A
invasão do Iraque 10 anos de desumanidade
20/3/2013, Pepe Escobar,
Asia Times
Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Pepe Escobar |
Antes
de tudo, matemos todos os mitógrafos (sejam advogados ou não): o estupro do
Iraque é o maior desastre (des)humanitário do nosso tempo provocado por ação
humana.
É
essencial ter em mente que foi consequência direta de Washington ter reduzido a
cacos toda a lei internacional; depois do Iraque, qualquer doido em qualquer
lugar passa a poder iniciar guerra preventiva, citando Bush/Cheney 2003 como
precedente.
Pois
mesmo depois de passados dez anos de “Choque e Pavor”, até chamados “liberais”
ainda tentam legitimar alguma coisa, qualquer coisa, daquele “projeto Iraque”.
Jamais houve “projeto” algum; só um enlouquecedor enredado de mentiras –
incluindo justificações a posteriori (“democratizar” à bomba o Oriente
Médio Expandido).
The Catalyst |
Tenho
pensado, ultimamente, sobre The Catalyst [O catalisador]. The
Catalyst era o tanque com o qual eu tinha de negociar cada vez que entrava e
saía para minhas difíceis escavações a caminho da zona vermelha, nas primeiras
semanas depois de os EUA terem ocupado Bagdá. Os marines eram, na
maioria, do Texas e do Novo Mexico. Conversávamos. Estavam convencidos de que
atacaram Bagdá porque “os terroristas nos atacaram no
11/9”.
Anos
depois, muitos norte-americanos ainda creem n’A Maior das Mentiras. O que
comprova que os cosmicamente arrogantes e ignorantes neoconservadores entenderam
bem pelo menos uma coisa: essa mentira. A conexão Saddam Hussein - al-Qaeda pode
jamais ter sido a principal peça do quebra-cabeça no “projeto” deles de invadir
e refazer o Iraque desde o ano-zero (e havia também as inexistentes Armas de
Destruição em Massa); mas a mentira sempre foi técnica imensamente efetiva de
lavagem cerebral, para arregimentar as massas.
Quando
o show pornográfico de tortura de Abu
Ghraib veio à luz, na primavera de 2004, A Maior das Mentiras ainda vigia
(eu viajava pelo Texas, a trabalho, e praticamente todos consideraram tudo
aquilo perfeitamente “normal”).
Dez
anos depois de Abu Ghraib, da destruição de Fallujah, de vários atos de
“verificação de baixas” (assassinar todos os iraquianos feridos), de “fogo
rotacional de 360º” (exercício de tiro ao alvo contra multidões de civis
iraquianos), de ordens para ataques aéreos contra áreas civis, para nem falar de
“matar todos os elementos do sexo masculino em idade de serviço militar”; e US$3
trilhões (e aumentando) de gastos depois (lembrem que os neoconservadores
prometeram guerra curta, rápida, baratinha, que não consumiria mais de $60
bilhões); depois de mais de 1 milhão de iraquianos mortos por efeito direto ou
indireto da invasão e da ocupação, o enlouquecedor enredado de mentiras ainda
nos devora como uma Medusa gigante.
Oh
yes, e a
CIA (levou o Óscar) – fiel ao personagem – tudo cobre e tudo
encobre.
Mais
rápido, soldados antiguerrilha, matem, matem / Faster,
pussycat, kill, kill
Iraque-Ano-Zero
durou, no máximo, 10 dias. Assisti ao nascimento oficial da resistência: um
comício monstro em Bagdá, que começava em Adhamiya e reunia sunitas e xiitas. Em
seguida começaram as invenções daquela Central de Panacas chamada Autoridade
Provisória da Coalizão [orig. Coalition Provisional Authority (CPA)],
“liderada” pelo medonho Paul Bremer, sempre, infalivelmente, manifestando
quantidades galáticas de ignorância sobre cultura mesopotâmica. E, então, a
ofensiva descomunal, monstruosa, encontrar e destruir, apresentada como se fosse
uma “tática”, travestida como se se tratasse de antiguerrilha. Não surpreende
que, em pouco tempo, aquilo tudo estivesse convertido num Vietnã
arenoso.
A resistência sunita fez pirar,
literalmente, o Pentágono. Em “A real fúria em Fallujah” lê-se um relato do que
era o “triângulo da morte” no verão 2004 e a resposta do Pentágono, quatro meses
depois, quando aplicou o que então chamei de “democracia de tiro de alta
precisão” [orig. precision-strike
democracy].
No fim, o triângulo da morte
venceu –
avance o filme até a “avançada” de George Dábliu. Milhões crédulos nos EUA ainda
creem na narrativa do tesudo general David Petraeus sobre a tal “avançada”. Eu
estava lá no inicio da “avançada”, na primavera de 2007. A horrenda guerra
civil arquitetada e construída pelos EUA – lembrem-se: dividir para governar! –
só continuava a existir porque os commandos xiitas – Badr Corps e
Exército Madhi – haviam conseguido impor uma devastadora limpeza étnica &
matança de sunitas, em bairros e arrabaldes que tradicionalmente sempre, até
ali, haviam sido mistos. Bagdá, cidade onde antes havia pequena maioria de
sunitas, foi transformada em predominantemente xiita.
Nada disso teve a ver com
Petraeus.
Como
os Conselhos de Alerta [orig. Awakening Councils], eram milícias
essencialmente sunitas (mais de 80 mil), organizadas por clãs, que se cansaram
dos ataques da al-Qaeda nas sórdidas táticas do Iraque, sobretudo naquele mesmo
triângulo da morte, incluindo Fallujah e Ramadi. Petraeus pagou-lhes com malas
cheias de dinheiro. Antes disso – quando, por exemplo, defendiam Fallujah em
novembro de 2004 – eram chamados “terroristas”. Naquele momento, já haviam sido
rebatizados ao estilo Ronald Reagan: já eram “combatentes da
liberdade”.
Encontrei
alguns daqueles xeiques. Tinham um esperto plano de longo prazo: “em vez de
combater contra os norte-americanos, arrancamos o dinheiro deles; sumimos por um
tempo, nos livramos dos fanáticos da al-Qaeda e, mais tarde, atacamos nosso
verdadeiro inimigo, os xiitas que estão no poder em
Bagdá”.
Esse
é exatamente o passo seguinte que se vê no Iraque, onde já fermenta, lentamente,
outra guerra civil. E, por falar nisso, alguns daqueles ex-“terroristas” – com
vasta experiência de combate – são hoje os principais comandantes naquela sopa
de letras que se conhece como “os rebeldes” sírios que lutam contra o governo de
Assad na Síria. Ah!, Sim! São outra vez “combatentes da
liberdade”.
Balcanização
ou morte
Balcanização do Iraque sonhada por Joe Biden (e os EUA) |
Os
norte-americanos obviamente já esqueceram que Joe Biden, quando ainda no Senado,
muito trabalhou em prol da balcanização do Iraque, que ele sonhava ver dividido
em três áreas sectárias. Considerando-se que Biden é, hoje, um dos homens de
ponta do governo Obama 2.0 para a Síria, talvez consiga ganhar duas
vezes.
É
verdade: o Iraque é a primeira nação árabe governada por governo xiita desde que
o fabuloso Saladino livrou-se dos Fatimidas no Egito, nos idos de 1171. Mas,
hoje, é nação em vias de ser totalmente fragmentada.
A
Zona Verde, que já foi cidade norte-americana, pode agora ser cidade xiita. Mas
até o Grande Aiatolá Sistani – alto líder religioso xiita que realmente quebrou
a espinha dorsal dos neocons e da CPA
em Najaf em 2004 – está desgostoso com a confusão que o Primeiro-Ministro, Nouri
al-Maliki está orquestrando. Até o Irã está preso nesse beco. Diferente do que
pensam os “especialistas” dos think-tanks em Washington – será possível
que jamais acertem uma?! – o Irã não manipula a política iraquiana. O que Teerã
realmente teme, mais que tudo, é uma guerra civil no Iraque, que não seria muito
diferente do que se vê acontecer na Síria.
Patrick Cockburn |
Devemos
a Patrick Cockburn a melhor cobertura jornalística do Iraque nos últimos dez
anos, onde trabalhou como correspondente estrangeiro. Sua avaliação mais recente
pode ser lida em Counterpunch (10/3/2013, “Morte
e dólares no Iraque”
[em inglês]).
Fatos
relevantes são: o fazedor de reis, Muqtada al-Sadr – lembram quando era o homem
mais perigoso no Iraque, capa de todas as revistas nos EUA? – pode até ter
criticado Maliki por seu viés pró hegemonia para os xiitas, mas al-Sadr não quer
mudança de regime. Os xiitas têm maioria numérica e, num Iraque que se mantenha
unificado, sempre, de um modo ou outro, haverá governo
xiita.
O
sul do Iraque, predominantemente xiita, permanece mergulhado na miséria. A única
fonte possível de emprego é o Estado. A infraestrutura continua em ruínas - por
todos os cantos – consequência direta das sanções da ONU e dos EUA, e da invasão
e ocupação.
Mas há
também a “cidade fulgurante sobre a colina” [orig. shining city on a
Hill]: o
Curdistão Iraquiano, uma espécie de desenvolvimento distorcido do
Óleogasodutostão.
Rupert Murdoch |
O “Big Oil” jamais teve qualquer
chance para realizar seu sonho de 2003 de baixar o preço do barril de petróleo
de volta aos $20 – alinhado com os desejos
manifestos de Rupert Murdoch. Mas
vê-se muita agitação por ali. Greg Muttitt é quem acompanhou mais de perto e
mais inteligentemente o novo
boom do petróleo iraquiano.
Mas
em nenhum outro ponto a agitação é mais cheia de volutas que no Governo Regional
do Curdistão [orig. Kurdistan Regional Government (KRG)], onde atuam mais
de 60 empresas de petróleo – de ExxonMobil a Chevron, Total e
Gazprom.
O
ponto santificado dentre os santificados é um novo óleogasoduto que liga o
Curdistão Iraquiano à Turquia, passaporte, em teoria, para que o Curdistão
exporte petróleo sem passar por Bagdá. Não se sabe se essa será a pena que
quebrará a espinha do camelo iraquiano – com os curdos iraquianos cada vez mais
próximos de Ancara e cada vez mais distanciados de Bagdá. A bola, sem dúvida,
está no campo do Primeiro-Ministro turco, Recep Tayyip Erdogan – com os curdos
encontrando afinal uma chance única em várias vidas, para driblar os interesses
de Ankara, Bagdá e Teerã e, afinal, conseguir um Curdistão independente e
economicamente autossuficiente.
Assim
sendo, sim, há muitos sinais de balcanização no horizonte. Mas e quanto a lições
que os EUA aprenderam das maiores mentiras em política externa da história do
mundo? Não aprenderam, Nada. Nothing.
Temos de esperar que Nick Turse
escreva, dentro de alguns anos, o equivalente iraquiano de sua obra-prima sobre
o Vietnã, Kill
Anything That Moves. Ainda
mais que no Vietnã, o catálogo de horrores do Iraque foi o resultado inevitável
não só de uma política oficial do Pentágono, mas também de uma política oficial
da Casa Branca.
Hans-C. Graf Sponeck |
Algum dia chegaremos a conhecer
plenamente essa espiral de sofrimento dos iraquianos, que se fecha cada vez
mais? Seja como for, sempre se poderá começar a conhecê-la nesse depoimento
do ex-coordenador de ação humanitária da ONU para o Iraque, Hans
Sponeck.
Ou, em registro pop, quem
sabe algum produtor não Hollywood/CIA produzirá algum dia um filme sobre o
Iraque, a ser distribuído mundialmente, em cuja cena final Dábliu, Dick, Rummy,
Wolfie e sortimento variado de gângsteres do tipo Douglas Feith são todos
mandados, com passagem só de ida, para uma Guantánamo a ser atentamente copiada
no triângulo da morte – ao som de Masters
of War, de Bob Dylan (ouça a seguir). Seria
catarse global pela qual valeria a pena morrer.
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