21/6/2013, Dmitriy SEDOV, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido
na Vila Vudu:
Mais do que “informar” sobre a Turquia, este artigo deve ajudar a fazer-ver que
NINGUÉM estará discutindo consequentemente a questão brasileira, enquanto
militantes e partidos políticos não souberem fazer outra coisa além de
“indignar-se” ante a vergonhosamente incompetente cobertura jornalística dos
eventos em curso no Brasil.
Em
nenhum país do mundo empresas comerciais de jornalismo têm a influência que têm
no Brasil (país de partidos fracos, historicamente). Por isso, talvez, ninguém
veja com clareza que as empresas comerciais de jornalismo no Brasil estão, de
fato, COMPLETAMENTE embasbacadas.
Elas
ainda não sabem se:
(a)
os eventos em curso ajudam o governo Dilma (caso em que os eventos serão
apresentados pela mídia como “baderna social” e as empresas comerciais de
jornalismo ‘exigirão’ que a ordem seja imposta a qquer preço); ou
(b)
se prejudicam o governo Dilma (caso em que os eventos serão apresentados como
“movimento jovem” – movimento jornalístico de “imprensa livre” que equivale a
mostrar canibais que comem vísceras de gente como “combatentes da liberdade”, o
que, como se sabe, o jornalismo de empresas comerciais TAMBÉM já fez no mundo e,
de tanto fazer, faz cada dia mais desavergonhadamente – e sem oposição
discursiva consequente).
Nunca
antes na história desse país, tanto dependeu tanto de o poder democrático
DIZER-FAZER COISA COM COISA, politicamente, publicamente, nas fuças e nas
canelas do Grupo GAFE (Globo-Abril-FSP-Estadão).
Turquia: Praça Taksim - ao fundo o arvoredo do Parque Gezi |
Os eventos na praça Taksim em
Istambul estão sendo apresentado pela imprensa-empresa
ocidental como consequência de uma decisão “ecologicamente incorreta” do governo
turco, para construir num parque na cidade. Nada mais distante da realidade, e a
versão jornalística levanta questões sobre os reais interesses do Ocidente na
disseminação do conflito.
A
verdade é que a praça em questão tem papel praticamente nenhum no conflito. O
xis da questão é que, nessa operação, Recep Erdoğan planeja demolir o Centro
Cultural Mustafá Kemal Atatürk, ali
localizado, e remover o monumento do fundador da República Turca secular.
Em lugar do
Centro Cultural , Erdoğan decidiu construir uma mesquita, embora
já haja uma mesquita na mesma praça, Taksim Mescid Camii.
Essa
intenção, sim, uniu toda a parte secular da sociedade, nos protestos contra o
primeiro-ministro. Ampla variedade de grupos comunitários, inclusive grupos
antes inconciliáveis, uniram-se na oposição à política de Erdoğan de ativamente
destruir o legado político de Atatürk.
Claro
que a islamização consistente do país ao longo dos últimos 10 anos já causava um
descontentamento latente em várias forças da sociedade, antes dos atuais
conflitos. O potencial de protesto foi-se acumulando gradualmente.
E
quando a sociedade soube da tentativa de demolir o Centro Atatürk – símbolo da
ordem secular – sobreveio a explosão.
Entre
os turcos, nenhum culto é mais profundo que o que cerca o fundador da república.
Poucos políticos no mundo gozam de respeito tão incondicional quanto o fundador
do moderno estado turco. Só um político que se veja como “igual” a Atatürk
desafiaria publicamente seu prestígio.
Centro Cultural Mustafá Kemal Atatürk |
Tudo
sugere que Recep Erdoğan imagine-se, ele mesmo, como uma espécie de
“anti-Atatürk”. Planeja feito histórico na mesma escala grandiosa, mas com o
sinal trocado: quer fazer da Turquia, em vez de estado secular moderno, um
estado islamista.
Por
isso é indispensável remover os símbolos conectados a Mustafá Atatürk e por isso Erdoğan
agarra-se tão ferozmente e tão obcecadamente à ideia de demolir o centro
cultural e o monumento. Para ele, seria uma vitória ideológica, no plano
simbólico, em momento crucial da história. Mas os que resistem também veem a
luta pelo monumento como luta pelo rumo que a Turquia tomará.
Erdoğan
já fez muitas coisas, para erradicar o legado de Atatürk.
Mustafá Kemal Atatürk |
Atatürk,
com o apoio do exército, despiu a Turquia de todos os atributos de “estado
islamista” e converteu o coração do antigo Império feudal otomano em país
secular europeizado. Para Atatürk, o exército existia para proteger a autoridade
secular e impedir o avanço da islamização.
Erdoğan
dedicou todos os dez anos de seu governo a afastar o exército dessa função de
defender a coesão (secular) da sociedade, substituindo os oficiais seculares por
imãs, nos corpos de comando. Nos anos recentes, houve uma “epidemia” crescente
de demissões, escândalos e “denúncias” contra oficiais e generais do Exército
Turco, acusados de tentar golpes, de atos de corrupção e muito mais.
Desde
2007, o próprio Erdoğan fala frequentemente da “inevitável islamização” da
Turquia. Tem apoiado islamistas no exterior, especialmente em países vizinhos.
Rebeldes chechenos, inguches e do Daguestão recebem até hoje
apoio e suprimentos de Ankara. Nas Guerras da Chechenia, houve “amirs
turcos” [orig. êem bilal). Dentre os rebeldes dizimados por forças
federais havia tantos turcos quanto sauditas.
Na
Turquia, Erdoğan comanda uma política de neo-otomanismo, uma mistura de
nacional-socialismo e sunismo.
Recep Erdoğan |
Erdoğan
obteve apoio, simultaneamente, das classes mais pobres na Turquia e na Europa.
Dentre os países europeus, Espanha e Alemanha são os mais empenhados apoiadores
de Erdoğan; e a Alemanha mantém laços muito estreitos com a Turquia. Mas, mais
importante que isso, Erdoğan é a menina dos olhos dos socialistas que estão no
poder na Europa: para eles, é a encarnação do ideal que tanto acalentam, de um
“Islã racional”.
Erdoğan
começou a combater contra o Kemalismo, quando estava na crista de sua influência
no país e no exterior. A Turquia desenvolvia-se economicamente a taxas
invejáveis e fortalecia sua posição na região. A guerra na Síria foi ocasião
pela qual Erdoğan muito esperava, para mostrar-se ainda mais firmemente. Ironia,
porém, nesse quadro, é que Erdoğan tenha denunciado os métodos “não
democráticos” de al-Assad, no trato com a oposição.
Hoje,
os métodos para dispersar os manifestantes turcos, as prisões, a violência
generalizada, também nas cidades turcas, mostram o tipo de “verdadeiro
democrata” que é o próprio Erdoğan.
******
A
cobertura que a mídia comercial ocidental está dando aos eventos na Turquia
merece ser examinada à parte. Nada mais difícil de acreditar, do que a versão
segundo a qual a mídia comercial ocidental manteria alguma isenção na informação
que distribui sobre a Turquia. E já ninguém sabe o que fazer para não expor o
real confronto: a “força islamista irresistível” de Erdoğan, contra o “objeto
inafastável” da oposição kemalista.
A
realidade já não cabe no conceito de “islamização civilizada” que, supostamente,
faria de Recep Erdoğan o representante autorizado pelo ocidente na Região. Há
apenas um mês, a Europa ainda garantia todo o seu apoio à islamização da Turquia
– e a imprensa-empresa noticiava “de acordo”. E então, de repente, apareceu na
rua, onde todos veem, um movimento popular anti-islamista, por trás do qual
está, firme, o Exército, além de vastas fatias da sociedade (e, provavelmente,
também grupos da elite turca).
A
solidariedade nacional clara, com declarações de vontade por vias pacíficas, e a
consolidação do movimento via Facebook e Twitter prosseguem – seguindo todos os
cânones do neoliberalismo.
Mas,
estranhamente, para a mídia comercial... contra os interesses do Ocidente! Uma
“revolução colorida ao contrário” está em construção na Turquia.
E nenhuma capital europeia pode prever o que sairá disso.
Assim, a imprensa empresa não sabe o que “noticiar”...
Afinal,
é possível que forças que pregam política externa comandada pelos preceitos
internacionalistas de Atatürk, “o Pai dos Turcos”, podem, sim, chegar ao poder
na Turquia. Essa política já existiu e foi hegemônica, ainda bem recentemente:
pregava “nenhum problema com os vizinhos” – e falar de “vizinho”, na Turquia, é
falar de Síria. Esse movimento pegaria os estrategistas da OTAN, completamente,
“no contrapé”.
Por
essa razão, a imprensa-empresa ocidental vacila sobre a posição a adotar no
noticiário sobre a Turquia. Praticamente não se veem notícias, no ocidente,
sobre a retórica anti-islamista dos que se manifestam nas ruas. E o noticário
capenga: tampouco se divulga uma linha sobre a retórica pró- Atatürk, que também
está nas ruas turcas.
Enquanto
isso, o conflito se alastra, contra a intransigência fundamentalista de Erdoğan,
o “querido” do Ocidente.
Passeata realizada domingo( (16/6/2013) em apoio a Erdogan |
No
domingo, 300 mil apoiadores de Recep Erdoğan, organizados pelo Estado, saíram às
ruas. Tudo foi planejado como demonstração das forças que apoiam o
primeiro-ministro. E é claro que essas forças existem. Contudo, para conseguir
virar a situação a seu favor, Erdoğan teria de ter a autoridade de fato,
simbólica, que Atatürk (ainda) tem.
Parece,
contudo, que Erdoğan se superestimou, porque, em resposta, os manifestantes
voltaram às ruas e enfrentaram a Polícia. O primeiro-ministro pôs nas ruas de
Istambul mais de mil agentes das Forças Especiais. Então, e, de fato, sem que
ninguém esperasse, vários poderosos sindicatos de trabalhadores turcos –
ameaçados de extinção, se se implantarem normas islamistas – uniram-se aos
manifestantes.
A
Reuters noticiou que um dos maiores sindicatos da Turquia, a “Confederação dos
Funcionários Públicos” (tu. KESK), convocou greve geral para a 2ª-feira,
17/6. A liderança de outro sindicato turco, a “Confederação dos Sindicatos de
Trabalhadores Revolucionários” (tu. DISK), convocou assembleia de
emergência e decidiu unir-se na mesma ação.
Especialistas
observam atentamente os sentimentos do Exército. Também ali podem acontecer
surpresas.
Tudo
sugere que o preço que Recep Erdoğan terá de pagar por sua tentativa de varrer
Kemal Atatürk da história da Turquia vai-se tornando alto demais. Os próximos
desenvolvimentos mostrarão se conseguirá pagar…
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