terça-feira, 6 de agosto de 2013

Pepe Escobar: “Socorro! Convoquem a Al-Qaeda!”

5/8/2013, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Ministério da Verdade, George Orwell - 1984
Quando a coisa pega à vera, é só convocar o Ministério da Verdade, [1] que ele logo dá jeito.

Aproximava-se o fim do Ramadan. Os jihadistas daquela entidade vaga, a al-Qaeda na Península Arábica [al-Qaeda in the Arabian Peninsula (AQAP)], entraram em surto de hiperatividade. Foi aquela multidão de gente saindo das prisões, da Líbia ao Paquistão, via Iraque. E tudo em perfeita sincronia com duas fatwas lançadas em rápida sucessão pelo bicho-papão perene, ex-braço direito de Osama bin Laden, Ayman “Doutor Maldade” al-Zawahiri.

Edward Snowden
Imagine reunião de emergência, crise total, nos mais altos escalões do complexo orwelliano/Panopticon: “Cavalheiros, temos aqui uma oportunidade de ouro. Estamos sitiados pelo espião desertor Edward Snowden – que os soviéticos libertaram – e o hack-terrorista Greenwald. Snowden pode estar ganhando: até na opinião pública nos EUA cresce a percepção de que nós talvez sejamos ameaça ainda maior que a al-Qaeda.

Assim sendo, temos de mostrar que vigilantemente protegemos nossas liberdades. Taí! Todos juntos, ao mesmo tempo, gritando Térã, Térã, Térã! [2] .

Instantaneamente haverá fechamento, com muita fanfarra, de muitas embaixadas e consulados dos EUA no “mundo muçulmano” e o Departamento de Estado lançará alerta “mundial” para viagens aéreas – que a Interpol imediatamente expandirá. Segue-se vasta confusão – com muitos tentando descobrir se “mochilar” na Tailândia ou comer caviar fresco em Baku serão atividades nas quais você, garantido, não corre(ria) o risco de acordar explodido.

Glenn Greenwald
Instantaneamente, temos também toda a imprensa-empresa nos EUA e no “ocidente” tombando de amores pelo meme Térã, Térã, Térã, tudo outra vez. E amaldiçoados os que pensam que isso teria algo a ver com islamofobia. Você pensou que Térã, Terá fosse coisa do passado? Não, Térã, Terã é onipresente, onisciente, espiando por todos os lados. Terá quer pegar você. Térã Wants You. Trens e barcos e aviões – você jamais estará a salvo, esteja onde estiver.

Pois o fabuloso específico telegrama “de inteligência” que o Ministério da Verdade deu jeito de desenterrar resume-se a alguns jihadi de baixo escalão que se jactam, pela rede, de eles e seus camaradinhas estarem preparando alguma coisa bem suja, em algum lugar, mas em vários lugares e não especificados, por todo o Oriente Médio-Norte da África [orig. Middle East-Northern Africa (MENA)].

Operação clandestina [orig. False flag] à vista

Exame mais detalhado dos “milhares” de al-Qaeda libertados das prisões e prontinhos para fazer o inferno por todo o planeta mostra que muitos deles, afinal de contas, parecem ser “nossos” amigos.

A fuga em massa em Benghazi (fugiram provavelmente 1.000 prisioneiros) – não chega realmente a preocupar os Amigos da OTAN do tipo Grupo de Combate Islâmico Líbio [orig. Libyan Islamic Fighting Group]; essas milícias já estão no poder, ocupadíssimos em destruir a Líbia até o status de estado falhado para sempre.

Na dupla fuga em massa em Bagdá (podem ter escapado algo como 1.400 prisioneiros), o destino geral foi o deserto da Síria, para unir-se em jihad com os Amigos de Obama/Cameron/Hollande/Casa de Saud, no saco de gatos conhecido como Frente Jabhat al-Nusra/Estado Islâmico do Iraque e Levante. Mas... peraí! Se são “nossos” amigos na Líbia e na Síria, como é possível que sejam nossos inimigos no Paquistão e no Iêmen?

Só falta o Rei Abdullah...
No Paquistão (fugiram provavelmente 500), eles se dispersarão pelas áreas tribais e por lá ficarão quietos – ou serão dronados conforme ordene O-Oh!-Bama, o que tem lista de licença para matar. Por falar nisso, não houve alerta para o Paquistão (nem para a embaixada em Islamabad, nem para o consulado em Peshawar, por exemplo), nem na Indonésia. Quer dizer: não se trata de “mundo muçulmano”; é basicamente o MENA. E especificamente o Iêmen. Mas Obama, semana passada, disse ao presidente do Iêmen que a al-Qaeda está(ria) em retirada. Mas então... O que é isso? A Al-Qaeda na Península Arábica optou por uma des-retirada?

Em resumo, é o seguinte: o continuum Bush-Obama nunca nos decepciona – e, isso, para nem falar de al-Zawahiri, a velha raposa. O Doutor Maldade, estrategista afiadíssimo que é, percebeu, há algum tempo, que se o mito do bicho-papão global chamado “al-Qaeda” está hoje “mais forte do que nunca” é graças ao governo Obama e aos seus poodles, com bases na Europa e no Golfo Persa, com sua estratégica de Três Patetas para da Líbia até a Síria. O Afeganistão é outra história, completamente diferente; não restou ali qualquer al-Qaeda histórica; só um punhado, nas áreas tribais do Paquistão.

Assim sendo, al-Zawahiri logo percebeu que o bicho papão seria inevitavelmente ressuscitado, em perfeita sincronia com suas recentes fatwas, porque guerra “longa” – ou “infinita” = dinheiro perpétuo para o complexo orwelliano/Panopticon. E é essencial que haja um conveniente inimigo estrangeiro. E ninguém em Washington, em tempo algum, de modo algum, jamais admitirá publicamente que o “inimigo” real, como concorrente estratégico, é o dragão chinês.

Ayman al-Zawahiri
O Doutor Maldade e o complexo orwelliano/Panopticon estão do mesmo lado – e isso explica por que lhe será permitido continuar como máquina perpétua de emissão de fatwas enquanto quiser, e ele não será preso como qualquer pateta, pelo modelito da bomba na cueca. O complexo está ofendido. Reformar a Agência de Segurança Nacional? Meterem o nariz nos nossos metadados? Para quê? Pois se acabamos de alertar o governo dos EUA em níveis “pré 11/9” de papo terrorista!

É possível que a Al-Qaeda na Península Arábica decida não participar desse roteirinho mundial “pré 11/9”. Verdadeiros jihadistas, afinal, não são idiotas a ponto de se deixarem apanhar pelo programa XKeystroke. Eis aí, pois, um quebra-cabeças [Bob] Dylanesco para vocês. All along the watchtower [da torre do sentinela, da trincheira], [3] aproxima-se uma bandeira falsa – “disse o coringa [o piadista, o falastrão] para o ladrão”. Há muita Terã confusão, e não teremos paz. [4]



Notas dos tradutores

[1 ] No livro 1984, de George Orwell, o Ministério da Verdade (em Novilíngua, Miniver ou Minivero) é um dos quatro ministérios que compõem o governo da Oceania. Analogamente aos demais ministérios, (Ministério do Amor, Ministério da Fartura, Ministério da Paz), o seu objetivo é exatamente o oposto da Verdade: este ministério é diretamente responsável pela falsificação da história. Em Novilíngua, porém, o nome é apropriado, já que “verdade” é aquilo que o Estado quer que seja verdade. O protagonista do livro, Winston Smith, trabalha no Ministério da Verdade. Na parede externa do Ministério da Verdade estão os três slogans do Partido: “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão” e “Ignorância é Força”. O Ministério da Verdade cuida das notícias, entretenimento, artes e educação. O seu propósito é reescrever a história e alterar os fatos, de forma que eles se encaixem na doutrina do Partido. Por exemplo, se o Grande Irmão fez uma previsão que se revelou errada, os funcionários do Ministério devem reescrever a história, de forma que a previsão do Grande Irmão seja precisa. Dentro da novela, Orwell discute qual é a razão para a existência deste ministério: o seu objetivo é criar a ilusão de que o Partido é absoluto. O Partido não muda suas diretrizes (por exemplo, ele não troca seus aliados ou inimigos entre Lestásia e Eurásia), não comete erros (o Partido não demite membros nem faz previsões erradas sobre suprimentos), porque isto implicaria fraqueza, e para manter o poder o Partido deve parecer eternamente correto e forte.

[2] Modo como Bush pronuncia a palavra “terroristas”.

[3] All Along the Watchtower é título de canção de Bob Dylan, de 1968, gravada por Jimi Hendrix. Leia matéria sobre a canção, em que a letra é analisada quase linha a linha (em inglês). Ouve-se a seguir:


[4] São palavras “rearranjadas”, dos versos de All along the Watchtower: “There must be some way out of here”, said the joker to the thief, / “There's too much confusion, I can't get no relief. / Businessmen, they drink my wine, plowmen dig my earth, / None of them along the line know what any of it is worth.”/ “No reason to get excited,” the thief, he kindly spoke, / “There are many here among us who feel that life is but a joke. / But you and I, we've been through that, and this is not our fate, / So let us not talk falsely now, the hour is getting late.” / All along the watchtower, princes kept the view / While all the women came and went, barefoot servants, too. / Outside in the distance a wildcat did growl, / Two riders were approaching, the wind began to howl.
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (“The Roving Eye”) no Asia Times Online; é também analista e correspondente das redes The Real News Network TV Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu, no blog redecastorphoto.

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