22/1/2013, Antonio Negri, Uninomade
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Antonio Negri |
A
intervenção francesa no Mali reflete uma crise política que tende a
generalizar-se na África saariana e subsaariana depois da “Primavera Árabe” do
Magreb. “Manifesta-se o lado perigoso da Primavera Árabe”, escreve
em manchete o
New York Times, e acrescenta: “tinha razão o
coronel Gadafi, quando previa que, se ele caísse, o pessoal de Bin Laden
chegaria por terra e mar para ocupar as margens do Mediterrâneo”.
Mas,
é isso que, realmente, impulsiona à rebelião os novos guerrilheiros nos desertos
do Norte da África, ou são impulsionados por miséria cada vez mais feroz e pela
lógica sempre destrutiva dos governos da ex-Françáfrica? As zonas rurais dos
países do Sahel permaneceram, apesar delas mesmas, nos últimos anos, em situação
de miséria profunda, que alimenta o êxodo da população e a desestabilização das
grandes cidades. Frente a isso, as estatísticas macroeconômicas mostram a
existência de um “falso” desenvolvimento vinculado à atual corrida pela extração
de minérios em direção àqueles territórios ricos desses recursos: o Mali, por
exemplo, é o terceiro produtor mundial de ouro, rico em urânio, e prevê-se que
seja também muito rico em hidrocarbonetos.
Os vários países do Saara (amarelo cheio) - Sahel (amarelo e verde hachurados) |
O
jihadismo entra nesses territórios não pelo fanatismo de alguns e não os
submete a partir da ‘barbárie terrorista’ (como dizem à opinião pública
ocidental), mas, sim, porque nesses países as instituições continuam a
dissolver-se, dada a fragilidade econômica e civil. Por isso, o êxito dos
“invasores” que não são invasores está praticamente garantido.
O
Mali é só mais um país do Sahel – os demais também estão em situação crítica
semelhante. A dúvida sobre o aprofundamento da crise em cada um deles depende só
de alguns fatores casuais que ainda contêm o desabamento recém iniciado do
“dominó”. No Mali, que em certo momento foi “vitrine da democracia”, o governo
estava em crise há bastante tempo, asfixiado pela corrupção, por repetidos
golpes de Estado e pela rebelião popular dos tuaregues no norte. Os tuaregues
querem a independência do Azawad (vasta região desértica do norte do Mali). Essa
revolta encontrou ocasião de triunfar porque, com a queda do governo do coronel
Gaddafi, muitos tuaregues voltaram ao seu país natal com armas (em grande e
sofisticada quantidade) e equipamentos (logísticas regionais e alianças com
parte do exército maliense). Deve-se ter em mente que a intervenção francesa (e
da OTAN) na Líbia produziu naquele país a implosão de mil facções locais,
ideológicas, étnicas, as quais, depois de Gaddafi, ficaram sem qualquer
autoridade capaz de ostentar força legítima.
A
rebelião tuaregue armada encontrou, além disso, apoio forte e provavelmente
decisivo em grupos salafistas e jihadistas que já em 2002, ao terminar a guerra
civil argelina, haviam instalado os fundamentos da al-Qaeda no Magreb. Há cerca
de dez anos, esses grupos vinham construindo (aproveitando a “indústria dos
sequestros” e o apoio aos “traficantes’ ilegais que operam nesse amplo
território) bases e redes de apoio à guerrilha. O perigo era evidente. Há três,
quatro anos, está em andamento uma cooperação bilateral França-EUA para combater
o que alguns chamam de “eixo Kandahar-Dakar”. Recentemente, o New York
Times revelou que o Departamento de Estado investira cerca de 500 milhões de
dólares nessa região, nessa estratégia de antiterrorismo. Já no início de 2012,
o comando norte-americano na África, AFRICOM, deu-se conta de que boa parte das
tropas malienses adestradas pelos norte-americanos haviam-se unido à revolução
no norte do país.
Agora,
vimos a intervenção francesa, em resposta a pedido urgente do governo de Bamako
(ou do que resta dele) formalmente apoiado por extensa coalizão de países
africanos e governos europeus. Mas a guerra francesa já parece estender-se como
mancha de azeite para grande número de países vizinhos. O que se viu acontecer
na Argélia na última semana, quando a gentil intervenção daquele governo e de
seu exército já produziu centenas de assassinatos, é só o começo desse amargo
desenvolvimento.
Por
enquanto, consolam-se a imprensa e a opinião pública francesa com a crença de
que não se trataria de guerra de usura (como a guerra no Iraque ou no
Afeganistão) cujos protagonistas movem-se “entre as populações”; tratar-se-ia de
guerra clássica no puro deserto, guerra de posições e de movimentos. As coisas
não demorarão a mudar muito. Talvez os franceses, com as tropas de outros países
africanos (que permanecerão sob comando dos franceses, enquanto os EUA
continuarem reticentes e resistirem a envolver-se na mudança) consigam a vitória
em campo. Mas em seguida... como governar no deserto, em situação de paz que não
é paz, numa “guerra nômade” que começa, em quadro de histeria frente a eventuais
ataques terroristas na França continental e, sobretudo, em face da memória da
vergonha colonial e do despotismo pós-colonial mantido pela potência francesa?
Mas, sobretudo, como considerar, na situação atual e em situação de pós-guerra –
aspectos que nos permitimos chamar “aspectos bons” da Primavera Árabe, ou,
melhor dizendo, daquela “Primavera Africana” que parecia estar começando a
apontar também no Sahel?
É
inútil – e vale a pena repetir – culpar o extremismo de um islamismo salafista
radical, quando se está sufocando a única alternativa verdadeira que realmente
teria chances de concretizar-se: o amadurecimento – já iniciado nesses
territórios – de elites jovens, democráticas, anticapitalistas. É necessário
atacar as causas socioeconômicas dessa crise.
Se
se ouvem os especialistas, dizem que, para desenvolver um programa de
reconstrução e de desenvolvimento, seria necessário intervir nesses territórios
nos setores agrícolas, de reflorestamento, de criação de animais, na melhoria de
estradas e do transporte, no acesso à água, na promoção da energia solar e
eólica, etc. E logo reiniciar os programas de produção de algodão e de cereais
nessas regiões... Em resumo: tudo. Por fim e especialmente, “as populações devem
beneficiar-se da renda da mineração; do ouro, para começar, primeiro produto de
exportação”.
Não
é solução, de fato, cômica? E na risada não aparece, evidente, o cinismo, no
mínimo hipócrita, que há em tanto insistir na mesma execrável sede de dinheiro
que arrasta esses governos liberais a combater terroristas pelas impiedosas
terras desérticas do Sahara e do Sahel como se fossem trunfos a distribuir entre
os inimigos (porque é muito difícil identificar quem é terrorista e quem é
camponês pobre ou proletário metropolitano agora sublevados). Ainda mais: não
lhes parecem lágrimas de crocodilo – e na Itália todos as confundem – as
lágrimas que nossos democratas tanto choram?
Pesado
fardo de nossa civilização, que nos obriga a intervir! Sagrada obrigação da
soberania, dessa vez exercida em nome da Europa ! Atenção! Até
os EUA já pararam de repetir essas estupidezes, depois das terríveis derrotas no
Oriente Médio! Reconheçamos, isso sim, que só modificando radicalmente nossa
consciência política, só rompendo radicalmente com formas de governos harmônicas
e funcionais em relação ao capital, poderemos voltar a nos orientar
corretamente.
Giles Kepel |
No
marco da globalização, não se pode raciocinar como raciocinam os Parlamentos nos
países da Europa e o Parlamento Europeu, com homens e “mídia ou imprensa-empresa”
votando a favor da intervenção francesa (e foi particularmente odiosa, em
Estrasburgo, a atitude belicosa dos Verdes europeus).
Gilles Kepel – talvez o maior especialista em temas árabes conhecido no ocidente –
destaca que “o que está em
jogo no Mali é um desafio à civilização na época da
globalização. O Sahel é, ao mesmo tempo, vítima por excelência e lugar da
incandescência”.
Acrescentamos:
a resistência e a guerrilha anti-imperialista naquele desesperado local
despossuído e devastado são luta anticapitalista. Não gostaremos de ter de
reconhecer que os islâmicos têm razão.
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