terça-feira, 30 de julho de 2013

Golpe no Egito: “No Cairo, lendo Marx”

29/7/2013, Kaveh L Afrasiabi, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O gigante pressupõe o anão. Cesar, o herói, deixou atrás de si um Otaviano... (Karl Marx)

Kaveh L. Afrasiabi
Quando o novo homem forte do Egito, general Abdel Fattah al-Sisi, convocou seus apoiadores para que manifestassem sua solidariedade ao Exército na 6ª-feira (26/7), 57º aniversário da nacionalização do Canal de Suez, ato do carismático Gamal Abdel Nasser, minha reação instintiva foi correr à prateleira, para reler O 18 de Brumário de Luis Bonaparte, de Karl Marx, em homenagem à analogia histórica. 

No livro de Marx, tem-se um modelo de análise de repetições históricas (a segunda vez, como farsa), que surge da comparação entre o golpe na França em dezembro de 1851 (orquestrado por um sobrinho do grande Napoleão, e o qual, embora sem ter nem uma mínima fração do gênio do tio, se autodenominou Imperador Napoleão III). Do ponto de vista de Marx, o golpe de 1851 foi uma caricatura do golpe de Napoleão em 1799 – devida, sobretudo, à “grotesca mediocridade” do sobrinho.

Abdel Fattah al-Sisi, o neopinochet 
Na comparação, o general Sisi, cujos atiradores assassinaram a sangue frio dúzias de manifestantes no Cairo e em outras cidades naquela 6ª-feira (26/7/2013), não chega a ser nem cópia pálida do Nasser pan-arabista, que pôs fim a 72 anos de dominação britânica no Egito e, assim, se tornou herói do anticolonialismo pós-Segunda Guerra Mundial. Sisi, não. Sisi mostra-se, a cada dia, mais e mais parecido com um neo-Augusto Pinochet, em tudo semelhante ao que Friedrich Engels, camarada de Marx, escreveu de Napoleão III: “o sargentinho e seu bando de marechais”.

Mohamed Mursi
Desde a derrubada do presidente Mohamed Mursi, dia 3 de julho, Sisi, o novo imperador do Egito, vem decaindo pela trilha dos ditadores mais brutais, mostrando pouca ou nenhuma piedade ou respeito pelos adversários, pronunciando discursos sombrios sobre “enfrentar o terrorismo”, desculpa capenga para disparar sem qualquer limite o seu reinado de terror, contra as vastas porções da população que se opõem ao golpe militar.

Por ironia, Sisi quer vencer em todas as frentes e a qualquer custo: quer obter a legitimidade, associando-se ao orgulhoso legado de Nasser, ao mesmo tempo em que ataca o presidente Mursi, deposto por fazer precisamente o que Nasser fez em meados dos anos 1950s: promulgar uma nova Constituição que centralizava o poder monopolizado, em suas mãos autoritárias.

Já não há dúvida alguma de que Sisi e seus co-conspiradores calcularam mal a extensão da oposição popular ao golpe contra Mursi – tacitamente aprovado por Washington, como se comprovou no empenho do presidente Obama dos EUA para não chamar o golpe, de “golpe”; no não tomar nenhuma providência para impedir o golpe; e no movimento de, sem um segundo de hesitação, anunciar que não haveria qualquer interrupção na ajuda militar e na venda de armas ao Egito.

Pseudo Nasser”

John Kerry
“Nenhuma lei nos obriga a dizer golpe ou qualquer outra coisa” – disse um porta-voz do governo dos EUA, frase dúbia e posição duvidosa que zombam da lei norte-americana e da responsabilidade legal e ética dos EUA. A lei norte-americana muito claramente proíbe que países vítimas de golpes de Estado recebam ajuda humanitária e inventar exceções a essa regra é desenvolvimento doentio que não augura qualquer boa notícia para o futuro das relações entre EUA e mundo árabe. O secretário de Estado dos EUA, John Kerry, que não se deu sequer o trabalho de dar um telefonema aos generais egípcios integrados à lista de pagamento do Departamento de Estado, para desestimulá-los de insistirem no golpe que estava em curso, vive agora a gemer que o Egito está “à beira do abismo” e suplicando que todos os partidos retrocedam.

O que se vê aí é diplomacia de má qualidade, diplomacia inepta, orientada pelo velho vício imperial de controle e dominação, que já não oferecia qualquer garantia a partir do momento em que as urnas levaram Mursi e sua Fraternidade Muçulmana ao poder. Não surpreende que a desculpa que mais se ouve, para justificar o golpe, seja a “estabilidade” num país geoestrategicamente importante. De fato, o que se tem aí é o reflexo da velha húbris imperial, que errou seus cálculos e avaliou mal o desejo popular e a rejeição a qualquer golpe, também entre egípcios que pouco têm a ver com a Fraternidade Muçulmana. Resultado disso, a coalizão chefiada pela Fraternidade contra o golpe vai-se tornando mais forte a cada dia – como reação vital direta à repressão brutal que Sisi desencadeou e comanda. Falta a Sisi o horizonte intelectual dos nasseristas, que agiram segundo uma dialética interna da história egípcia.

Esse pseudo-Nasser, consumido integralmente pelos inimigos internos, opera como força de desagregação social, de desunião e discórdia, assegurando o resultado mais catastrófico. As forças seculares nacionalistas e liberais que o apóiam condenam-se a perder a própria legitimidade apenas por se aproximarem dos golpistas e desse neo-pinochet do Cairo, cujo discurso a favor da “unidade nacional” jaz afogado no fundo do Nilo. Ainda não se sabe o que o futuro reserva ao Egito, mas o lugar do general Sisi na lista dos líderes de farsa da narrativa que Marx construiu já está selado. “Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre, a Montanha de 1848 a 1851 pela Montanha de 1793 a 1795, o sobrinho pelo tio” – Marx escreveu; e a mesma caricatura aplica-se nas circunstâncias dessa recente edição de mal disfarçada neoditadura militar no Egito.


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