Publicado
em 06/09/2012 por Urariano
Motta *
Na
semana passada, ao ler no site da Folha a notícia “Justiça
determina abertura de ação penal contra militares por crimes na
ditadura”, atravessou o meu espírito uma reprovação. Já no primeiro
parágrafo se anunciava:
“Militares
que atuaram na repressão durante o regime militar (1964-85) responderão a ação
penal por supostos crimes cometidos durante a
ditadura”.
Por
que e como supostos
crimes? Não bastam as seguidas e cumulativas provas, de testemunhas, de
documentos, e até entrevistas de réus confessos, para retirar o véu da dúvida?
Mas continuava a notícia:
“A
Justiça Federal em Marabá (685
km de Belém) aceitou denúncia do Ministério Público
Federal e determinou a abertura de ação penal contra o coronel da reserva
Sebastião Rodrigues Curió (foto acima) , 77, e contra o tenente-coronel
da reserva Lício Maciel, 82” .
Depois
disso, atravessaram o espírito dois espantos. O primeiro foi ver o quanto o
assunto justiça e ditadura havia sido o mais comentado e enviado no site em 30
de agosto. O segundo foi conhecer o gênero e grau de comentários que sob a
reportagem se abrigavam, dos raivosos defensores do golpe de 64 aos mais
complacentes e pacifistas, sempre na velha fórmula: para quê tanta confusão, se
tudo é morto e passado?
Não
vem ao caso aqui mostrar o paradoxo de quem argumenta que, por um lado, a
história da ditadura é ultrapassada, e por outro, manter a feroz defesa do
regime que não mais existe, como se os anos da guerra fria estivessem
em uma geladeira.
Do necrotério de 1970, talvez. Importa mais agora, entre os
comentários cordatos, um apelo que li dirigido aos brasileiros de bons corações,
nesta esperta frase:
“Um
deles tem 77 anos, o outro tem 82. Não adianta ficar prendendo ex-coronel que
fez crimes na ditadura civil-militar. Nossa ditadura foi a mais branda da
América Latina, não que eu esteja tentando justificá-la, mas ficar revogando a
lei da Anistia pra prender velhinhos é no mínimo covardia. Não sabia que a
esquerda queria se vingar de vovôs”.
Vovós,
poderia ser dito, para ser mais forte a fragilidade dos velhos coitadinhos. Ora,
tenho junto a mim um precioso depoimento de uma senhora que teve a sorte de
morar no mesmo edifício do coronel Vilocq, quando ele estava velhinho. Quando
ele não mais era uma fortaleza de abuso e violência. Os mais jovens não sabem,
mas Vilocq arrastou Gregório Bezerra por uma corda, espancou o bravo comunista
sob cano de ferro, e esteve a ponto de enforcá-lo em praça pública em 1964.
Quanta força contra um homem rendido e desarmado. Pois bem, assim me contou a
privilegiada:
Muitas
vezes, viu a conversarem, em voz amena e agradável, lado a lado, em suas
cadeiras de rodas, Darcy Vilocq e Wandenkolk Wanderley, que moravam no mesmo
edifício e destino. Olhem que feliz coincidência, lado a lado, a ferocidade e o
terror. Um, Wandenkolk, ex-delegado, que usava alicate para arrancar unhas de
comunistas no Recife; outro, Vilocq, sobre quem Gregório fala em suas memórias.
Pois ficavam os dois companheiros a cavaquear, pelas tardes, na
paz do bucólico bairro de Casa Forte.
De
Vilocq, a minha privilegiada amiga informa um pouco mais, neste brilho de ironia
involuntária da cena brasileira: uma empregada doméstica, no prédio em que ele
morava, dizia que Vilocq parecia um bebê, de tão inofensivo e pacífico na
velhice. A ponto de ela brincar, muitas vezes com ele, dizendo: “eu vou te
pegar, eu vou te pegar”. O bebezinho, o velhinho sorria, já sem a força de
espancar com ferro e obrigar um homem a pisar em pedrinhas, depois de lhe
arrancar a pele dos pés a maçarico.
Para
infelicidade geral, os dois bons velhinhos já não mais existem. O que gostava de
unhas com pedaços de carne foi para o céu aos 90 anos, em 2002. O que tentou
enfiar no ânus de Gregório Bezerra um cano seguiu para Deus aos 93, em março
deste ano. Ficou um vazio nas tardes da história onde mora a minha amiga. Como
poderá a justiça humana agora alcançá-los? Com quem brincará a boa moça,
empregada doméstica?
Pensemos
neles, por eles e para a justiça que não lhes chegou, quando olharmos os idosos
e respeitáveis Carlos Alberto Brilhante
Ustra, David dos
Santos Araujo, Ariovaldo da Hora e Silva, Maurício Lopes Lima,
Carlos Alberto
Ponzi , Adriano Bessa Ferreira, José Armando Costa, Paulo Avelino Reis,
Dulene Aleixo Garcez dos Reis. E outros velhos, muitos outros de Norte a Sul do
país, que no tempo de poder foram o terror do Estado no Brasil. Eles ficaram
apenas mais velhos, os bons velhinhos assassinos.
Enviado
por Direto da
Redação
O acréscimo (entre parêntesis) ao título da postagem foi feito pela redecastorphoto
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