10/6/2013, [*] Mark LeVine, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Assumamos,
para argumentar, que o sentinela-apitador [orig. whistleblower ] da
Agência de Segurança Nacional dos EUA Edward Snowden é o personagem que criou
para ele mesmo: não mero patriota, mas um humanista, que se fartou de viver
preso nas armadilhas de uma vida de sucessos, e decidiu que “a federação das
leis secretas, julgamentos sem igualdade de direitos e poderes executivos
absolutos que governam o mundo que eu amo têm de vir à luz, nem que seja só por
um momento”.
Snowden,
29 anos, que vazou para o jornal The
Guardian informações cruciais sobre o governo de vigilância clandestina
que os EUA impõem ao mundo, mediante programas como PRISM e o “Informante Sem
Limites”, acerta, com certeza, ao lançar luz sob o perigo que são as políticas
de vigilância impostas ao mundo pelo governo Obama e a “guerra global ao terror”
à qual servem aquelas políticas, e perigo não só para a democracia
norte-americana mas, igualmente, para “o mundo inteiro”.
Os
EUA engajaram-se numa jihad de proporções globais, não apenas nos dez
últimos anos, mas, de fato, há mais de um século. Como em todos os impérios, no
islâmico também, a jihad dos EUA começou pequena, mas rapidamente se
expandiu, a partir do momento em que as condições políticas e econômicas que
habitavam no coração do projeto e nas periferias afinal entraram no alinhamento
adequado.
Josiah Strong Clique na imagem para ler |
Como se viu em outros impérios, os
jihadistas norte-americanos buscaram suas raízes nas ideologias mais agressivas,
que justificaram a disseminação, apresentada simultaneamente como inevitável e
boa, enquanto – e não surpreende que assim tenha sido – apresentavam as
oposições como irracionais, más e condenadas justamente a serem suprimidas pelos
meios necessários. Como disse no século 19 o pregador protestante e
arqui-imperialista Josiah Strong, o emergente império
norte-americano era destinado por Deus a governar a Terra, e o resto do mundo
que se preparasse para “pronta
e submissa assimilação”, ou
seria “extinto”. Pelo menos na retórica, os grandes conquistadores islâmicos
sempre tenderam a ser, no mínimo, mais generosos que isso.
Claro
que os líderes norte-americanos sempre cuidaram de declarar a melhor das
intenções, enquanto iam ocupando novos territórios, entrepostos ou esferas de
influência, mesmo que a coluna de cadáveres de colonizados só aumentasse, já
alcançando a casa dos muitos milhões, resultado da avançada para expandir,
manter e defender o império norte-americano. As linhas entre jihad de
defesa e jihad de ataque – e os EUA, como muitos países antes deles,
desde sempre defenderam suas guerras como guerras de defesa, sancionadas por
Deus e justas “em si” – foram sempre convenientemente confundidas. “Converter
infiéis” – pela espada ou pelo napalm, sempre foi ação inseparável de
proteger as fronteiras do império.
Para
garantir que o povo norte-americano visse as aventuras externas de seus governos
sob a luz adequada, era normal que o inimigo fosse definido como o contrário de
tudo que os EUA defendiam, e como ameaça mortal ao modo de vida e, até, à
existência dos EUA.
E
é também verdade que, assim como no apogeu dos grandes impérios muçulmanos, e
nos dias do pós-guerra e auge do poder dos EUA, a vida, sob o guarda-chuva
imperial, quase sempre se comprovou muito melhor que as alternativas – pelo
menos para os aliados íntimos e para os que viviam em semi (e, portanto, ainda
não absolutamente exploráveis) periferias.
A
ascensão do neoliberalismo
Mas
essa dinâmica mudou, com a emergência do capitalismo neoliberal como forma
dominante da organização econômica, política e até cultural nos anos 1970s – não
só no chamado “terceiro” mundo, mas também nos países centrais do “ocidente”. O
neoliberalismo criou uma dinâmica de neocolonização dentro dos EUA e de outros
países “maduros”, tanto quanto no mundo em desenvolvimento, com o capitalismo –
mais uma vez! – tornando-se tão predatório dentro das fronteiras
norte-americanas, quanto longe delas. Cá e lá se assistiu a um crescimento
econômico feito pela concentração sempre maior do poder das corporações e à
custa de continuado crescimento da pobreza e da desigualdade.
As
empresas titãs, que já dominavam a economia dos EUA e sua respectiva cultura
obcecada por celebridades – “gênios” da tecnologia e czares do complexo
industrial-militar – são, como se deveria esperar que fossem e não surpreende
que sejam, precisamente as mesmas empresas que vivem hoje amancebadas no mesmo
leito com os programas que Snowden revelou ao mundo.
Panopticon - tal como foi concebido no século XVIII por Jeremy Bentham |
O desejo dos EUA de estabelecer a
“dominação
de pleno espectro” sobre
todos os negócios do mundo, imediatamente depois do colapso do bloco soviético,
militarizou-se definitivamente depois do 11/9/2001. A “Guerra ao Terror” – a
jihad essencialmente ofensiva e automaticamente “justificada” – ofereceu
a justificativa básica para a ânsia de acumular cada vez mais poder, poder
“panopticônico”, como Snowden o descreveu, recolhendo a análise que Michel
Foucault desenvolvera, de uma máquina radical de controle político criada por
Jeremy Bentham no final do século XVIII.
Michel Foucault |
Essa
aparente dominação, ou, no mínimo, a ideia dessa dominação, converteu-se em
componente núcleo de todo o aparato de inteligência dos EUA, produzindo visível
maioria de relatórios de inteligência, que viria a alimentar o processo diário
de tomada de decisões políticas ao longo dos anos, a partir da constituição e
utilização dos programas que Snowden revelou.
É
nesse ponto que a ideia de jihad torna-se relevante para a história de
Snowden. Assim como todas as doutrinas da guerra são usadas e abusadas por seus
expoentes, assim também a jihad foi usada e abusada por muçulmanos desde
sempre, desde que existe o conceito. Mas, ainda assim, o conceito é altamente
relevante na situação na qual, num certo momento, gente como Snowden, Bradley
Manning e outros “sentinelas-apitadores” de consciência [orig.
whistleblowers] descobrem-se enredados.
O
conceito de jihad tem raízes – tanto gramaticais quanto teológicas – no
conceito de luta e empenho pessoal e comunitário pelo aprimoramento.
É
verdade que, no período clássico do Islã, essa conotação estava ampla e
diretamente associada à guerra, e incontáveis intelectuais islamistas, ao longo
das eras, tenderam a desqualificar a interpretação segundo a qual o Profeta
Maomé estabelecia diferenças entre uma jihad menor (violenta) e uma
jihad maior (espiritual/pessoal). Mesmo assim, na era moderna, a noção de
jihad “da língua” ou “da pena”, assim como a ideia de jihad
como jornada pessoal e comunitária para o aperfeiçoamento,
tornou-se cada vez mais importante em várias linhas do discurso político
muçulmano. Essa interpretação chegou até a ser usada para justificar e
explicar os levantes árabes, como
brotaram, inicialmente – em modalidades relativamente não violentas – na Tunísia
e no Egito.
A
explicação de Snowden para suas ações deixam entrever alguém que perdeu toda a
fé no sistema para sanar injustiças mediante meios democráticos, legislativos,
normais. Como disse em entrevista
ao The Guardian, ele
esperou durante anos que os líderes políticos dessem atenção à tendência
potencialmente fatal de esterilizarem-se todas as principais liberdades
constitucionais. Até que, afinal, se deu conta de que:
(...)
não se pode viver à espera de que outros
ajam. Eu esperei que os políticos agissem. Mas acabei por perceber que liderança
só tem a ver com ser o primeiro a fazer alguma coisa.
BradleyManning Edward Snowden |
Como
Bradley Manning, talvez com mais sofisticação, Snowden percebeu que o único modo
de existir num estado dedicado a assaltar todas as liberdades civis dos cidadãos
teria de ser, bem literalmente, declarar sua pessoal jihad contra aquele
estado.
Uso
aqui o termo jihad, em vez de guerra, porque Snowden, claramente,
não declarou guerra alguma; não está usando nenhum tipo de violência contra o
estado norte-americano. De fato, é exatamente o oposto disso.
Mas
Snowden retirou-se, afastou-se completamente, do campo da ordem e do poder do
estado ao qual, literalmente, ele jurara fidelidade; pôs-se fora do alcance das
leis daquele estado, e, essencialmente, declarou jihad moral, política e
ideológica contra todas as mais importantes políticas daquele estado. Nesse
sentido, há muito de traição em suas ações – mas só trai um sistema que, ele
próprio, e essencialmente, já traiu os cidadãos e já declarou guerra contra
todos os mais altos ideais, sem os quais já não há Estados Unidos da América.
Que
Snowden tenha declarado sua jihad pela pena e pela
língua, não pela proverbial espada, combina muito bem com uma interpretação
moderna/progressista de jihad, e o põe, com honra, no campo da vanguarda
da Primavera Árabe – de todos que se recusaram a participar de um sistema que,
afinal, perceberam como irremediavelmente fracassado. Como o próprio Snowden
disse:
O
governo atribui-se um poder que não tem direito de exercer. Não há supervisão
pública. O resultado disso é que gente como eu tem espaço para ir muito além do
que lhe é permitido ir.
É
claro que o governo Obama dirá que Snowden não tem o direito de se autoatribuir
esse tipo de poder. Só líderes eleitos teriam esse poder, em sociedade
democrática. E, como todos, do diretor da Segurança Nacional aos deputados e
senadores das comissões de Inteligência já estão argumentando, por menos que
gostemos das tais políticas, todas elas foram legitimamente votadas e aprovadas
pelos legítimos representantes do povo dos EUA.
Jim Sensenbrenner |
Talvez até seja verdade, embora,
como Jim Sensenbrenner, congressista e principal autor da Lei Antiespionagem
[orig. Patriot Act] (documento que dá base legal para toda a vigilância
clandestina que Snowden revelou) argumenta, o que está sendo feito, de fato,
implica “abuso
da lei”
e
está sendo feito sem consulta à maioria dos representantes do povo no Congresso.
Mas o que Snowden e Manning afinal perceberam é que o sistema está tão grave e
perigosamente fraturado que teriam de se autossacrificar, eles mesmos, se
preciso fosse, para fazer parar o crime repetido. Porque não poderiam continuar
a viver, eles com eles mesmos, se não agissem como agiram.
Alguns
poucos homens valentes
É
altamente instrutivo que a coragem de uns poucos homens valentes como Bradley
Manning e Edward Snowden tenha causado maior dano à hegemonia do poderoso e
sempre bem entrincheirado aparato de guerra dos EUA, que até hoje ninguém
conseguiu ameaçar tão gravemente quanto eles, que legiões de soldados da
al-Qaeda, inspirados por ela, ou de terroristas treinados. A verdade é que
Snowden não se deixou intoxicar pelo gigantesco poder que tinha ao alcance dos
dedos. Em vez disso, cuidou de selar a fonte – e essa é ação de altíssimo
potencial revolucionário, a ser aprendida por outros que queiram seguir seu
chamado. Snowden é jihadista autêntico, grande homem de jihad
profunda.
Se
dois trabalhadores relativamente inferiores na hierarquia da inteligência, como
Manning e Snowden, têm acesso a informação tão crucial para tantas das políticas
do governo de seu país, e às mentiras e meias verdades sobre as quais aquelas
políticas baseiam-se, imagine-se o que podem fazer 20 ou 200 Snowdens, 20 ou 200
Mannings. Podem, sim, arrancar milhões de norte-americanos dos seus sofás e
pô-los nas ruas, a exigir o tipo de reforma política para a qual, até hoje,
nenhum político foi realmente empurrado, queira ou não queira reformas.
Ninguém
é obrigado interpretar como jihad a luta de Snowden, mas, depois de mais
de uma década de desastrada e sangrenta “guerra ao terror” contra o mundo
muçulmano, jihad é uma bela palavra para definir esse tipo de decisão
político-pessoal vital.
Escolha-se,
para definir, qualquer outra palavra, e nada muda: esses dois homens mostraram
ao governo, à inteligência norte-americana, às burocracias militar e empresarial
em todo o mundo que, sim, eles também têm voz e têm escolhas. Que absolutamente
não estão condenados a viver como parafusos de uma máquina de opressão. Que
obedecer a governo opressor não é a única escolha que resta a ninguém – por mais
alto que seja o preço a pagar.
Resta-nos
esperar que mais alguns bravos, pelo menos, se inspirem na ação de Manning e
Snowden, esses dois pioneiros.
[*] Mark
LeVine é professor de história do
Oriente Médio na Universidade da Califórnia-Irvine e professor visitante ilustre
no Centro de Estudos do Oriente Médio na Universidade de Lund, na Suécia e autor
do livro sobre as revoluções no mundo árabe: The Five Year Old Who Toppled a
Pharaoh
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