10/6/2013, Alexander
Nazaryan, The New Yorker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
James Bamford |
Alexander Nazaryan |
Em 1982, muito antes de a maioria
dos norte-americanos sequer ter começado a pensar sobre escutas clandestinas, o
jornalista James
Bamford publicou The Puzzle Palace: A Report on
N.S.A., America’s Most Secret Agency [O palácio-quebra-cabeças: reportagem
sobre a Agência de Segurança Nacional, a mais secreta das agências secretas dos
EUA], o primeiro livro publicado sobre a National Security Agency (NSA),
iniciada em 1952 pelo presidente Harry Truman para recolher inteligência sobre
entidades estrangeiras, e a qual, como ficamos sabendo semana passada, recolhe
hoje registros de chamadas telefônicas e de mensagens de e-mail de
cidadãos norte-americanos e outros. No livro, Bamford descreve a agência como
“livre de qualquer limitação legal” e com “capacidades tecnológicas além da
imaginação para escutas clandestinas”. E conlui com um alerta assustador: “Como
um poço eternamente sem fundo, a tecnologia de vigilância continuará a
expandir-se, silenciosamente alcançando mais e mais sistemas de comunicação e
eliminando gradualmente cada vez mais direitos de privacidade.” Três décadas
depois, o alerta soa desconfortavelmente certeiro: todos fomos avisados.
Bamford,
que prestou serviço militar na Marinha e estudou Direito antes de tornar-se
jornalista, publicou outros três livros depois de The Puzzle Palace, que
formam uma tetralogia sobre a Agência de Segurança Nacional: Body of Secrets:
Anatomy of the Ultra-Secret National Security Agency [Corpo de segredos:
anatomia da ultrassecreta Agência de Segurança Nacional] (2001); A Pretext
for War: 9/11, Iraq, and the Abuse of America’s Intelligence Agencies [Um
pretexto para a guerra: 11/9, Iraque e o abuso das agências de inteligência dos
EUA] (2004); e The Shadow Factory: The Ultra-Secret N.S.A. from 9/11 to the
Eavesdropping on America [A fábrica de sombras: a ultrassecreta NSA, do 11/9
às escutas clandestinas nos EUA] (2008).
Scott Shane |
Como se vê na progressão dos
subtítulos, Bamford desencantou-se com a agência que ele, provavelmente,
conhecia melhor que qualquer outro “observador externo”. Outros jornalistas
investigativos consideram
Bamford com o
que, em termos amplos, pode-se descrever como admiração, embora, como Scott
Shane, repórter do Times, escreveu em 2008, “Seu relacionamento
com a
Agência Nacional de Segurança pode ser comparado a um longo e
atormentado affair no qual a fascinação pelo gigantismo e pelas
capacidades alternava-se com o horror pelo poder para invadir qualquer
privacidade”.
Bamford riu da imagem de romance
turbulento. “Eu tinha uma relação de amor e ódio com a NSA”, Bamford riu, quando
falei com ele semana passada, logo depois da revelação de que a Agência está
reunindo metadados de telecomunicações e das empresas de internet: “Eu os amo e
eles me odeiam”. E têm boas razões. Bamford, que hoje divide seu tempo entre
Washington, D.C. e Londres, é personagem levemente perverso, sempre ajudado por
curiosidade e persistência óbvias. Fala com o à vontade de criança que entrou em
sala proibida e sabe que voltará a entrar. Resolveu escrever novamente sobre a
Agência, que se crê que receba 10
bilhões de dólares anuais do Estado e emprega cerca de 40 mil pessoas,
porque ninguém jamais escreveu sobre ela – e porque se diverte muito mais
escrevendo que lendo processos judiciais e depoimentos.
Quando
pesquisava no Instituto Militar da Virginia, descobriu grande quantidade de
documentos relacionados à NSA, dos arquivos de um mestre criptógrafo da
Moldávia, William Friedman, aos de Marshall Carter, que dirigiu a Agência
de 1965
a 1969. E, por incrível que pareça, o Departamento de
Justiça de Jimmy Carter, acedeu ao pedido de Bamford, fundamentado na Lei da
Liberdade de Informação, e entregou-lhe documentos secretos relacionados à
Comissão Church, comissão do Senado que, em 1975, investigou as agências de
inteligência dos EUA acusadas de possíveis transgressão e abuso das respectivas
autorizações para investigar.
O
fato de o governo entregar informação sensível a Bamford, como se pode
adivinhar, enfureceu a Agência de Segurança Nacional. Advogados do governo
Reagan tentaram coagir Bamford a devolver os documentos, ameaçando-o com a Lei
de Espionagem, enquanto a própria Agência tentava sequestrar os documentos que
ele revelara. Mas, porque era, ele próprio, advogado, Bamford sabia que nada
fizera de ilegal.
Glenn Greenwald |
Diferente
da ordem judicial secreta sobre escuta clandestina que ordenou que a empresa
Verizon entregasse à Agência os registros telefônicos de seus clientes, a qual
foi clandestinamente repassada a Glenn Greenwald do Guardian, a
informação que Bamford recebeu foi-lhe entregue por via legal, por canais
legais.
Tive
muito trabalho para encontrar um exemplar de The Puzzle Palace. Procurei
também em livrarias online, mas o único exemplar impresso que consegui
encontrar estava na Queens Central
Library [Biblioteca Central do Queens]. O livro estava arquivado, me
disseram, e demoraria para ser encontrado. De fato, The Puzzle Palace
parece objeto místico, do tipo mais obscuramente revelador. Embora publicado nos
anos Reagan, é fortemente subversivo e poderosamente clarividente e presciente.
Seus vários alertas contra a “tecnotirania” e a ideia de que “a mesma tecnologia
usada contra a livre manifestação do pensamento pode ser usada para protegê-la”
soam como algo que facilmente se ouviria de um executivo da Google
em
conferência pública. Bamford escreve com descrença e ceticismo
sobre os procedimentos legais criados em 1978 nos termos da Lei para Vigilância
de Inteligência Estrangeira [orig. Foreign Intelligence Surveillance Act]
para legitimar a espionagem – as mesmas leis que, desde 11/9, permitem escutas
clandestinas dentro dos EUA – chamando-as de “corte super precária e
insuficiente, virtualmente impotente”.
O
livro de Bamford, em 1982, lembra a todos que suponham que as escutas
clandestinas sejam parte necessária de um mundo pós 11/9, que a Agência Nacional
de Segurança já forçara, bem antes, os limites da 4ª Emenda. O Projeto Shamrock, implantado depois da 2ª Guerra
Mundial, obrigava empresas como a Western
Union a entregar, em lotes diários, todos os telegramas que entrassem e
saíssem dos EUA. Irmão mais novo, o Projeto Minaret, nascido em 1969, coletava
informação sobre “indivíduos ou organizações envolvidas em agitações civis,
movimentos/manifestações antiguerra e desertores do serviço militar envolvidos
no movimento antiguerra”.
Minha
passagem favorita é de um tipo mais leve. Descreve o quartel-general da Agência
Nacional de Segurança, perto de Washington – às vezes chamado “Crypto City” –
que Bamford visitou, em troca de algumas poucas concessões, aceitando não
divulgar informação que muito interessava à Agência que não fosse divulgada. Ele
escreve: “Embora a segurança no Puzzle Palace pareça quase hermética,
grande parte de tudo não passa de fantasia. Apesar do triplo revestimento e da
eletricidade [a verificar: orig. Triple-wrapping in chain link and
electricity notwithstanding], o acesso ao lobby do prédio e à área
acarpetada da recepção é tão fácil quanto entrar num terminal de ônibus da
empresa Greyhound”. Não há dúvidas de que isso, hoje, mudou.
Complexo principal de edificações da NSA (sede) |
Se
The Puzzle Palace é hoje tão difícil de encontrar, é porque o volume
seguinte, Body of Secrets, eclipsou quase completamente o primeiro.
Publicado meses antes do 11/9, é a história de uma agência sem rumo, a ameaça
soviética já evanescida no horizonte e a nova ameaça que viria logo depois, do
Oriente Médio, ainda não configurada nem em foco. O livro é denso de história da
própria agência, em parte porque, para esse trabalho, Bamford receberia a mais
completa e intensiva cooperação da própria Agência. O então diretor Michael
Hayden, que assumira a direção da Agência em 1999, até convidou Bamford para
jantar em sua casa. (“Ele tinha uma banda, um trio” – Bamford contou-me –
“Generais gostam dessas coisas”).
A narrativa nem sempre é gentil:
Body of Secrets começa com uma descrição do que eram os agentes de
inteligência dos EUA ao final da 2ª Guerra Mundial, desesperados para pôr as
mãos em decodificadores nazistas que os pudessem ajudar contra a crescente
ameaça soviética. A crise de Suez de 1956, na qual Israel, Grã-Bretanha e França
atacaram o Egito, “marcou uma triste entrada no mundo da inteligência de crises”
– escreve Bamford, com a análise produzida pela agência reduzida a nada mais
útil ou específico que “comunicações entre Paris e Telavive”. Oito anos depois,
a Agência de Segurança Nacional cometeria “grande estupidez”, nas palavras de
Bamford, ao inflar a ameaça de um segundo ataque no Golfo de Tonkin nos
primeiros dias de agosto de 1964, que o presidente Lyndon B. Johnson usaria como
pretexto para arrastar
os EUA para o que viria a ser a Guerra do
Vietnã.
McNamara, mente descaradamente aos jornalistas sobre o "incidente" no Golfo de Tonkin que foi desculpa para a agressão dos EUA ao Vietnã do Norte em 1964 |
Adiante,
Bamford diz que a Agência de Segurança Nacional perdeu equipamento de
criptografia para os norte-coreanos, que passaram o equipamento para os
soviéticos, os quais, por sua vez, entregaram-no aos seus aliados
norte-vietnamitas (a Agência desmentiu essa informação). A Agência cercou a
União Soviética com um “cordão eletrônico”, embora, como Bamford disse-me
depois, “porque a Guerra Fria manteve-se fria, a Agência de fato nunca foi
testada contra esse seu máximo desafio”.
Lenta
no processo de mudança ao longo dos anos 1990s, a Agência começou a adaptar-se
para o mundo digital quando Hayden assumiu a direção. Seus decifradores de
códigos eram matemáticos brilhantíssimos e cientistas de computação, mas não
estavam sempre perfeitamente atualizados. Bamford escreve que “com a Guerra Fria
virando passado, foram-se também os anos de apogeu da Agência de Segurança
Nacional dos EUA”. E observa que, em 1997, “a comunidade de inteligência
encolhera de volta às dimensões que tivera em 1980” . Para a NSA, significou que, nos
primeiros sete anos dos anos 1990s, houve cortes; o pessoal foi reduzido em
17,5%.
Dado
que a Agência de Segurança Nacional parece ter tratado Bamford quase como um
ombudsman civil naquele momento, o livro é cheio de pequenos detalhes
curiosos: a agência de Correios da “Crypto City”, já em 2000, distribuía 70 mil
itens de correspondência diariamente; e “a Agência de Segurança Nacional dos EUA
era o maior fornecedor de sangue para o programa de doação de sangue de
Maryland”. Há até um “festival anual de cinema, patrocinado pela Associação de
Cripto-Linguística [orig. Crypto-Linguistic Association] e um Battlegaming Club, além de lojas Taco
Bell e Pizza Hut”. Os detalhes visam a criar, com uma aura de normalidade, o que
Bamford descreve como “um avatar da Biblioteca de Babel de Jorge Luis Borges , um
local onde a coleção de informações é ao mesmo tempo infinita e monstruosa, onde
está armazenado todo o conhecimento do mundo, mas cada palavra aparece
enlouquecidamente cifrada, escrita num código indecifrável”.
A
grande ironia é que a agência encarregada da oniciência deixou passar sem ver,
nem registrar, o fato de que vários dos sequestradores de aviões do 11/9 viviam
ali bem perto, em
Laurel, Maryland , cidade-dormitório da comunidade de
inteligência dos EUA. Bamford especula que os cinco ainda-não-terroristas, mas a
poucos dias de se converterem nos maiores terroristas de todos os tempos,
provavelmente se exercitavam, para manter a forma física, na mesma academia, Gold’s Gym, que vários funcionários da
NSA.
Em termos gerais, Bamford é gentil
com Michael Hayden. Mas, depois do 11/9, acontecido apenas alguns meses depois
da publicação do livro na primavera de 2001, a Agênia de Segurança Nacional
passou a ser, simultaneamente, o bode expiatório e uma das organizações
encarregadas de impedir futuros ataques. Parte de sua missão envolveu
disseminar, com a ajuda da CIA, a ideia da Casa Branca de que o Iraque possuía
armas de destruição em massa – noção que em seguida se verificou ser
absolutamente falsa. Mas serviu bem, como Pretexto para a Guerra –
terceiro volume da tetralogia – amplamente demonstra. Nesse livro, Bamford
também relata que a Agência de Segurança Nacional recebeu ordens, do governo
Bush, “para espionar os
inspetores de armamentos da ONU e para pressionar membros
indecisos do Conselho de Segurança da ONU para que votassem a favor de guerra-já”.
GWBush e o LtGen MVHayden na NSA em Fort Meade, Maryland (2002) |
Mas nem Bamford sabia do pior
disso tudo. Outra vez, seu livro foi lançado no auge de um cataclismo. Dia
16/12/2005, o NYTimes publicou artigo intitulado
“Bush
Lets U.S. Spy on Callers Without Courts” [Bush autorizou EUA a espionarem
cidadãos norte-americanos sem autorização judicial]. A matéria dizia que o
presidente “autorizou secretamente a Agência de Segurança Nacional a manter
escutas clandestinas sobre cidadãos norte-americanos e outros dentro dos EUA, à
procura de sinais de atividade terrorista, sem a autorização judicial que
normalmente se exige para escutas clandestinas e espionagem doméstica, segundo
disseram funcionários do governo” – movimento predecessor do programa PRISM hoje
revelado. Bamford sentiu-se traído. Embora tivesse noticiado os excessos dos
projetos Shamrock e Minaret, acreditava que a Agência de
Segurança Nacional, sob a direção de Hayden, fosse organização mais escrupulosa
do que antes. Hoje, Bamford diz que considera o livro generoso demais no retrato
que pintou de Hayden.
The Shadow
Factory [Fábrica de sombras], o furioso livro que
Bamford publicou em 2008, sobre os atuais problemas que a Agência de Segurança
Nacional enfrenta, é, provavelmente, o mais importante de todos, hoje. Nesse
livro, ele mostra uma Agência que se vai tornando cada dia mais autônoma sobre
quais dados coleta, e de quem. Como um funcionário disse a Bamford, “É o que a
Agência de Segurança Nacional faz desde 9/11. Hoje, só fazem mais, do mesmo”.
Hayden, naquele momento, foi convertido em “sicofanta de três estrelas, que só
pensava em proteger
a Agência contra as forças destrutivas de Cheney e [David]
Addington [chefe de gabinete de Cheney]. Body of Secrets faz referência a
Borges. The Shadow Factory cita Orwell.
Recente atentado durante a Maratona de Boston (15/4/2013) |
Particularmente forte é a suspeita
de que, dentre todas as agências norte-americanas de espionagem, a Agência de
Segurança Nacional não é, de fato, muito boa. Bamford disse que a Agência
“falhou feio” na prevenção de ataques, desde a Guerra Fria. Não viu coisa
alguma, desde o primeiro ataque ao World
Trade Center em 1993, até o recente
atentado na Maratona de Boston. Isso, em parte, porque a Agência está afogada
em tal quantidade de dados que, ao que parece, já perdeu a capacidade para
avaliar a informação em tempo razoável. É preciso ter gente capaz de definir
padrões, de dizer o que é importante e o que não tem importância alguma. Ou,
como Bamford diz em A Pretext for
War, que “a Agência de Segurança Nacional carece de
fontes de inteligência humana para ajudá-la a ver onde e quem espionar”. No
passado, uma rivalidade com a CIA – responsável, sobretudo, pela inteligência
humana, em contraste com a
Agência de Segurança Nacional, focada só em recolher dados –
impediu que se construísse essa simbiose.
Na raiz da fixação de Bamford
com a
Agência de Segurança Nacional está uma fascinação com a
facilidade com que os americanos “compram a ideia de empresa” de espionagem e
espiões, e que é o que nos garantiria que a lei estaria sendo cumprida, que as
liberdades civis estariam sendo respeitadas, por mais que se acumulem provas de
que nada é bem assim, que a verdade é o contrário disso. É como se os
norte-americanos quisessem acreditar que os encarregados de nos proteger
poderiam, vez ou outra, desobedecer a lei, mas só para nos manter em segurança,
mais ou menos como faz a patriota-bandida Carrie
Mathison, personagem de Claire Danes, no seriado
Homeland.
Tudo isso tem enfurecido Bamford, cada
dia mais. Embora não se tenha vangloriado durante nossa conversa, é visível que
se sente vingado pelos muitos anos de feroz perseguição que sofreu. E continua
furioso, tão furioso quanto em 1982, quando só bem poucos norte-americanos
haviam algum dia ouvido falar de “Crypto City”. Surpreendentemente apolítico,
Bamford quer, simplesmente, que os espiões respondam pelo que fazem, antes de
fazer: “Querem espionar? Acham que espionar é vitalmente importante?” –
pergunta, falando do programa PRISM da Agência de Segurança Nacional. – “Pois
apresentem um projeto de lei, consigam que o Congresso aprove. Abram um debate
nacional, público”.
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