência pluralista. É o que se vê na convivência de igreja, mesquita, bar em todas as calçadas, e no movimento, pelas ruas, de mulheres veladas e sem véu.

De fato, o processo de reforma iniciado na Síria é mais avançado que o de qualquer outro estado árabe. Inclui o fim das leis de emergência, a implantação de leis partidárias, eleitorais, de imprensa, e a aprovação de uma nova constituição que incluiu o fim da liderança eterna do Partido al-Ba’ath. Essas reformas são parte de um genuíno processo político que exigirá tempo. Mas esse é o processo contra o qual lutam hoje, para miná-lo e destruí-lo, tantas forças, entre as quais governos ocidentais tidos como progressistas, que hoje se erguem contra o estado sírio. Nas últimas décadas e, sobretudo, depois do 11/9, o ocidente só fez divulgar a noção de que terroristas islamistas ameaçariam todas as formas de vida secular. Contudo, os sunitas, tecnicamente a maioria religiosa na Síria, inclui vários segmentos e não são menos seculares que qualquer sociedade ocidental.

Assim, apesar de os sírios terem pleno direito de defender o secularismo à sua moda, o objetivo do ocidente é desmantelar o estado sírio, modificar a estrutura de poder que há ali e criar novas entidades demogeográficas, como uma confederação de curdos sírios e iraquianos, que é, hoje, o maior dos pesadelos para a Turquia. Áreas específicas também podem ser despovoadas, a serem usadas, como foi feito com os drusos, para repovoar a Síria com cristão sírios e, talvez, cristão vindos do Líbano. Outros cristão deixariam o Levante. E os alawitas teriam talvez estado à parte, unido, talvez, ao Irã.

O plano é destruir o moderno estado árabe da Síria que emergiu depois da Ia. Guerra Mundial e nos anos 1940s, e, onde seja possível, estabelecer novos estados religiosos (semelhantes ao estado judeu de Israel). Desse modo, o poder árabe e, com ele, a ideologia panarabista de Michel Aflaq e Antun Sa’ade (ambos cristãos árabes) e de Nasser do Egito, desapareceria.

Esse processo começou quando, em 1978-9, sob Sadat, o Egito assinou tratado de paz com Israel; em seguida, vieram a destruição do Líbano, em 1982, a Segunda Intifada em 1987 e a tomada econômica do Iraque em 2003. Em seguida a Líbia foi destruída, com o confisco de seu petróleo e gás, em 2011. Agora, para manter a hegemonia de US-Rael (US-Israel), o ocidente tem de dispor os estados árabes em grupos separados por linhas sectárias (sunitas versus xiitas), em vez de unidos por critérios do panarabismo. Esse processo, de fato, foi turbinado depois da ocupação do Iraque e a derrubada do partido Ba’ath.

Na prática, o que está hoje acontecendo no mundo árabe é uma “correção” do acordo Sykes-Picot de 1916, quando os principais poderes coloniais, Grã-Bretanha e França, definiram as fronteiras dos atuais estados árabes e lá implantaram seus próprios agentes árabes. Esse processo inclui planos neocolonialistas para constituir dois ou mais partidos árabes que combatam o regime sírio e mantê-los lutando até que o estado sírio esteja desmembrado e fraturado em 2, 3 outros estados, separados entre eles por linhas sectárias. Assim as elites neocoloniais poderão continuar a saquear as riquezas locais, porque, bem feitas as contas, a mentalidade imperial não mudou, nem muda.

Dado que as potências ocidentais não podem alcançar seus objetivos por seus próprios meios, precisam de agentes como o Qatar na Líbia, e Arábia Saudita, Qatar e outros na Síria. Esses agentes, preferencialmente monarquias antidemocráticas árabes muçulmanas sunitas, usaram o Islã sunita para promover o fanatismo contra outros árabes, muçulmanos e não muçulmanos (dentre outros, cristãos árabes, xiitas e drusos). Esses árabes, com acesso à elite (econômica) global (por exemplo, a família real saudita e os qataris, com elites americanas e europeias) são as elites governantes no Golfo Árabe, ou protegés daquelas elites. São quem está obrando para semear diferenças entre as várias seitas e amplificar e explorar “a carta sunita” no confronto com a Turquia não árabe muçulmana e sunita, contra a Síria. Não seria surpresa se estivessem em conluio com as potências ocidentais, também fantoches de Israel. Sem isso, seria difícil explicar por que o regime mais autoritário do planeta, a Arábia Saudita, age contra a Síria e finge que dá lições de democracia, tema sobre o qual os sauditas não sabem nem se interessam por saber coisa alguma.

As campanhas de propaganda orientalista, negativa, conduzidas contra a Síria ao longo do ano passado, com apoio financeiro de alguns dos países do Golfo intencionalmente encobriram vários traços da Síria, dentre os quais o secularismo – ponto para o qual as sociedades ocidentais facilmente convergiriam, em movimento de identificação com os sírios. A importância da ideologia do Partido Ba’ath, principal partido secular sírio, que assegura direitos individuais, foi atentamente ocultada. Isso, por exemplo, além do fato de Daoud Rajhah, Ministro sírio da Defesa que foi assassinado, ser cristão; como cristão também era o Dr. Nabil Zughaib, também assassinado, com toda a sua família, e diretor do programa sírio de mísseis.

Os exemplos acima, de eliminação deliberada de fatos dever-se-iam, como se diz, à aliança entre Síria e Rússia, que configuraria o campo ‘errado’. Há firmes relações diplomáticas entre Síria e Rússia há, no mínimo, 50 anos. Além disso, a Síria é o “baixo ventre macio” (alawita/xiita-secular) entre o Irã (xiita refusnik anti-OTAN) e o Hezbollah xiita no Líbano. Apesar de, aos olhos de curto prazo de Israel, a principal oposição à sua plena dominação ser o Irã (além do Hezbollah, da Síria e, antes, do Hamás), o alvo, hoje, é a Síria. Como tal, a Síria está sendo castigada, antes que seu corpo metafórico seja esquartejado.

Mas qual a importância do Hamás nisso tudo? Até ser eleito em eleições limpas, livres e democráticas em 2006 (quase dois anos depois do assassinato de Yasser Arafat), e depois de, um ano depois, ter tentado um golpe contra a Autoridade Palestina controlada pelo Fatah na Faixa de Gaza, o Hamás era grupo de resistência apoiado pelo Irã, por Damasco e pelo Hezbollah. Se o Irã é a ‘cabeça’ metafórica e o Hezbollah e o Hamás são as duas pernas, a Síria tem sido o “estômago” ou o “coração” e “pulmões” da resistência. Mas desde que o Hamás passou a governar a faixa de Gaza, em larga medida deixou de ser movimento de resistência e institucionalizou-se. Nisso, Israel (e Sharon, em especial) conseguiu uma vitória tática. Israel retirou-se “oficialmente” da Faixa de Gaza, embora sem levantar o sítio e sem pôr fim aos ataques contra a Faixa; e entregou a chave da prisão aos prisioneiros (Hamás), para que eles mesmos comandassem a maior prisão a céu aberto, de todo o mundo. Tudo isso foi feito sem que o Hamás sequer se desse conta do que estava acontecendo.

No primeiro semestre de 2012, os líderes do Hamás deixaram Damasco, onde haviam mantido seu quartel-general e, hoje, mantém posição discreta, sem terem divulgado apoio ao governo sírio – governo que os apoiou por mais de 20 anos. Com a vitória da Fraternidade Muçulmana na Tunísia e no Egito, o Hamás hoje procura patrocinadores mais poderosos e em países nos quais possam operar em posição de mais poder. Os líderes do Hamás (ambos, na Diáspora e na Faixa de Gaza) foram convidados pelo recém-eleito novo presidente do Egito, para unir-se à Fraternidade Muçulmana (organização mãe deles todos) como iguais. O que até ontem parecia ser movimento da resistência (embora, para vários analistas, o Hamás jamais tenha sido partido revolucionário como outras facções palestinas como o PFLP, o DFLP e outros), está hoje incorporado ao tecido de uma aliança muçulmana sunita, que já começou a agir sob as asas da OTAN.

Orientalistas ocidentais gostam de imaginar o que teria de ocorrer, para atender seus interesses no Oriente. Para começar, batizaram o mundo árabe de “Oriente Médio”, como se fosse um marcador geográfico localizado em relação, exclusivamente, ao próprio ocidente. Para por ordem no assalto planejado, criam termos e expressões para justificar suas operações militares, clandestinas ou declaradas. Mas seus serviços de segurança/inteligência jamais acertam as previsões sobre desenvolvimentos no mundo árabe: não previram a Intifada de 1987 nem o golpe do Hamás em 2007. Ainda assim, as elites ocidentais, superficiais e ignorantes, jamais desistem de inventar nomes e processos: o mais recente, dizem eles, teria começado na Tunísia e foi batizado de “Primavera Árabe”.

O que está acontecendo em alguns países árabes e no mundo árabe nada tem de “primavera”: é movimento reacionário que rapidamente retrocederá, como os EUA viram acontecer no Afeganistão, onde os EUA inventaram e sustentaram os mesmos jihadistas que, adiante, os EUA puseram-se a combater. EUA e Israel têm tentado construir acertos e negócios com os islamistas que estão no poder, com o objetivo de conseguirem controlar as massas e os movimentos sociais. De fato, não é a primeira vez que estrategistas políticos tentam usar a religião para evitar o caos e defender seus interesses econômicos. O que se vê hoje é semelhante ao processo que Maquiavel comenta (baseado no relato do historiador romano Tito Lívio Patavino, 59 aC-17 dC); o capítulo de Maquiavel leva o título de “Como os romanos usaram a religião para reorganizar a cidade e conseguir levar adiante o plano de pôr fim aos tumultos”.

As campanhas ocidentais de propaganda contra a Síria buscam convencer o público a mais temer a religião que obedecer aos atuais governantes árabes. Eis o porquê de continuarem censurados os protestos em três reinos árabes (Arábia Saudita, Marrocos e Jordânia). O mundo absolutamente não está vendo coisa alguma que se compare (por causa de censura, vigilância e indiferença da mídia ocidental) aos protestos que se viram nas repúblicas árabes. Uma das razões é que ninguém ali tem qualquer interesse em promover campanhas de propaganda, que custam caro. A única exceção talvez seja o Bahrain, e a possível influência do Irã. Mas não há qualquer garantia de que alguma campanha contra-hegemônica pudesse ter qualquer sucesso naquelas monarquias árabes.

Depois de derrotar o clã rival al-Rashid em 1921, a família al-Saud governa atualmente em quase toda a Península Arábica histórica. Sua proeminência regional deve-se também ao controle sobre os locais sagrados de Meca e Medina, e a aliança que os sauditas mantêm com os wahabistas, que usam tanto quanto usam o petróleo e os recursos minerais deles. Esses recursos subsidiam a indústria cultural (e midiática) correspondente. Ainda assim, fatores religiosos e econômicos são evidentemente complexos e envolvem vasta rede social. Essa combinação manifesta-se no que chamo “a ética saudita do cacife [do ganho] espiritual” – mais ou menos semelhante à tese de Weber sobre a “ética protestante” que serviu como anteparo à acumulação da riqueza no norte da Europa.

Mediante a acumulação de capital nos estados do Golfo nos anos 1970s (controlada por interesses anglo-americanos mediante tratados que levaram grandes números de árabes a se tornarem ou economicamente dependentes (nos empregos no Golfo) ou espiritualmente dependentes mediante o cerrado controle sobre a mídia árabe), o boom do petróleo criou uma nova estratificação no mundo árabe. Resultado disso, algumas sociedades árabes tornaram-se dependentes, e aceitaram a autoridade, da família saudita reinante e seus clãs. Essas elites são parte das elites econômicas governantes proprietárias de alguns dos mais valiosos projetos de energia, das maiores fortunas e de vasto patrimônio no ocidente (equipes de futebol, as lojas Harrods, mansões nos Champs Élysées e sociedade nas empresas de Rupert Murdoch, para citar apenas alguns desses bens).

A recente descoberta de que árabes desejam liberdade tem sido promovida, principalmente, por algumas instituições de mídia árabes e ocidental que são, elas mesmas, extensão de políticos que têm objetivo econômicos, estratégias e táticas próprias. As campanhas pela mídia conduzidas por capitalistas neoconservadores sionistas como Bernard-Henri Lévy, que trabalha agressivamente a favor de Israel e que tem forte afinidade com o judaísmo fundamentalista visam exclusivamente a separar os árabes de seus recursos e riquezas, ao mesmo tempo em que ativamente lhes mentem e os enganam.

Isso se faz mediante a dupla estratégia de produzir narrativas separadas para segmentos separados da população. Para os religiosos, a corrupção é associada à falta de fé; e, para a totalidade da nação árabe, vendem o atrativo sonho de liberdade, justiça e direitos.

Naturalmente, cada indivíduo interpretará as narrativas conforme a própria formação, experiência de socialização, nível de politização, normas e valores. Assim, quando todos se encontram “na praça”, os islâmicos lá estão convencidos de que só os livros islâmicos são a solução; os liberais recordarão Jean-Jacques Rousseau, a “separação dos poderes” de Montesquieu e a Revolução Francesa; os marxistas pensarão na Revolução Bolchevique de 1917 e na luta de classes; e os maoístas pensarão na Revolução Cultural de Mao Tse-Tung ou no Nasserismo (afinal, quando um grupo de oficiais do exército egípcio liderou o golpe e a revolução, em 1952, Mao Tse-Tung declarou que “a luta contra a corrupção e o desperdício é uma das questões principais que envolve todo o partido” (30/11/1951); o que se encaixa bem na missão de combater regimes árabes corruptos). Simultaneamente, os que sonham com Castro e Che Guevara correrão às “barricadas” nas praças, em disputa contra as forças de segurança do Estado.

Na realidade, esses valores pouco significam no mundo árabe. E os liberais e sionistas sabem disso. A realidade é que, por causa do forte controle social; pelo modo como as sociedades árabes organizaram-se no século passado (incluindo o impacto da herança colonial); e por causa da riqueza do petróleo de que usufrui o Islã waabita (e salafistas modernos), exceto a facção islâmica, as outras ideologias pouco progresso farão, mas, simplesmente, garantirão a vitória dos movimentos religiosos.

É verdade, o mundo árabe é heterogêneo, mas pouco heterogêneo. A religião prevaleceu em estados como a Jordânia onde, durante décadas, os islamistas controlaram a maior parte dos currículos escolares. Assim, em cada estado árabe onde houve levantes – e especialmente no Egito – há furiosa disputa de poder com vistas à Constituição. A Fraternidade Muçulmana e os salafistas alcançaram maioria de votos nas eleições parlamentares, e o primeiro presidente democraticamente eleito, Muhammad Mursi (eleito por apenas ¼ da população), é membro da Fraternidade Muçulmana. Os grandes poderes trabalham hoje a favor da promulgação de uma constituição baseada numa importante interpretação das leis da Xaria. Em seu Morfologia do Estado, Aristóteles sugere que é preciso “considerar não só qual a melhor constituição, mas, também, qual a mais executável e mais acessível em cada momento” (p. 103). Aos olhos dos fundamentalistas religiosos, podem bem ser as leis da Xaria, enquanto uma solução para as elites dominantes ocidentais está em vigor.

Dado que garantem seus interesses econômicos mediante instituições de mídia controladas pela elite religiosa, eles, por sua vez, beneficiam-se também dos próprios centros de poder social, econômico e político; e, dos círculos/classes das elites religiosas emergirá um novo nicho de comerciantes e empresários. Grupos religiosos também ampliarão a própria participação econômica, além da participação política. Dado que isso beneficiará sua jihad política, muitos verão tudo isso como halal, dentro ou fora do contexto do banking islâmico. A divisão social contudo permanecerá ou será ampliada; e a única diferença é que os nomes terão mudado. Em vez de um “mubarak”, haverá outro (mas, dessa vez, será alguém com barba) e essas aparentes “mudanças” servirão, exclusivamente, para manter inalterado o controle político.

As populações afetadas são as definidas como “minorias” – principalmente árabes cristãos (cerca de 30 milhões no mundo árabe), muçulmanos seculares (sunitas e xiitas) e outros. No Egito, Mohammad Zawahiri (irmão de Ayman Zawahiri, líder da al-Qaeda) já declarou que os cristãos egípcios devem pagar um imposto (devido pelos infiéis, Dhimmi), ou deixar o Egito. E caso se recusem, sugeriu que sejam coagidos.

Exemplo de como se pode mobilizar a população mediante a religião, servindo-se da mídia é o que faz o próprio monarca saudita. Durante o mês de Ramadan 2012, Abdallah da Arábia Saudita e seu herdeiro lançaram campanha de arrecadação de fundos, supostamente para ajudar o povo sírio – ou, pelo menos, era o que dizia o slogan. A campanha baseava-se em normas morais e no senso de comunidade e união islâmicas, as mesmas que são enfatizadas durante o mês santificado do Ramadan. Ao mesmo tempo em que vendem ao povo mensagens de compaixão e união comunitária, essas campanhas são usadas para objetivos políticos locais e regionais. É impossível imaginar, por exemplo, a Síria, lançando campanha pela liberação das mulheres sauditas ou a favor do direito de as sauditas dirigirem automóveis.

Liberais com ideias à Goebbels que se alinham com esses chefes de emirado têm tentado, até o presente, enganar a opinião pública árabe e construir um consenso de oposição ao governo sírio, para, assim, fugirem das refregas e do calor de suas próprias “ruas” e “praças”. Ao mesmo tempo em que aderem às normas e crenças mais arcaicas sobre liberdade e democracia, instigam o golpe contra a Síria, com discurso sobre liberdades para as mulheres, direitos religiosos das minorias, oportunidades e direitos iguais para todos, etc., em tudo semelhante ao que se vê em países ocidentais liberais. Mais ou menos como regimes árabes gostariam de organizar a opinião pública em apoio aos palestinos, os regimes do Golfo estão usando o falso argumento de que são contra a opressão dos sírios... mas os próprios governos manobram as próprias “ruas” contra a Síria. E, isso, apesar do fato de que esses próprios governos e governantes estão atrasados anos-luz, em relação à Síria, em termos de liberdades e democracia.

Os governos do ocidente não são aliados das democracias liberais no Terceiro Mundo. Eles inevitavelmente fazem negócios com governos que exibem os piores indicadores de direitos humanos, sempre que vejam possibilidade de ganhos. Exatamente como, em julho de 2008, quando Nicolas Sarkozy e o emir do Qatar, hoje arqui-inimigo da Síria, constituíram, com o governo sírio, a “União do Mediterrâneo”, alguns governos europeus creem que possam auferir benefícios da crise no mundo árabe. Mais ainda, quando têm o apoio dos ricos estados do Golfo e creem que eles possam, de algum modo, reduzir as dificuldades das crises econômicas que o ocidente esteja enfrentando.

Em algumas áreas da Síria, as condições de segurança pessoal pioraram depois de março de 2011 e o governo central nem sempre deu mostras de exemplar conduta moral. Mas, como parte de campanha política estratégica, a mídia tem intencionalmente mentido sobre a situação na Síria. Insistem em implantar medo crescente no público sírio e manifestam exagerada preocupação com o número de mortos e feridos. Assim, constroem uma narrativa que justifica e facilita que se ofereça ajuda sempre crescente às gangues armadas de separatistas, terroristas e mercenários. A mesma mídia também pinta o governo sírio como se fosse o único responsável pela violência quando, de fato, os verdadeiros responsáveis são os que recrutam, pagam e armam grupos de indivíduos desempregados, famintos ou de mercenários manobráveis em busca de dinheiro fácil.

Há dois principais culpados pelos muitos mortos: a mentira e o silenciamento absoluto de qualquer voz de oposição. Com seus aliados árabes, a OTAN desconectou o satélite de comunicação que alimentava o canal de televisão sírio al-Dunia, de televisão por satélite. Outros atos de terrorismo “comunicacional” incluem, que se saiba, o sequestro, pela CIA, da conta Twitter da mesma rede al-Dunia – que passou a ser usada para distribuir notícias falsas (dentre outras, noticiou a retirada do exército sírio, que não acontecera). O mesmo satélite árabe que a Síria ajudou a implantar depois de destruído na Palestina em 1967, está sendo usado hoje contra a Síria, pelos emirados do Golfo Árabe.

Esse satélite está agora sendo usada no conflito na Síria – mas contra a Síria – e inclui desinformação sobretudo pelos canais dos quais o Golfo é proprietário e que promovem medo e pânico da instabilidade econômica na Síria. A mídia está sendo usada e manipulada para encobrir o incitamento à ação terrorista dirigido à oposição síria e, também, para angariar ajuda econômica; e a mesma mídia expõe, então, as “realizações” saneadas, os “heróicos” feitos dos “rebeldes” e, quando necessário, apresentam suas perdas e derrotas como “massacres”.

A mídia dominante no ocidente e dominante também no mundo árabe praticamente só tem uma opção: engolir desinformação de fontes absolutamente pouco confiáveis, e desinformação que, em seguida, os meios de comunicação reproduzem e redistribuem para o grande público. Histórias de massacres perpetrados pelo governos sírios são divulgadas e repetidas incansavelmente para justificar a intervenção estrangeira, e a imagem predominante é que o nobre ocidente que se apresenta para salvar uma nação oprimida do Terceiro Mundo oprimida pela tirania de um macho chovinista opressor. Exatamente o que aconteceu na Líbia. Mesmo assim, uma minoria na mídia árabe, opõe-se ao plano master; e outra minoria está sentada sobre o muro.

A mídia árabe praticamente toda está, direta ou indiretamente na mão dos estados do Golfo; praticamente todos os jornalistas estão na folha de pagamento desses estados ou seus agentes ou, eficaz e absolutamente iludidos, não encontram meio para compreender e expor as trágicas ramificações do que está acontecendo no mundo árabe.

Os valores antiguerra de Mãe Coragem  e Bertolt Brecht não encontraram absolutamente qualquer espaço na agenda dos estados comandados pelo grande petróleo. Provavelmente porque são aqueles os valores que mais direta e claramente podem expor a dicotomia entre religião e economia de guerra.

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