27/8/2013, [*] Pepe
Escobar, Asia Times Online –The roving Eye
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
A
doutrina da “responsabilidade de proteger” [orig. responsibility to
protect (R2P)] invocada para legitimar a guerra de 2011 contra a
Líbia acaba de metamorfosear-se em “responsabilidade de atacar” [orig.
“responsibility to attack'” (R2A)] a Síria. Só porque o governo Obama
disse.
No
domingo, a Casa Branca disse que tinha “muito pouca dúvida” de que o governo de
Bashar al-Assad usara armas químicas contra seus próprios cidadãos. Na 2ª-feira,
o secretário de Estado aumentou para certeza “inegável” – e acusou Assad de
“obscenidade moral”.
Implica
que quando os EUA bombardearam Fallujah com fósforo branco no final de 2004
seria bombardeio moral. E quando os EUA ajudaram Saddam Hussein a atacar os
iranianos com gás em 1988, teria sido gaseificação moral.
O
governo Obama resolveu que Assad recebeu os inspetores de armas químicas da ONU
na Síria e em seguida, para comemorar a chegada deles, desfechou ataque com
armas químicas contra, na maior parte, mulheres e crianças, a apenas 15 km do
hotel onde os inspetores estavam hospedados. Se você não acredita, é porque
embarcou em teorias conspiratórias.
Provas?
E quem precisa de provas? A autorização que Assad deu aos inspetores veio “tarde
demais”. Além do mais, a equipe da ONU só tem mandado para determinar quais
armas químicas foram usadas – mas não quem as usou – como disse o porta-voz de
Ban Ki-moon, Secretário-Geral da ONU.
Barack Obama |
No
que tenha a ver com o governo Obama e com o primeiro-ministro da Grã-Bretanha,
David “das Arábias” Cameron – apoiados numa barragem de mísseis da
imprensa-empresa – nada disso importa. Assad invadiu a “linha vermelha” de
Obama. E ponto final. Washington e Londres estão em modo frenesi-sem-limites
para desmentir qualquer fato que contradiga a decisão. Reina o duplifalar – tipo
“responsabilidade para atacar”. Se só se veem semelhanças com Iraque 2.0, é
porque é tudo igual. Tempos de consertar os fatos, alinhando-os à política, tudo
outra vez.
Tempos
de armas de enganação em massa, tudo outra vez.
O
eixo de gracinhas saudita-israelenses
A
janela de oportunidades para a guerra é já. As forças de Assad avançam, de
Qusayr a Homs; expulsam da periferia de Damasco os “rebeldes” remanescentes;
implantam-se nos arredores de Der’ah onde contra-atacam os “rebeldes” treinados
pela CIA que recebem armas avançadas, pela fronteira Síria-Jordânia; e organizam
o assalto para expulsar “rebeldes” e jihadis dos subúrbios de Aleppo.
Ah!
Israel e Arábia Saudita mal se aguentam de tanta excitação, porque estão
conseguindo exatamente o que buscavam, só com os bons velhos métodos de
Rabo-Balança-o-Cachorro. Telavive até telegrafou, para dizer como quer que a
coisa seja feita: na 2ª-feira, o jornal Yedioth Ahronoth estampou
manchete: “A caminho para atacar”; e até ensinou a Ordem de Batalha ideal:
Há
meses, até o Diretorado de Inteligências das Forças Armadas de Israel, AMAN
[orig. Intelligence Directorate of the Israeli Defense Forces (IDF),
AMAN] já concluíra que Assad não seria doido a ponto de cruzar a “linha
vermelha” de Obama. Então, inventaram o conceito de “duas linhas vermelhas
entrecruzadas”: a segunda linha seria o governo sírio “perder controle sobre
seus depósitos e centros de produção de armas químicas”. E a inteligência
israelense propôs outras estratégias a Washington, de uma zona aérea de
exclusão, até o sequestro das armas (que implicaria ataque por terra).
Hoje
se volta à opção número 1: ataques aéreos aos depósitos de armas químicas. Como
se EUA – e Israel – tivessem informação atualizada minuto a minuto sobre onde
exatamente se localizam os tais depósitos.
Bandar bin Sultan |
A
Casa de Saud também telegrafou seus desejos – depois que o príncipe Bandar bin
Sultan, codinome “Bandar Bush”, foi nomeado pelo rei Abdullah para chefiar a
inteligência geral saudita. A fúria de Abdullah explica-se: a mãe dele e duas de
suas esposas são filhas de uma tribo sunita ultraconservadora, da Síria. Quanto
a Bandar Bush, tem mais vidas que Rambo ou o Exterminador: está de volta ao
mesmo papel que desempenhou nos anos 1980s, na jihad afegã, quando era o
garoto de recados, ajudando a CIA a armar os “combatentes da liberdade” do
presidente Ronald Reagan.
A Jordânia – uma ficção de país,
totalmente dependente dos sauditas – foi facilmente manipulada para tornar-se
centro “secreto” de operação de guerra. E quem manda lá? Ninguém menos que o
meio-irmão caçula de Bandar e vice-conselheiro nacional de segurança, Salman bin
Sultan, codinome “mini-Bandar”. Versão árabe de “Dr. Evil and Mini Me”
[1].
Mas
há mais gente da CIA, além dos sauditas, no front jordaniano.
Tudo
que se diga sobre a importância do relatório publicado no Al-Monitor é pouco.
O relatório vazou inicialmente para o jornal libanês Al-Safir. Ali está
toda a estratégia de Bandar, revelada em seu encontro com o presidente Putin da
Rússia, sobre o qual Asia Times Online já escreveu. Depois de tentar –
durante quatro horas – convencer Putin a desistir da Síria, Bandar convenceu-se:
“Só resta a opção militar”.
Misture
Kosovo e Líbia, e voilà!
Bill Clinton |
O
ex-presidente Bill Clinton resurgiu (perfeito timing) para comparar as
opções de Obama na Síria e a jihad de Reagan no Afeganistão. “Bubba”
acertou sobre a posição de Bandar. Mas deve ter cheirado alguma coisa, se
pensava em termos das consequências – que são todas, do Talibã até aquela
entidade mítica, a “al-Qaeda”. OK. Pelo menos, a al-Qaeda já está ativa na
Síria; não precisarão inventá-la.
Quanto
àquele bando de amadores que cercam Obama – de fãzocas da R2P como Susan
Rice, à nova embaixadora dos EUA na ONU, Samantha Power, todos são falcões de
direita – todos querem mais Kosovo. Kosovo – com uma pitada de Líbia – está
sendo apresentado como modelo ideal para a Síria: R2P via ataques aéreos (ilegais). Na
sequência, o New York Times já se pôs a papaguear freneticamente a mesma
ideia.
Fatos,
é claro, não há, nessa narrativa – nem a explosão da embaixada da China em
Belgrado (remix, na Síria, com a embaixada russa?) nem chegar a um passo
de guerra com a Rússia.
A
Síria nada tem a ver com os Bálcãs. Na Síria, há guerra civil. A maioria da
população síria urbana, não os camponeses atrasados, apoiam Damasco – por causa
do comportamento terrível dos “rebeldes” nos espaços que controlam; e a absoluta
maioria da população deseja solução política e as conversações, agora já quase
totalmente torpedeadas, de Genebra-2.
O
esquema jordaniano – inundar o sul da Síria com mercenários pesadamente armados
– é remix do que a CIA e os sauditas fizeram ao Af-Pak; e os únicos
vitoriosos serão os jihadistas da Frente al-Nusra. Quanto à solução que
Israel espera de Obama – bombardeio indiscriminado de depósitos de armas
químicas – com certeza resultará em dano colateral horrendo, com R2A que matará
ainda mais civis.
O
futuro permanece sombrio. Maldita nova coalizão de vontades: Washington já tem
no saco os poodles britânico e francês, e pleno apoio das democráticas
petromonarquias do Golfo, da Jordânia, que só obedece, e das bombas atômicas de
Israel. É o que passa por “comunidade internacional”, em tempos de duplifalar.
Martin Dempsey |
Os britânicos já se puseram a
repetir pesadamente que não é preciso qualquer resolução do Conselho de
Segurança da ONU [2]; quem se incomoda se é Iraque
2.0? Para o Partido da Guerra, não faz diferença alguma que o Comandante do
Estado-Maior das Forças Armadas dos EUA, general Martin Dempsey já tenha dito
que os “rebeldes” sírios não promovem interesses dos EUA.
Washington
já tem pronto todo o necessário para que os Santos Tomahawks voem: há 384 deles já
posicionados no leste do Mediterrâneo. Bombardeiros B-1 podem decolar a qualquer
momento da base aérea Al Udeid no Qatar. E com certeza entrarão em cena as
bombas de perfuração detona-bunker.
O
que acontecerá na sequência, só com várias bolas de cristal concêntricas – de Tomahawks, a uma barragem de fogo aéreo
e comandos de Operações Especiais pelo solo, até campanha sustentada de
bombardeio aéreo que durará meses. Na longa entrevista que deu ao jornal
Izvestia, o presidente Assad dá a impressão de pensar que
Obama está blefando.
Seja
como for, a Síria não será “mamão com açúcar”, como a Líbia. Mesmo semidestruído
em todas as frentes, Gaddafi resistiu durante oito longos meses depois que a
OTAN iniciou seu bombardeio humanitário. A Síria tem exército cansado, mas ainda
muito forte, de 200 mil soldados; muito armamento soviético e russo; sistemas
antiaéreos muito bons; e pleno apoio dos especialistas em guerra assimétrica, do
Irã e do Hezbollah. Além da Rússia, que só precisa adiantar algumas baterias
S-300 de defesa antiaérea e fornece sólida informação de inteligência.
Assim
sendo, tratem de habituar-se ao funcionamento das relações internacionais em
tempo de duplifalar. O exército do general Abdel Fattah al-Sisi no Egito pode
matar centenas de seu próprio povo que protestavam contra golpe militar.
Washington não dá bola – como se viu no golpe que não é golpe e correspondente
banho de sangue que não é banho de sangue.
Não
se sabe com precisão o que exatamente aconteceu na saga das armas químicas perto
de Damasco. Mas é o pretexto para mais uma guerra norte-americana – apenas
poucos dias antes da reunião do Grupo dos 20, em São Petersburgo, com Putin como
anfitrião. Santos Tomahawks! R2A, lá vão eles.
Notas
dos tradutores
[1]
Personagens
de Austin Powers, em “O Homem
do Membro de Ouro” [Goldmember, 2002]
[2]
Ontem (26/8/2013), no canal GloboNews-SP, Demétrio Magnoli, aquela “sumidade” pós-graduada
pela USP, disse: “Atacarão por resolução da OTAN (?!), dado que não haverá
resolução da ONU”. Quem ouviu, ouviu, porque o programa, hoje, é totalmente
inencontrável.
_______________________
[*]
Pepe Escobar
(1954)
é jornalista brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica
exclusivamente em inglês. Mantém coluna (“The Roving Eye”) no
Asia
Times Online;
é também analista e correspondente das redes Russia
Today, The
Real News Network Televison e Al-Jazeera.
Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de
Tradutores da Vila Vudu, no
blog
redecastorphoto.
Livros
- Globalistan:
How the Globalized World is Dissolving into Liquid
War, Nimble Books, 2007
- Red
Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007
- Obama
Does Globalistan, Nimble Books, 2009
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