sexta-feira, 19 de julho de 2013

A cosmopólis persa revisitada

19/7/2013, [*] Richard Eaton, Asia Times Online 
Revisiting the Persian cosmopolis
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Já há vários séculos, o trabalho de escrever a história do sul da Ásia mostra a fatídica tendência de ver o passado pelas lentes da religião – sobretudo o Hinduísmo e o Islã, as religiões quase sempre vistas e apresentadas como essencializadas, fora do tempo e presas numa oposição binária, ou em relação de mútua hostilidade.

Sheldon Pollock
Para sugerir abordagem radicalmente diferente na teorização desse espaço cultural, Sheldon Pollock cunhou recentemente a expressão “cosmópolis sânscrita”, que designa o vasto cenário geográfico de cultura índica que se estendeu, do século 4 ao século 14, do Afeganistão até o Vietnam.

Para Pollock, o que caracteriza essa cosmópolis foi não a religião, mas as ideias elaboradas no próprio corpus de textos sânscritos, os quais, por mais de um milênio, circularam através e acima do mundo vernacular das línguas [o órgão da fala: no orig. tongues (NTs)] na região.

Esses textos abraçavam tudo, de regras de gramáticas a estilos de reinados, arquitetura, comportamento recomendado, objetivos da vida, regulação da sociedade e a aquisição de riqueza e poder. Fundamentalmente, a cosmópolis sânscrita tratava, sobretudo, de definir e preservar a ordem moral e social, mas sem privilegiar nenhuma comunidade religiosa ou étnica particular.

De crucialmente importante, que se expandiu por grande parte da Ásia, não pela força das armas, mas por imitação, e sem quaisquer centro de governo ou fronteiras fortificadas. Quanto a isso, se compara ao mundo helenizado, que envolveu a bacia mediterrânea e o Oriente Médio depois de Alexandre o Grande.

Quanto à Índia, pelo menos, historicamente, Pollock só teorizou uma instância dessa formação transregional. Porque a cosmópolis sânscrita antecipou em cerca de 500 anos o advento de outro fenômeno similar, uma “cosmópolis persa”, que se expandiu por grandes porções da Ásia Ocidental, Central e do Sul, mais ou menos do século 9 ao século 19.

Mapa político da região considerada
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Esses dois modelos de cultura cosmopolita exibiram paralelos impressionantes. Ambos se expandiram e floresceram até bem além das respectivas terras originais, dando às duas culturas um traço transregional – de fato, um traço de “lugar nenhum” [orig. placeless]. Os dois modelos têm seus fundamento numa língua e literatura de prestígio que conferiam status de elite aos falantes e leitores. Ambos articularam o poder sobre o mundo – especificamente, o domínio universal. E, embora as duas cosmópolis tenham elaborado, discutido e criticado tradições religiosas, nenhuma estava plantada sobre alguma específica religião, e, bem diferente disso, adotavam ponto de vista distanciado, “superior” a tudo que todas as religiões pregavam.

Mas o que, exatamente, foi a “cosmópolis persa”? Depois da conquista do planalto iraniano, no século 7, a recusa dos iranianos a permanecer sob governo e cultura árabes resultou em tentativas para recuperar uma civilização rica, mas submergida, persa pré-islâmica – movimento que levou, na dimensão linguística, à emergência do [idioma] novo persa.

Mapa do Irã destacando o Curasão
Esse idioma apareceu primeiro como lingua franca falada em todo o planalto iraniano. Em meados do século 10, surgiu uma forma escrita, derivada de uma escrita arábica modificada, quando escritores persas no Curasão – nordeste do Irã, oeste do Afeganistão e Ásia Central – começaram a apropriar-se de uma herança híbrida do Islã árabe e do Irã pré-islâmico.

De início, pelo menos, o patrocínio da corte – a saber, a corte da dinastia samanida dos reis do Curasão (819-999) – teve importante papel nesses desenvolvimentos. Com base em Bukhara (no sul do Uzbequistão), a corte samanida controlava as grandes rotas comerciais que conectavam o planalto iraniano com a Índia para o sul, a Ásia Central turca para o norte e, pela Rota da Seda, com a China, para o leste. Bukhara era pois uma vibrante zona de comércio, onde se falavam muitas línguas.

À altura do século 14, contudo, em toda uma vasta porção do território entre a Anatólia e o Leste da Ásia, o novo persa já se tornara prestigiada língua literária, principal veículo usado pelas burocracias estatais e língua de contato usada na diplomacia interregional. Na China, serviu não só como lingua franca, mas também foi o idioma oficial durante os séculos 13 e 14. Marco Polo usou predominantemente o persa na China e, de fato, em todas as suas viagens pela Rota da Seda.

Rota da seda de Marco Polo (marítima e terrestre)
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O que explica esse notável desenvolvimento? Um dos fatores foi o ambiente cosmopolita no qual o idioma novo persa fora incubado. O Khurasão na era samanida não era diverso apenas em termos linguísticos, mas também em termos religiosos, com comunidades de cristãos, zoroastristas, judeus, budistas, pagãos e xamanistas, todos convivendo com muçulmanos xiitas e sunitas.

O novo idioma, assim, serviu como denominador comum linguístico, numa sociedade multiétnica. Além disso, dado que não servira como veículo para nenhum tipo de liturgia ou escritoras sagradas, o novo persa não implicava nenhum ameaça ideológica ao árabe – a língua dos islamistas vitoriosos no século 7, no Irã.

A poesia persa também teve papel importante na difusão da cosmópolis persa, especialmente o grade poema épico do Irã, Shahnama. Iniciado no final da dinastia samanida e completado em 1010, o épico de Firdausi, com cerca de 60 mil dísticos rimados, canonizou conscientemente a história dos reinos iranianos pré-islâmicos.

Mahmud de Ghazni
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Como a língua na qual foi composto, o Shahnama tampouco ameaçava o sentimento árabe ou islâmico; ao contrário, elogiava o monarca reinante Mahmud de Ghazni (997-1030) como alguém em que se combinaram, somando-se, as virtudes de soberanos iranianos e islâmicos.

Também assimilava o ethos guerreiro dos turcos da Ásia Central e a herança da civilização grega. Nas mãos de Firdausi, o próprio Alexandre foi convertido em grande rei iraniano; sua mãe, em princesa iraniana; e os heróis pré-Zoroastro foram preservados como análogos aos deuses védicos indianos. No Shahnama, em resumo, acomodaram-se umas às outras as culturas grega, turca e indiana.

Como acontecia com textos escritos em sânscrito, que circulavam livremente por todo um vasto território, depois do século 11 textos escritos em novo persa viajaram distâncias surpreendentemente longas, saltando por cima de fronteiras étnicas e políticas, além de ultrapassar inúmeras fronteiras naturais. A produção de literatura persa tampouco teve algum epicentro geográfico único, nem depois que os mongóis invadiram o Khurasão, no século 13.

Povos em regiões como o Cáucaso ou o Sul da Ásia ainda conservam em seus idiomas locais, cultivando-os e também produzindo, grandes trabalhos de literatura persa. “Contadores” tamiles e malaios do popular One Thousand Questions apresentam o texto como de origem persa, que pode ser rastreada até o sul da Índia do século 16. Assim também, romances persas como o Haft Paykar de Nizami Ganjavi (m. 1209) foram traduzidos no século 17 para o bengalês para os reis de Burma [hoje Myanmar] da costa Arakan.

Por essa via, formas vernacularizadas da cosmópolis persa viajaram para os mundos burmeses e malaios do sudeste da Ásia. A portabilidade da literatura persa por todo esse vasto espaço geocultural foi mais uma dimensão da cosmópolis persa que, também essa, tem perfeito paralelo com a cosmópolis sânscrita que a precedera.

No plano político, o mesmo ambiente que nutrira o uso literário e burocrático do idioma novo persa – o ambiente culturalmente diversificado dos séculos 9 e 10 no Khurasão – também modelou uma concepção específica do “governante do universo”, o “sultão”.

Concebida para ocupar um espaço político que ficava além e acima de todos os grupos étnicos e todas as comunidades religiosas, essa figura era entendida não como apenas universal, mas, sim, como verdadeiramente suprema. Nos séculos 9 e 10 no Khurasão da dinastia dos samanidas, onde se estavam revivendo memórias do Irã pré-islâmico, os sultões tinham poderes de soberanos universalistas que, antes, já apareceram associados aos imperadores persas pré-islâmicos.

Essa concepção acompanhava a ideia da cosmópolis persa, que resistia contra qualquer reivindicação de território soberano. O mesmo, vale lembrar, aplicava-se também à cosmópolis sânscrita. Assim como os sultões de Delhi apresentavam-se como “senhores da superfície da Terra”, os maharajas indianos apresentavam-se, quase todos, como “asilo do mundo inteiro”.

Ibn Balkhi
Ainda mais significativo, já no século 12, o historiador iraniano, Ibn Balkhi revelou uma separação, de fato já existente, entre religião e estado. Escreveu que o reinado no Irã pré-islâmico baseava-se no princípio supremo da justiça, e que todos os reis daquela era transmitiam como lição ao herdeiro coroado a seguinte máxima:

Não há reino sem exército, nem exército sem riqueza, nem riqueza sem prosperidade material, nem prosperidade material sem justiça.

Vê-se bem que se trata de esquema globalizante: economia, moralidade e política, todas integradas num só ideário coerente. Chama a atenção também o lugar central que o autor dá à ideia de justiça – e que não se faz aí qualquer referência a Deus ou à religião. Como ideologia de governo, essa fórmula viria a ser tema sempre recorrente no mundo que falava persa, repetida com apenas pequenas variantes por legiões de autores de literatura cortesã.

Assim também, uma ideologia de governo que também acomodava-se à diversidade cultural e focava o princípio da justiça facilitou a incorporação da Índia na cosmópolis persa. Por um lado, aquela ideologia persa de inclusão dos diferentes era útil para governar uma sociedade do norte da Índia, ela também extraordinariamente diversa em termos de religiões, idiomas e arranjos sociais.

Por outro lado, em 1206, apenas poucas décadas depois que os mongóis na Ásia Central e no Irã produziram um holocausto e muitos milhares de refugiados turcos e iranianos, já havia um estado persianizado estabelecido no coração da planície indiana. Foi o sultanato de Delhi (1206-1526), que herdou as tradições e ideologias de governo do persianato, as quais, por sua vez, haviam prosperado no Curasão dos governantes samanidas.

A existência desse sultanato permitiu que os que fugiam das invasões mongóis migrassem da Ásia Central e do Irã para o norte da Índia, onde foram recebidos por funcionários do sultanato. Naturalmente, esses refugiados implantaram na Índia o conjunto completo da cultura persa que traziam da Ásia Central e do Irã.

O aspecto talvez mais notável da cosmópolis persa, contudo, é a rapidez com que suas ideias centrais difundiram-se para territórios ainda mais remotos, além das fronteiras de estados persianizados como o sultanato de Delhi. Uma ideia-conceito claramente persa, que privilegia a noção de justiça e a conecta à economia, à moralidade e à política, já chegar à Índia peninsular, quando aquela região ainda era governada por soberanos hindus. 

Baddena (poeta telugo)
Em algum momento no século 12 ou 13, o poeta telugo Baddena, que vivia na corte Kakatiya em Warangal, escreveu os seguintes, surpreendentes versos:

Para conseguir riqueza: que o povo prospere. Para o povo prosperar: o instrumento é a justiça. O, Kirti Narayana! A justiça é o tesouro dos reis.

São linhas que revelam claramente a influência do mundo do persianato, porque o conceito de justiça como principal patrimônio dos governantes absolutamente não aparece nos escritos do pensamento político em sânscrito. E sobretudo: como na cosmópolis sânscrita, essas são ideias tomadas por empréstimo cultural; jamais foram impostas.

Além da ideologia política, outros itens componentes da cosmópolis persa também chegaram até a Índia e ali se disseminaram depois do século 13, entre os quais arquitetura, vestiário, comportamento na corte, culinária e, especialmente, palavras.

Assim como se expandia o alcance geográfico das letras persas, assim também se expandiu a produção de dicionários, cujos compiladores tinham a tarefa de tornar legível e compreensível para todos toda a literatura produzida em diferentes pontos do mundo persa. A partir do século 14, começaram a ser produzidos dicionários na Índia. Esses dicionários e respectivos construtores geraram equivalentes às palavras persas não só nas línguas da Índia, mas também em turco, pashtum, aramaico, grego, latim e siríaco.

Império Mughal (Índia)
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Entre os séculos 16 e 19, a maior parte de todos os dicionários de língua persa eram produzidos na Índia. A partir do século 14, a língua persa já se generalizara e era a mais usada para os contatos diplomáticos e de governo em todo o subcontinente, com muitos indianos empregados nas burocracias judiciária e financeira no sultanato de Delhi, mais tarde, no império Mughal (1526-1858) e nos estados que o sucederam.

Resultado desse processo, palavras em persa infiltraram-se no vocabulário de praticamente todas as grandes línguas regional do Sul da Ásia. Línguas vernaculares como o bengalês ou o telugu são fartas em palavras persas, não só na comunicação oficial, mas também no comércio, literatura, culinária, música, tecelagem e tecnologias de todos os tipos.

Para concluir, ao mesmo tempo em que partilhou tantos traços em comum com a cosmópolis sânscrita, a cosmópolis persa, diferente nisso da índica, apropriou-se de culturas anteriores cosmopolitas culturalmente prestigiadas – o Irã pré-islâmico, o Islã árabe e o helenismo. Assim sendo, quando o Islã como sistema religioso difundiu-se pelo norte da Índia e Deccan, ele avançou como que encapsulado no interior de um barco muito maior, da tradição e da história persa.

De tudo isso, o mais crucialmente importante é o caráter não religioso dessa cosmópolis persa mais ampla que permitiu que não muçulmanos tão rapidamente assimilassem muitos de seus aspectos. Por mais que seja clara, muitos estudiosos modernos parecem não se dar conta dessa peculiaridade. E continuam a ler a história do sul da Ásia pelas lentes estreitas da religião e, em particular, do confronto entre hinduístas e muçulmanos. E assim perpetuam os tropos do despotismo oriental do século 19; os tropos do “choque de civilização” do século 20; ou as ansiedades ocidentais do século 21, em torno do ativismo islamista.



[*] Richard Eaton é professor de História na University of Arizona. É autor, dentre outros livros, de Slavery and South Asian History (Indiana University Press) e Islamic History as Global History (American Historical Association).

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