19/7/2013, [*] M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Durante
a reunião do Grupo dos Oito na Irlanda do Norte, mês passado, o presidente
Vladimir Putin da Rússia, segundo o diz-que-disse dos bastidores diplomáticos,
quis usar o ginásio para exercitar-se, no resort Enniskillen. Não
conseguiu, porque Barack Obama já o havia requisitado.
Putin nadando no Lough Erne (Irlanda do Norte) numa folga da última reunião do G8 |
Nenhum
dos dois gostaria de partilhar os aparelhos, e Putin optou por um mergulho e
braçadas no gelado Lough Erne, aventura excessiva para os músculos e histamina
de Obama. É possível que sejam só bobagens, mas a historieta captura a situação
incômoda em que estão, hoje, as relações Rússia-EUA.
Se
a ninguém ocorrera que a clara linguagem corporal na reunião em Enniskillen
revelava que as relações EUA-Rússia atingiam ali o ponto mais baixo em muitos
anos, o caso de Edward Snowden, ex-funcionário e “vazador” de segredos da CIA,
mostra que elas provavelmente piorarão ainda mais, antes de darem qualquer sinal
de melhora.
Na
Irlanda do Norte, Putin e Obama coabitaram numa mesma pequena cidade de
veraneio. Segundo recentes indicações, Obama, irritado com a decisão do Kremlin
de dar abrigo a Snowden, talvez cancele a visita bilateral a Moscou, em
setembro, antes da reunião do Grupo dos 20 em São Petersburgo, que ele mesmo
propôs.
As coisas estão mais frias que as águas do Lough Erne... |
Por
que as coisas chegaram a esse ponto? Em parte, pelo menos, a situação atual foi
provocada por Pequim, querendo ou sem querer, quando meteu Snowden num voo da
Aeroflot para Moscou, já sabendo que, porque Washington revogara seu passaporte,
ele não teria documentos válidos para prosseguir viagem depois que o avião
pousasse no aeroporto em Sheremetyevo.
Fyodor Lukyanov |
Como
Fyodor Lukyanov, figura importante no establishment da comunidade
estratégica russa, observou em artigo no jornal oficial Rossiyskaya
Gazeta na 3ª-feira,
Os
serviços de inteligência da República Popular da China que meteram o americano
num avião para Moscou e o convenceram de que estaria melhor lá merecem todos os
elogios de seus chefes, porque pouparam a Pequim uma grande dor de cabeça. O
resto foi menos bem feito.
Não
há dúvida alguma de que Pequim agiu movida por diferentes motivos, para impedir
que Snowden sequestrasse o nascente Novo Tipo de Relacionamento [orig.
NTR - New Type of Relationship] entre China e governo Barack Obama.
A
China não extraiu bons efeitos de propaganda do caso Snowden, mas conseguiu
livrar-se de ter de tomar decisões difíceis sobre o destino final do americano.
Continua a criticar a Washington a “hipocrisia” de admitir ciberespiongem
massiva, em escala gigante, contra países soberanos, e, ao mesmo tempo, forçou
Moscou a responder a padrões de respeito a direitos humanos muito mais exigentes
que os antes vigentes.
Desnecessária
e mal feita
Mas
a culpa, de fato, foi de Moscou, que errou ao não exercer a opção de deportar
Snowden de volta a Hong Kong quando transpirou que o viajante em trânsito não
portava documentos válidos para prosseguir viagem – que é prática usual e
frequente. Não. Moscou optou por adotar uma saída formal legalista, segundo a
qual Snowden não pisou território russo; e meteu-o sob uma redoma de segurança
desnecessária e mal feita.
A invisível presença de Edward Snowden em Moscou |
Mas,
diferente do total e eficaz voto de silêncio em Pequim, começaram a surgir todos
os tipos de comentários sobre a invisível presença de Snowden em Moscou, de
fontes que iam de funcionários do governo russo a especialistas midiáticos em
geral e políticos conhecidos, o que só conseguiu dar a impressão de que Moscou
estaria num jogo de preliminares íntimas com Washington; e fez subir as
expectativas de que fosse possível acertar algum acordo, talvez, com os EUA.
Por
tudo isso, Moscou não pode agora começar lamentar-se de que Snowden tornou-se
filho não desejado.
Washington,
por sua vez, manteve sempre, consistentemente, a mesma linha, a partir do
presidente Obama – que disse que, de modo algum haveria “manobras e conversas”
com Moscou sobre Snowden; e que a Rússia tinha obrigação de expulsar Snowden que
cometera crime grave conforme as leis dos EUA e teria de ser julgado por
tribunais norte-americanos nos EUA.
William Burns |
Os
EUA também fizeram saber que nenhuma falta de cooperação de Moscou deveria
contaminar negativamente as relações bilaterais.
O
fato de um vice-secretário de Estado de alto nível, William Burns, velho e
experiente operador dos EUA em Moscou, ter sido designado para administrar o
caso Snowden mostra a importância que o governo Obama atribui à missão de tentar
convencer os russos de que o Kremlin tem base legal suficiente e razões práticas
para expulsar para os EUA um fugitivo sem documentos legais para viajar. É o
mesmo que dizer a visita de Burns foi visita política.
Mas
a posição que Moscou adotou é também absolutamente correta e legal. E, além
disso, foi erigida sobre princípios morais “melhores”: a noção de que potência
realmente grande e forte não pode deixar de lado ou desconsiderar as sempre
importantes “considerações humanitárias”.
Acabaram-se
as manobras e conversas
Mas
a Rússia também espera que as relações Rússia-EUA continuem como se nada tivesse
acontecido, tão logo mudem os ventos do interesse midiático, como tantas vezes
aconteceu durante a Guerra Fria, apenas mais um caso a ser resolvido entre os
dois governos. Eis como Lukyanov concluiu seu artigo:
Edward
Snowden muito provavelmente logo obterá asilo temporário na Rússia, como ele
mesmo disse; mas talvez permaneça por muito tempo na Rússia. Porque as
circunstâncias que impedem que volte para casa ou mude-se para algum país da
América Latina não desaparecerão tão cedo. Moscou e Washington têm interesse em
que o caso seja esquecido o mais rapidamente possível e desapareça das
manchetes. Só então será possível discutir tudo sem publicidade indesejada, para
arrancar esse espinho cravado na carne das relações entre os dois
países.
Kurmanbek Bakiyev |
Lukyanov
lembrou uma “solução elegante” construída em 2010 entre EUA e Rússia, quando o
presidente Kurmanbek Bakiyev do Quirguistão foi derrubado e interessava
simultaneamente a Moscou e Washington alocar o deposto chefe de Estado
centro-asiático. Bakiyev, naquela ocasião, foi despachado para Minsk.
O
governo Obama aceitaria alguma espécie de “fórmula Minsk” no caso Snowden? Eis a
grande questão – e parece pouco provável que aceite, porque implicaria
Washington fazer, essencialmente, o que Obama disse que não faria, a saber,
“manobrar e conversar” com Pequim ou Moscou sobre o destino de Snowden.
Portanto,
tudo considerado, aproxima-se uma difícil hora da verdade para Moscou e
Washington no relacionamento pós-Guerra Fria. Para Moscou, nada menos que uma
crise de identidade; para Washington, o que falta é uma sessão de terapia
catártica no divã, que ajude os EUA a se entender melhor.
Para
a Rússia, o caso Snowden exige um reboot na doutrina do Kremlin para a
política exterior. Até aqui, tem sido política exterior carregada de “interesses
nacionais”. Agora, a ideologia volta à cena. Talvez não a ideologia marxista,
mas, ainda assim, uma ideologia humanista que dá primazia a “considerações
humanitárias” na política exterior.
Até
que ponto a Rússia pode praticar um política exterior carregada de ideologia, em
mundo dividido por desigualdades, violência e autoritarismo? Isso é uma coisa.
A
segunda pergunta é se influentes setores das elites russas aceitarão realmente a
situação de serem confinadas a um ostracismo social pelo ocidente, que veem como
seus parceiros naturais no norte?
O
coração da matéria é que a aliança trans-Atlântica está sendo afinal montada,
apesar de um ou outro eventual solavanco, e é questão que fere o orgulho
norte-americano e faz os EUA aparecerem aos olhos do mundo como superpotência
impotente, se os aliados dos EUA não puderem continuar a negociar normalmente
com a Rússia.
Por
outro lado, dada a formação social da Rússia no período pós-soviéticos, é
improvável que a nata das elites moscovitas considere Bolívia ou Equador como
destinos admissíveis para elas mesmas, sendo necessário, em substituição a
Londres ou Zurich.
Isso
nos leva a uma terceira pergunta, que concerne à ordem mundial na qual a Rússia
precisa operar. Que ninguém se engane e suponha que os EUA reagirão
positivamente a qualquer decisão que envolva “asilo” para Snowden – temporário
ou outro. Se acontecer, o que virá?
BRICS |
Até
aqui, toda a trajetória das relações russo-americanas pós-soviéticos tem sido
não confrontacional. Isso pode mudar. E é reflexo da ordem mundial na qual a
Rússia tem de viver que, afinal, três (ou mesmo quatro, se se inclui a África do
Sul) dos parceiros BRICS da Rússia (Brasil, Índia e China) sequer teriam
considerado o curso de ação que Moscou parece estar escolhendo; a saber, dar
abrigo a fugitivo da lei dos EUA, movidos por “considerações humanitárias”.
Reescrever
a história do “velho Boris”
Em
resumo, o caso Snowden exige que a Rússia defina o tipo de relacionamento que
busca com o ocidente. Sim, é verdade, a Rússia está habituada a viver sob
sanções ocidentais; mas naquele tempo era vida difícil não por escolha, mas por
ausência de alternativa. Há limitações inerentes para a renovação e a
globalização da economia russa sem a tecnologia e os investimentos ocidentais –
por mais que se fale da “opção China”, do projeto da União Eurasiana ou da
participação na Organização Mundial do Comércio.
Dito
em palavras mais simples, Washington espera que a Rússia coopere – exatamente
como Espanha, Itália, França e Portugal cooperaram e bloquearam a passagem do
avião do presidente Evo Morales quando houve suspeitas de que Snowden estivesse
a bordo – por mais furiosos que esses países estivessem em relação à
ciberespionagem norte-americana. No mínimo, Washington esperaria da Rússia o
mesmo grau de “pragmatismo”, que Pequim mostrou no caso Snowden.
Pode-se
dizer que a armadilha que o governo Obama pôs no caminho da Rússia parece ser de
a Rússia estar forçada a fazer uma escolha existencial sobre sua própria
identidade e seu próprio papel como grande potência, de alcance e influência
globais.
Bill Clinton e Strobe Talbott |
Não
é justo, porque os EUA até hoje só exigiram e exigiram, no relacionamento com a
Rússia, sem atender nenhum dos pedidos dos russos. Como Bill Clinton disse certa
vez ao ex-vice-secretário de Estado Strobe Talbott, num súbito surto de
honestidade, quando Clinton era presidente e Boris Yeltsin estava no
Kremlin:
Nós
[EUA] nem sempre jogamos muito bem com aquela gente [russos]; nunca pensamos em
um modo de dizer sim a eles, pensando em o quanto, quantas vezes, o quão
frequentemente, quisemos que eles dissessem sim a nós. Só fazemos repetir ao
Velho Boris, “OK, aqui está o que vocês têm de fazer – é mais merda na sua
cara”.
Hoje,
o governo Obama tem de considerar, nesse caso, que a equipe russa de Bill
Clinton ainda continua quase totalmente intacta no circuito de Washington,
apesar de o Velho Boris já ter deixado o Kremlin há 12 anos e seis meses. Dito
em outras palavras, a Rússia não aceitará, dessa vez, “mais merda na cara”.
Se
o governo Obama ainda tem alguma dúvida, as manobras militares das Forças
Armadas russas, sem precedentes, que acontecem essa semana no Extremo Oriente
devem fazer desaparecer qualquer vício de interpretação.
A
Rússia não tem inimigos no Extremo Oriente. Nem a Rússia precisa preparar-se
para qualquer provável guerra contra Japão, China ou Coreia do Norte. Nem seus
famosos bombardeiros estratégicos Tu-95MS estão em prontidão para tarefas em
tempo real.
A
verdadeira mensagem daqueles exercícios militares que terminarão no sábado, que
envolvem 160 mil soldados, cinco mil tanques e veículos blindados de combate,
160 aeronaves e helicópteros de longo alcance, transporte militar, aviação de
combate, de bombardeio e do exército, além de 70 navios e barcos de combate
armados – é que foram ordenados pelo Kremlin em apenas 48 horas, sem qualquer
preparação prévia não rotineira. E aconteceram e foram executados com precisão
de relógio.
Manobras em Tsugol - rápidas e precisas... |
A
presença do presidente Vladimir Putin em Tsugol, no 247º Distrito Militar do
Leste, na 4ª-feira, mostra bem claramente que o Velho Boris já é história. E que
também já é história o triunfalismo dos EUA no período pós-soviético.
Em
resumo, a jogada do “reset” EUA-Rússia, que Obama inventou para seu primeiro
mandato, já esgotou o prazo de validade e já não serve para nada. Nenhum
engajamento seletivo da Rússia será doravante possível ou suficiente. A Rússia
exige parceria compreensiva, entre iguais, baseada em respeito mútuo.
O
caso Snowden é prova de que Washington precisa voltar com urgência à lousa e aos
mapas, e reescrever novo rascunho de suas relações com a Rússia – semelhante ao
Novo Tipo de Relacionamento [orig. NTR - New Type of Relationship], que a China está
exigindo.
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[*] MK
Bhadrakumar foi
diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União
Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão,
Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões
do Afeganistão e Paquistão
e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais The
Hindu, Asia
Times Online e Indian Punchline. É o filho mais velho
de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de
Kerala.
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