Ramzy Baroud, Counterpunch, ed. de fim de semana, 15-17/2/2013
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Ramzy Baroud |
Pouco
depois da campanha de bombardeio conjunto conhecida como “Operação Raposa do
Deserto”, quando EUA e Grã-Bretanha devastaram partes do Iraque em dezembro de
1998, lembro-me de reclamar com um amigo, no saguão do Palestine Hotel em Bagdá.
Incomodava-me
muito que, por causa de nossa agenda sobrecarregada no Iraque – principalmente
com visitas a hospitais superlotados de vítimas de urânio baixo-enriquecido no
Iraque – não me sobrava tempo para comprar livros árabes para minha filha
pequena que me esperava nos EUA. Quando já me preparava para embarcar na longa
viagem de ônibus de volta à Jordânia, um iraquiano de grandes bigodes e barba
cuidadosamente aparada aproximou-se. “Leve para sua menina” – disse ele
sorrindo, entregando-me uma sacola de plástico. Na sacola havia uma dúzia de
livros com imagens coloridas de histórias infantis iraquianas tradicionais. Não
conhecia o homem e nunca voltei a vê-lo. Estava hospedado no hotel e, sabe-se lá
como, soubera das minhas dificuldades. Agradeci-lhe o mais que pude, na correria
para tomar meu ônibus, com o homem insistindo que não havia o que agradecer. “Somos irmãos. Sua filha é como minha
filha” – disse ele.
Não
se pode dizer que o gesto tenha sido completa surpresa. A generosidade de
espírito e de ação é traço típico dos iraquianos, que todos os árabes conhecemos
bem. Dentre outras qualidades, os iraquianos são orgulhosos e perseverantes;
orgulhosos, porque a Mesopotâmia – que corresponde hoje a quase todo o Iraque
moderno – é “o berço da civilização”; perseverantes, porque sobreviveram a
experiências terríveis em sua história moderna.
Os
britânicos dispararam a tragédia moderna do Iraque, começando pela tomada de
Bagdá em 1917 e a modelagem perversa do país para que se encaixasse
perfeitamente nas necessidades coloniais e nos interesses econômicos de Londres.
Pode-se dizer que a confusão e os desmandos inigualáveis criados pelos invasores
britânicos continuaram ativados, sempre se manifestando sob diferentes
modalidades – fazendo aumentar o sectarismo, a violência política e disputas de
fronteiras entre o Iraque e seus vizinhos – até hoje.
Tariq Aziz |
Evidentemente,
cabem hoje aos EUA os créditos por ter destruído toda e qualquer conquista que
os iraquianos tenham obtido na luta para construir uma sempre elusiva soberania.
O secretário de Estado dos EUA, James Baker, ao que se sabe, ameaçou o Ministro
das Relações Exteriores do Iraque, Tariq Aziz, em reunião em Genebra em
1991, dizendo que os EUA destruiriam o país e “devolveriam o Iraque à idade da
pedra”. A guerra dos EUA, que se estendeu de 1990 a 2011, incluiu bloqueio
devastador e terminou na invasão brutal que o mundo viu. Essas guerras tiveram
de inescrupulosas o que tiveram de violentas. Além do inconcebível preço que
cobraram em vidas humanas, foram feitas conforme uma horrenda estratégia
política que visou sempre a explorar e a aprofundar o sectarismo já existente no
país e outros pontos frágeis, para provocar guerras civis e ódio sectário
crescente dos quais o Iraque dificilmente se recuperará ainda por muitos anos.
James Baker |
Para
os norte-americanos, foi mera estratégia orientada para aliviar a pressão sobre
os próprios soldados e exércitos aliados, que sempre encontraram feroz
resistência desde o primeiro momento em que puseram o pé no Iraque. Mas para os
iraquianos, foi sempre um terrível pesadelo que não se consegue expressar, nem
em palavras nem em números. Mas, sim, também faltam números. Conforme
estimativas da ONU citadas pela BBC, entre maio e julho de 2006 “foram mortos
por efeito da violência no Iraque, por dia, mais de 100 civis”. Estimativas não
divulgadas da ONU calculam em 34 mil o número de civis mortos no Iraque em 2006.
Foi o ano durante o qual a estratégia norte-americana de dividir para conquistar
provou-se mais eficiente.
Ao
longo dos anos, muita gente fora do Iraque – como aconteceu em relação a outros
conflitos de alta violência prolongada, com cadáveres contados aos milhares –
foi-se insensibilizando. Quanto maior o número de cadáveres, menos importantes
as vidas que se percam.
EUA
e Grã-Bretanha destruíram o Iraque moderno, sem qualquer remorso ou
arrependimento – nem jamais cogitaram de arrependimentos nem de pedir desculpas,
nem arrependimentos ou desculpas alterariam coisa alguma. Os ex-colonizadores do
Iraque, assim como os novos, jamais tiveram qualquer amparo legal ou moral que
os autorizassem a invadir o Iraque já devastado pelas sanções. Jamais
manifestaram tampouco qualquer piedade, enquanto destruíam uma geração inteira
de iraquianos e preparavam o cenário para conflito futuro, que já se apresenta,
hoje, tão sangrento quanto o anterior.
Quando,
segundo relatos oficiais, a última brigada de combate dos EUA deixou o Iraque em
dezembro de 2011, previa-se que fosse o fim de uma era. Mas historiadores sabem
que os conflitos não terminam por decreto presidencial ou deslocamento de
soldados. O Iraque, simplesmente, entrou em nova fase do mesmo conflito; e EUA,
Grã-Bretanha e outros continuam a ser partes ativas desse conflito.
Uma
das realidades pós-invasão e pós-guerra é que o Iraque foi dividido em áreas de
influência segundo linhas exclusivamente sectárias e étnicas. Na classificação
de vitoriosos e derrotados inventada pela imprensa-empresa ocidental, os
sunitas, culpados de serem os preferidos do ex-presidente Saddam Hussein,
aparecem como maiores perdedores. Enquanto as novas elites políticas iraquianas
foram divididas entre políticos xiitas e políticos curdos (cada partido com seu
exército privado próprio, alguns reunidos em Bagdá, outros na região autônoma do
Curdistão), a população xiita organizava-se em vários grupos militantes sempre
responsabilizados pelos infortúnios dos sunitas. Dia 8 de fevereiro, cinco
carros bombas explodiram em região rapidamente identificada como “áreas xiitas”,
matando 34 pessoas. Poucos dias antes, dia 4 de fevereiro, outra explosão
semelhante deixara 22 mortos.
Nouri al-Maliki |
A
violência sectária no Iraque, que já provocou dezenas de milhares de mortos,
está de volta. Sunitas iraquianos, incluindo grandes tribos e partidos
políticos, exigem igualdade e o fim da segregação que sofrem hoje no
relativamente novo sistema político iraquiano comandado pelo Primeiro-Ministro,
Nouri al-Maliki. Protestos massivos e greves têm sido organizados e vêm com
mensagem política clara de unificação. Mas, no outro campo, vários partidos
exploram também a polarização: para acertar velhas rixas, para empurrar o país
para uma guerra civil, para aumentar os desmandos e o descalabro já reinantes em
outros países árabes, sobretudo na Síria; e, em alguns casos, para “ajustar” os
limites sectários de modo a criar boas oportunidades de negócios.
Jeffrey James |
Sim.
Os negócios e as divisões sectárias no Iraque de hoje andam de mãos dadas.
Matéria da Reuters noticiava que a
empresa Exxon Mobil contratou Jeffrey
James, ex-embaixador dos EUA no Iraque (2010-12) como “consultor”. É exemplo de
como a diplomacia de pós-guerra e os negócios são aliados naturais. Mas há mais
nessa história.
Tirando
vantagem da autonomia do Curdistão, a gigante multinacional de petróleo e gás já
armou lucrativos negócios independentes do governo central em Bagdá – que desde
o ano passado reúne seus exércitos em área próxima dessa região rica em
petróleo. O governo curdo fez o mesmo. Incapaz de definir que partido tem mais
poder, definirá o rumo do novo conflito e, portanto, quem controlará o petróleo,
a Exxon está dividida entre honrar
seus contratos com os curdos ou partir em busca de negócios talvez mais
lucrativos no sul. James talvez tenha alguma boa ideia, sobretudo se mobilizar o
prestígio político que acumulou no tempo em que foi embaixador dos EUA.
O
futuro do Iraque está sendo hoje determinado por várias forças; praticamente em
nenhuma delas os iraquianos com alguma visão de unidade têm alguma voz. Colhido
entre ricas elites movidas a sectarismo, extremismo, sede de poder, atores
regionais, interesses ocidentais e o violento legado da guerra, o povo iraquiano
padece tanto, que praticamente já não há análises políticas ou estatísticas que
capturem toda a angústia. Uma nação orgulhosa, de impressionante potencial
humano e notáveis possibilidades econômicas foi rasgada em farrapos.
Hussein al-Alak, escritor iraniano que vive na Grã-Bretanha, escreveu, a propósito do
próximo décimo aniversário da invasão do Iraque, sobre as “vítimas mudas” do
país: as crianças. Segundo o Ministro do Trabalho e Assuntos Sociais do Iraque,
“há hoje cerca de 4,5 milhões de crianças
órfãs no país, “chocantes 70% das quais perderam os pais depois da invasão de
2003” .
Desse
total, cerca de 600 mil crianças vivem nas ruas, sem teto ou
alimento –
escreveu al-Alak. – E as poucas que vivem
em orfanatos mantidos pelo estado não recebem nem o mínimo indispensável para
atender suas necessidades básicas.
Não
me sai da cabeça aquele iraniano gentil e generoso que trouxe uma sacola de
histórias infantis iraquianas para a minha filha. Penso também nos filhos dele.
Um dos livros que o homem trouxe era “Simbad, o marujo”, apresentado na história
como um menino bonito e valente, que amava aventuras como amava sua terra. Por
pior e mais trágico que fosse o desfecho das suas aventuras, Simbad sempre
voltava ao Iraque para renovar as energias. E recomeçava. Como se nada tivesse
acontecido.
que fato da historia antiga faz os iraquianos se orgulharem da terra onde vivem
ResponderExcluirA Babilônia, p. ex. e a Torre de Babel (presume-se); além, é claro, da civilização mesopotâmica.
ExcluirAbraço
Castor